Texto por Carime Elmor
Fotos por Fernando Yokota
Garotas sangram, não estou falando de fisiologia, mas sim sobre mulheres serem mortas por discursos e governos de homens misóginos. O festival Garotas à Frente, que aconteceu no sábado, 20 de abril, organizado pela produtora Powerline, em São Paulo, levou ao palco Bloody Mary Una Chica Band, da guitarrista e baterista Marianne Crestani, a banda lésbica Sapataria, de punk/hardcore, autocategorizada “Dyke Core”, a poeta slammer Ingrid Martins, e ao final, o espetáculo da banda russa Pussy Riot, que foi centrado na performance, muito mais do que em um show de música. Em todas as apresentações, o feminicidio – assassinato de mulheres – apareceu como tema. E em primeiro plano, colado na caixa de retorno, estava escrito pelas mãos da própria Nadya Tolokonnikova, líder das Pussy Riots: “Quem Mandou Matar Marielle Franco?”.
Na noite anterior, o grupo russo havia estado em Recife, quando Nadya lançou, pela editora brasileira Ubu, seu guia “Read and Riot: A Pussy Riot Guide to Activism”, com o título em português “Um Guia Pussy Riot Para o Ativismo”. Jamille Pinheiro, uma das tradutoras, organizou uma mesa de debates com convidadas de movimentos do feminismo negro local, além de Monica Benicio, parceira de Marielle Franco. Foi assim que Nadya teve a oportunidade de estabelecer um contato direto com a história do assassinato da vereadora do Rio, e já assumiu o caso como pauta urgente na passagem da Pussy Riot pelo Brasil, convidando Monica para participar do show de Pernambuco. Além de São Paulo e Recife, a turnê na América Latina também contemplou Argentina, Chile, Uruguai, Peru e México. Um post no Facebook do grupo divulgou a turnê com Nadya usando a camiseta: “Make America Mexico Again”, contrariando o slogan de Trump.
Primeira atração musical do evento, a Bloody Mary Una Chica Band tem uma potência surpreendente. Marianne Crestani, que no começo do século integrou a banda indie paulistana Pullovers (gravando os álbuns “Pullovers Can’t Play Covers”, 2000; “Riding Lessons”, 2002; e “Pullovers & Geanine Marques”, 2005) e hoje integra As Mercenárias, ajuda na produção do Sisters MindTrap (ao lado de Donna e Carol) e toca o projeto Bloody Mary Una Chica Band (que já tem três EPs) – desde 2013. Ela se apresenta sozinha, chega ao palco tocando guitarra, uma bateria enxuta com bumbo e chimbal, além de cantar. No festival ela propôs um brinde de protesto ao país bebendo uma taça de sangue que, derramado pelo rosto, formou uma máscara orgânica para seu figurino. Nas projeções estavam à mostra imagens de seu clipe “Break the Spell”, em que ela aparece cortando a própria língua. Despediu-se com o eco de seus gritos na última música.
O grupo paulista Sapataria foi formado em 2016 e lançou em 2018 seu primeiro EP, autointitulado. Elas entram a seguir comentando o motivo de cada uma de suas canções. “MSB” é abreviação de “Movimento Sem Banheiro”, sobre uma das integrantes ter sido expulsa do banheiro feminino do shopping, outras letras tratam da difícil relação entre xs LGBTs e familiares, quando em protesto, elas começam a rasgar no palco um livro da área de psicologia que trata a homessexualidade como patologia. A última música “175”, ainda não gravada, começa com uma fala homofóbica, e criminosa, de Jair Bolsonaro, sendo que uma frase de destaque na letra é: “Eles querem nosso sangue”. O ponto alto do show foi a versão lésbica da música “Punk Rock Não é Só pro Seu Namorado”, do grupo riot grrrl Bulimia. Na versão da Sapataria, elas gritavam: “Punk Rock também é pra Sapata”.
Durante a montagem de palco do show principal, Ingrid Martins, poeta e slammer ligou o microfone questionando: “Me diz, qual é a faca que te corta”, mais uma vez trazendo a temática do feminicídio para o festival.
“Pussy is the new dick, ladies”
Com o palco decorado com símbolos de radioatividade, Nadya Tolokonnikova surgiu vestida com um cinturão de balas e uma capa de segurança refletiva verde fluorescente. Em seus stories do Instagram, ela publicou que três quartos das projeções do show foram feitas por ela mesma, e estava ansiosa para mostrar ao público da América Latina esse trabalho visual. Estava acompanhada apenas de outro integrante usando uma balaclava cor de rosa. Não dava para saber se era membro oficial do grupo ou não. Enquanto ela, na maior parte do show, fazia playback, ele tocava guitarra e soltava bases eletrônicas/samples. Logo no início da performance, a ativista russa fez um comentário sobre a música hardcore que havia sido apresentada pelas bandas de aberturas, e diz que a Pussy Riot está nesse entremeio entre o hardcore e a música pop, embora seja muito mais pop.
