Texto por Renan Guerra
As cinebiografias são um dos mais importantes filões do cinema nacional da última década, só perdendo para as “comédias Globo Filmes”, por isso é até de se estranhar que tenha demorado tanto para ver nas telas um filme voltado para a Jovem Guarda – a relação problemática de Roberto Carlos com biografias pode ser um porquê para muita gente não querer se meter nesse vespeiro. “Minha Fama de Mau”, produzido ainda em 2015, chega agora aos cinemas dando luz aos primeiros anos de Erasmo Carlos e, por conseguinte, a Jovem Guarda, nas figuras de Roberto Carlos e Wanderléa.
Dirigido por Lui Farias (“Com Licença, Vou à Luta” e “Lili, a Estrela do Crime”) e baseado na autobiografia homônima de Erasmo, lançada em 2008, “Minha Fama de Mau” tem um recorte bastante específico, que compreende de 1958, quando o músico começa a se interessar pelo rock, até final dos anos 60, quando esse assume uma perspectiva distinta e mais madura em sua carreira. As escolhas estéticas são o grande trunfo do filme, que inicia com uma linguagem veloz e jovem, que remete ao universo pop das HQs, seguindo com uma glamourização da fase auge da Jovem Guarda, com ares de rock star, até chegar ao polimento de uma possível maturidade e complexidade do artista. Um grande acervo de imagens de época agrega nostalgia e divertimento ao filme, trazendo lindas imagens do Rio de Janeiro e de São Paulo na década de 1960.
Chay Suede, o protagonista, não se parece fisicamente com Erasmo e, na teoria, ele nem seria uma escolha plausível para o papel, porém é ele que carrega com força o filme, pois se não há semelhança física, ele capta de forma única o espírito do músico. Chay consegue trazer para a câmera o ar sedutor e divertido de Erasmo, criando uma cumplicidade com o público (especialmente nas cenas em que quebra a quarta parede e conversa diretamente com o espectador) que cativa e o torna quase como um amigo ouvinte das peripécias do artista.
Gabriel Leone, por sua vez, consegue criar um satisfatório Roberto Carlos, já que esse é um personagem sorrateiro: quase todo humorista brasileiro acredita que pode imitar Roberto e é sabido que a maioria dessas imitações é péssima. Nesse sentido, a interpretação de Gabriel consegue ser comedida, certeira, sem cair em maneirismos caricaturais. Malu Rodrigues, que interpreta Wanderléa, é praticamente uma incógnita, pois sua personagem é deixada tão de lado que não se sabe quase nada dela. Esse, aliás, é um dos maiores erros do roteiro: deixar Wanderléa de lado, quase como uma figuração, é uma falta e tanto. Em contraponto, a interpretação de Malu Rodrigues se sobressai nas cenas musicais, já que os três protagonistas cantam a maioria das canções do filme.
Para além do elenco principal, dois nomes escalados são pontos críticos do filme. Bruno de Lucca na pele de Carlos Imperial é um erro gritante. O personagem é extremamente importante na história de Erasmo e nas mãos de Lucca ele vira uma galhofa de mau gosto. Bruno de Lucca não é e nem nunca foi um bom ator e aqui sua irritante figura pública parece se sobrepujar ao personagem que ele interpreta, isto é, vemos mais Bruno e quase nada de Carlos, uma pena. Já Paula Toller (que é esposa do diretor) assume a figura de Candinha, mítica e misteriosa fofoqueira da era do rádio, que inclusive deu nome a canção “Mexerico da Candinha”, de Erasmo e Roberto. Paula não é atriz e sua presença no filme é completamente amadora, com sua personagem tendo função crucial no arco narrativo, porém a atuação de Toller é completamente plana, deixando transparecer apenas que ela está lendo um texto desconhecido, sem emoção.
Se por um lado o filme é divertido e cativante, por outro, parece sempre faltar conflitos ou tensões que levem os personagens adiante. As relações amorosas de Erasmo são resumidas na figura de diferentes personagens interpretadas por Bianca Comparato – em ótima atuação –, porém isso dilui as tensões românticas do filme. A amizade com Tim Maia é um importante arco do primeiro momento do filme, porém depois nunca mais é citada. A amizade de Erasmo e Roberto é pano para um possível conflito mais ao final, mesmo assim, é tão “en passant”, que parece mal aproveitada. Sem contar, que dá a entender que a carreira de Erasmo só existe em função de Roberto e não pelo inegável talento do músico.
Outro ponto complexo é a questão contextual: a Jovem Guarda é, obviamente, um movimento juvenil e sem qualquer consciência política, o que foi seu grande demérito para muitos à época. O roteiro de “Minha Fama de Mau” apenas passa pelo tema de forma rasteira na reconstrução de uma entrevista de Erasmo. Nesse mesmo cenário, o filme dá a entender que Erasmo ficou perdido e “por fora” dos movimentos que estavam acontecendo, inserindo imagens diretas do Tropicalismo, o que é um tanto quanto errôneo: Roberto e Erasmo eram celebrados por Caetano Veloso, que sempre citava a Jovem Guarda como algo importante para eles. Mais que isso, Erasmo e Roberto são os autores da clássica “Meu Nome é Gal”, gravada por Gal Costa em 1969. Outro ponto nebuloso na cronologia é a licença poética de, em uma emocionante cena, Roberto cantar “Amigo” como sendo uma faixa original dele, mesmo a canção sendo uma parceria de ambos e que só seria lançada em 1977.
Problemas de roteiro são sempre questões colocadas na mesa em qualquer cinebiografia, por isso mesmo, apesar dos problemas, “Minha Fama de Mau” é extremamente satisfatório ao conseguir construir um personagem extremamente cativante, que nos faz querer seguir acompanhando essa história apesar da falta de grandes tensões. Além disso, é satisfatório ver Roberto Carlos em segundo plano, dando espaço para que a figura de Erasmo seja central, quando repetidamente vemos a figura do dito rei obscurecer a importância de Erasmo enquanto compositor e músico. Talvez uma contextualização final dos rumos que a carreira de Erasmo assumiria nos anos 70 seriam interessantes para construir um panorama mais complexo do artista, já que, na sequência final, apenas vemos a sutil presença no figurino do icônico chapéu que Erasmo utilizaria na capa do disco clássico “Carlos, Erasmo”, de 1971.
“Minha Fama de Mau” está longe de ser o filme do ano ou de ter louros de grande cinema, porém é eficaz em divertir, em dar luz a uma época e a um personagem extremamente cativante – mesmo que de forma bastante chapa-branca. Os números musicais são bem estabelecidos e a reconstrução de época é divertida – os looks masculinos são incríveis. Vale enquanto olhar de hoje sobre a Jovem Guarda, vale como descoberta de um tempo quase esquecido. Aliás, este longa de Rui Farias parece ser o pontapé inicial para outros longas que voltam suas lentes para os anos 60: Breno Silveira já prepara um longa sobre Roberto Carlos – filme encomendado pelo próprio artista e quem tem cheiro de ser ainda mais chapa branca que esse em questão. Aguardemos.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha.