Texto por Paulo Pontes
Na mais nova onda de cinebiografias musicais embalada pela recente e oscarizada “Bohemian Rhapsody”, baseada na história do Queen (e em breve por “Rocketman”, sobre Elton John), quem acaba de receber uma adaptação cinematográfica de sua história é nada mais, nada menos que um dos pilares da música pesada mundial, talvez a maior banda de hard rock dos anos 1980 — ou seria a maior de todos os tempos? —, o Mötley Crüe.
“The Dirt: Confissões do Mötley Crüe” tem a trama baseada na autobiografia da banda escrita com a ajuda do jornalista Neil Strauss (autor de, entre outros livros, “Fama e Loucura”, e desafeto de Dave Pirner), produção da Netflix com direção de Jeff Tremaine (Jackass). O filme foi lançado dia 22 de março na plataforma de streaming e traz no elenco, interpretando os quatro integrantes originais da banda, Daniel Webber (Vince Neil), Douglas Booth (Nikki Sixx), Rheon Iwan (Mick Mars) e Machine Gun Kelly (Tommy Lee).
Difícil não fazer comparações com “Bohemian Rhapsody”, ainda mais por se tratar de lançamentos relativamente tão próximos. E se em termos de caracterizações caricatas de personagens, figurinos muito bem construídos, alguns erros históricos aqui e ali (o número de equívocos no filme do Queen é infinitamente superior e compromete bem mais a experiência) e trilhas-sonoras impecáveis os dois filmes estão em pé de igualdade, no quesito “vamos passar um pano para os caras” “Bohemian Rhapsody” ganha de lavada.
Isso porque “The Dirt” não tem medo de escancarar todos os excessos vividos e praticados pelos quatro músicos originais do Mötley Crüe — não à toa a indicação classificativa do filme é para maiores de 18 anos – não poderia ser diferente. O abuso do uso de drogas, principalmente por parte do baixista Nikki Sixx, é tratado em detalhes e resume bem toda uma época e uma geração mergulhada de cabeça no agora lema clichê “Sexo, Drogas e Rock ‘n’ Roll”. A primeira parte da trinca, inclusive, é mostrada a exaustão, seja nas festas homéricas organizadas pela banda, como nos camarins, momentos antes das apresentações.
Boa parte das arruaças e quebradeiras que o grupo causou em hotéis também são retratadas na história e a experiência de Jeff Tremaine com “Jackass” com certeza ajudou muito nessas cenas. Vale destacar também a representação do encontro dos caras com o vocalista Ozzy Osbourne (interpretado muito bem por Tony Cavalero), que é hilária. É claro que alguns pontos baixos na carreira e na vida pessoal dos integrantes do Mötley Crüe foram limados, como, por exemplo, a conturbada e polêmica relação entre Tommy Lee e Pamela Anderson – a atriz é citada apenas de relance e nas entrelinhas.
A despeito da direção ter falhado em deixar os personagens estereotipados em excesso — sabemos logo de cara a personalidade de cada um, sem margens para análises mais profundas a respeito das características de cada um dos integrantes da banda —, as interpretações dos atores ficaram acima da média e convencem em seus respectivos papéis. Destaque para o rapper Machine Gun Kelly, que conseguiu captar muito bem todos os trejeitos e até mesmo a maneira de tocar do baterista Tommy Lee.
Vale lembrar que os quatro integrantes originais estiveram envolvidos na produção do longa, o que, com certeza, interferiu no direcionamento. Só para ficar em um exemplo, o período em que Vince Neil deixa a banda e John Corabi assume os vocais passa praticamente despercebido no filme e é dada pouca — ou nenhuma — importância para essa fase do Mötley.
Mesmo expondo toda a loucura vivida pela banda, os acontecimentos engraçados, os abusos de substâncias ilícitas e as inúmeras cenas de sexo, “The Dirt” dá espaço para momentos mais emotivos. Impossível não compartilhar da dor de Vince Neil e sua ex-esposa, Sharise Ruddell (Leven Rambin), com a morte da filha Skylar, com pouco mais de 4 anos de idade. O acontecimento foi retratado de maneira muito sensível.
É claro que contar boa parte da história de uma banda como o Mötley Crüe em pouco mais de duas horas de filme é praticamente impossível. Talvez um recorte mais específico resolveria o problema e, mesmo divertidíssimo e envolvente, o longa beira a superficialidade. O ponto positivo dos roteiristas Tom Kapinos e Rich Wilkes foi colocar a narrativa através da perspectiva de cada um dos integrantes da banda. Ora temos os fatos narrados por Nikki, ora por Tommy, e assim vai passando pelos quatro e por alguns outros personagens coadjuvantes. Isso deixou tudo mais dinâmico e agradável.
Como parte da divulgação do trabalho, a banda lançou pela Mötley Records e pela E7M (Eleven Seven Music) a trilha-sonora de “The Dirt”. O disco está disponível nas plataformas digitais e traz, entre grandes clássicos da carreira do grupo, quatro novos registros produzidos em parceria com Bob Rock: “The Dirt (Est. 1981), com participação de Machine Gun Kelly — faixa que já ganhou videoclipe —, “Ride With The Devil”, “Crash And Burn”, além de uma interessante versão de “Like A Virgin”, clássico da Madonna. De acordo com o baixista Nikki Sixx, “durante as filmagens de nosso filme, ficamos animados e inspirados para escrever novas músicas. Voltar ao estúdio com Bob Rock apenas alimentou nossa criatividade. Para mim a música soa como o clássico Mötley e as letras refletem o filme e a nossa vida”.
Apesar de todos o excessos, exageros e, obviamente, não merecer uma nomeação ao “Oscar de Melhor Filme” — será que ‘Bohemian Rhapsody’ merecia? —, “The Dirt” cumpre muito bem seu papel como excelente entretenimento, um filme que mexe e mistura as mais diferentes emoções, pois é divertido, dramático, engraçado, tenso. Ou seja, é Mötley Crüe em sua essência e vale a pena conferir.
– Paulo Pontes é colaborador do Whiplash, assina a Kontratak Kultural e escreve de rock, hard rock e metal no Scream & Yell. É autor do livro “A Arte de Narrar Vidas: histórias além dos biografados“.