Em uma entrevista para o caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, ela conta que em suas músicas ela usa samples de diversos grupos, como sons da Sham 69, banda punk rock Oi!, e canta por cima. Outras inspirações são Rammstein, Slipknot, IC3P3AK, Charli XCX e Dave Sitek, com quem coproduziram “Bad Apples”. Surgido em 2011 em Moscou, o Pussy Riot chamou a atenção do mundo (e do presidente russo Vladimir Putin) acumulando protestos em flashmobs que se transformavam em shows, atividade que acabou levando três integrantes para a cadeia por acusam de “vandalismo motivado por intolerância religiosa”. Hoje, apenas duas delas são apresentadas como integrantes da banda, Nadya Tolokonnikova e Masha Alekhina, e só a primeira (aparentemente) desceu para essa turnê pela América Latina.
Tratando-se de gênero musical, é um show eletrônico, nu metal e pop, que chega a flertar com o emo rap, porém a essência punk aparece na luta política. Estar diante das Pussy Riot é sobre assistir uma performance de artistas multimídias combatendo o machismo, o patriarcado, e o abuso de policiais e governos fascistas. São pró-aborto, contra prisão de qualquer espécie, principalmente de prisioneiros políticos, e radicalmente contra Vladimir Putin. O público grita “Lula Livre” e ela dá espaço para o protesto.
Nadya Tolokonnikova deixa como principal mensagem que a única maneira de mudarmos o mundo é o combate frente a frente e sem medo. Em certo momento, por exemplo, ela sai do palco e no telão aparece uma mensagem dizendo que as performances das Pussy Riots, como a que assistimos, são proibidas na Rússia. “Se formos seguir as normas de segurança de nosso país e as regras do militarismo, nenhuma música que tocamos hoje teria sido escrita”, Nadya explica, complementando que ela acredita que haverá uma mudança positiva no mundo, porque ela enxerga potência na juventude ativista.
Inclusive, um de seus argumentos reflete uma análise sociológica que ela fez em meio a briga imperialista norte-americana contra o imperialismo russo. Ela acredita que quanto mais estes dois polos se chocam, mais eles se parecem. “Como você descreve no livro, nossas duas culturas nacionalistas se espelham. Trump deseja ser Putin. Putin quer ser ainda mais putinesco”, escreveu a ex-Sonic Youth, Kim Gordon, que é quem assina o texto de orelha do guia de Nadya lançado no Brasil.
Entre goles de Jack Daniels, Nadya apresentou um repertório que incluiu o hit “Police State”, com o refrão “Oh my god, I’m so happy I could die”, a famosa oração punk que pede à Virgem Maria para tirar Putin do poder. Uma performance dessa canção feita em 2012 na catedral de Moscou fez o grupo ficar conhecido mundialmente e teve como consequência a prisão de três integrantes do Pussy Riot (Nadya inclusa). “Go Vomit”, “Bad Girls”, a sarcástica “Make America Great Again”, e o single mais recente “Track About Good Cop” estavam no setlist, além da sangrenta “Organs”, que teve a letra projetada no telão como se fosse a abertura de um episódio de “Star Wars”.
Nadya abraçava da beirada do palco quem estava na primeira fileira, deixando o público a descabelar, enquanto uma fã se joga e começa a ser carregada pela plateia. Não demorou muito para uma roda de mosh, somente de mulheres, começar. Nadya pega uma faixa com o escrito “Fora Bolsonaro” e levanta, ganha um lenço roxo “Ele Não” e amarra acima da boca. Os telões relembram as torturas policiais sofridas pela população russa em 1937, no período do Grande Expurgo de Stalin. Junto de Nadya e o membro de capuz rosa foram convidadas duas performers brasileiras, Metta (“rottteen”) e Slim Soledad, que estiveram no palco ao longo de quase todo show. Além disso, a drag queer Alma Negrot foi convidada para fazer intervenções pontuais. Em um dado momento, Nadya Tolokonnikova provoca as fãs para que começassem a gritar, ela dá um enorme berro no microfone, clamando para que fizéssemos o mesmo. E durante alguns segundos, nenhum ruído fica mais alto do que a voz das mulheres.
Nas últimas músicas, como “Deliver Pavement”, do álbum “Kill the Sexist!” (2012), época em que a banda apresentava uma sonoridade punk rock, mais performers brasileiras foram convidadas a subir ao palco, entre elas: Pequeno Marginal, performer não-binário, e a artista multimídia conhecida como “Foguentinha Online S2”. E permaneceram para a grande procissão feminista de páscoa em “Straight Outta Vagina”, quando o público e as performers fizeram uma vagina com as mãos cantando: “Don’t play stupid, don’t play dumb / Vagina’s where you’re really from?”. A forma como as Pussy Riots descrevem a música no canal do YouTube resume tudo: “Pussy is the new dick, ladies”. São Paulo viu e ouviu isso em alto e bom som no Festival Garotas à Frente.
– Carime Elmor (fb/carime.elmor) é jornalista, fazedora dos zines Malditas e colaboradora do CAFÉ8.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/