por Carime Elmor
O Brasil ainda engolia à seco os primeiros 10 dias do ano quando Jards Macalé lançou o video-arte de “Trevas”, dirigido por Gregório Gananian e Gabriel Kerhart, montagem de Gregório, Danielly O.m.m e Cesar Gananian. A direção de fotografia foi feita por João França. A curta diária de gravação foi realizada em apenas três horas, e há três dias do segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Na sala da casa de Gregório e Danielly foi montado um estúdio portátil, onde foi sendo criado o mini-cenário do videoclipe. Os diretores já haviam criado, juntos, uma experiência semelhante em um show de 2014 do Nação Zumbi, quando fizeram o que chamaram de “Pandorama”: uma caixa de areia com gravuras sendo colocadas e recolocadas à mão, e no centro, uma vitrola, com uma câmera GoPro acoplada que, ao girar, transmitia as imagens para uma projeção em um prédio. Dessa vez, eles retomaram a invenção e colocaram vidros dentro da caixa dando a sensação de camadas. Entre estes espaços, trabalharam com o acervo de cartelas do Pandorama. “Como sair de um ponto de vista absoluto, do olhar da lente, e ter outras camadas de olhares. Quando a gente coloca o Macalé, e junto dele, uma vela, e uma imagem de outro filme, fica um cubismo. Uma tentativa de um cine-cubismo”, conta o diretor.
A poesia da música foi vista sob o ponto de vista de um prisma, possibilitando que, da mesma forma que uma imagem, no audiovisual, completa o som, palavras de outros autores também poderiam complementar a letra de Jards. Seguindo esse princípio, estão em cena iconografias de James Joyce e Oswald de Andrade, bem como um frame do filme “O Diabo, Provavelmente” (1977), de Robert Bresson. As esculturas, ora um busto desgastado da Grécia, remetendo à ruína do Ocidente, ora uma Vênus de Milo sangrando dentro de um vidro de perfume, são do acervo da Danielly O.m.m, que também é artista plástica. “A busca foi de um clipe que desse vontade de ver mais vezes, para também ouvir a música mais vezes. Você nem precisa entender todas estas camadas, mas elas estão ali. Cada vez que você assistir você vai ver algo novo. E se não perceber, vai para o inconsciente”.
Embora, ao assistir o videoclipe, não tenhamos a real noção de que tudo foi feito em uma escala muito reduzida, o mais interessante foi perceber que o cenário cabe em uma caixa, e, segundo seus criadores, teve como referência a obra “O Grande Vidro” (1915/1923), de Duchamp. Foi como se tivessem criado uma miniatura do Brasil, como bem definiu Gregório Gananian. No entanto, como observa Danielly, houve, também, uma clara intenção de criar antídotos contra as trevas. Na própria caixa forrada com areia aparece uma vela bem em primeiro plano dando a ideia de ter sido preparado um ebó para o Brasil. Uma oferenda de cultura brasileira, de contracultura, capaz de colocar à luz do sol, em 2019, uma memória do filme “Bang Bang” (1971), de Andrea Tonacci, com um corpo dançante em mais um dos arranha-céus de São Paulo, enquanto uma frase o complementa: “A paisagem desta capital apodrece”. Assim como a bandeira “Seja Marginal, Seja Herói”, de Hélio Oiticica, que foi amigo íntimo de Macalé. “A ideia foi transformar um videoclipe em um pensamento de cinema, que não fosse algo só o clipe. É imagem, é ritual, a imagem é poderosa. A ideia é de não ser somente um ornamento para a música. Um clipe consegue fazer ressoar vários pontos luminosos para se pensar atualmente”, acredita Gananian.
No vídeo, é como se a estampa do Cara de Cavalo fizesse analogia ao tempo. Em 12 segundos, uma gota de sangue cai sobre a imagem do corpo estendido e nunca mais se estanca. Ao longo de toda a montagem, ela vai se espalhando naturalmente até a mancha cobrir todo o corpo e dar fim ao videoclipe, com a voz afogada de Jards, dizendo: “Me calo”. Nada foi feito com animação, tudo é analógico, colagem. “Não é um construtivismo, mas sim um monstrutivismo”, sugere Gananian, relembrando a teoria de Lúcio Agra. Outro artifício tecnológico que utilizaram foi a iluminação feita a laser pelo LabLUXz_ LAS3R, do Diogo Terra Vargas, que faz de seu trabalho, um ato político presente em manifestações. Seguindo a ideia que Diogo e Gregório já haviam testado, em 2017, no videoclipe “Action Lekking A”, do Negro Leo, o laser é um dos principais recursos nessa criação audiovisual. “O laser resiste na escuridão, nas trevas”, ressalta Gregório.
A letra de “Trevas”, terceira faixa de “Besta Fera“, é uma rearticulação de 10 versos presentes no poema “Canto I”, do poeta estadunidense Ezra Pound, que havia feito uma transcriação da “Odisséia” de Homero, recontando sobre o momento da chegada de Odisseu ao inferno. Jards utilizou a tradução presente em um livro de Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, e assim como Odisseu encarou seus inimigos frente à frente, Jards agora encara o Brasil. No clipe, ele aparece de relance atrás das camadas de vidro, e também como um ponto de luz na escuridão, de onde saem os lasers. Em um momento, ele toca os feixes de lasers como se fossem cordas de uma guitarra elétrica, logo antes de surgir um frame curto escrito: “imagina beber eletricidade”, remetendo a atos de tortura. Há sempre um jogo de sentido entre os contrastes. “Ao mesmo tempo que a gente põe fogo nas armas, uma ação contra o armamento, as mesmas, também se assemelham a armas de revolucionários, guerrilheiros, remete à Marighella, tudo isso”.
O encontro do diretor e do músico se deu em 2011, quando Gregório foi ao Rio gravar imagens para o “Siñfonia d jards”, que aconteceu entre 2011 e 2012 como um meta espetáculo, nos palcos do Teatro Oficina e do Sesc Santo Amaro, ambos em São Paulo. “A relação com o Macalé é essa, ele tá no ‘Inaudito’ (2018), está no ‘Siñfonia d jards’, é um parceiro. E ele viveu as instalações do Hélio Oiticica, da Lygia Clark, ele tem uma percepção corporal muito forte. Criamos essa instalação, e ele disse algumas vezes para a gente que se sentiu muito bem nesse túnel de laser. Ele falou que não dava vontade de sair daqui”, conta, dizendo que enxerga em Jards uma abertura, a percepção do novo, da multidisciplinaridade. “Percebo um cara conectado. Ele é música, mas a música com as artes plásticas, com o cinema, ele é prismático”.
O Brasil retratado como miniatura, fazendo crítica ao pensamento que faz encolher o potencial do país. Pensado em multifacetas artísticas, em uma reunião de músicos brasileiros. Assim como o videoclipe parece narrar a própria realidade do agora, é como se Jards, lá atrás, quando compôs ‘Trevas’, estivesse fazendo um prenúncio do Brasil de hoje. Por mais atual que pareça, esta música surgiu bem antes do processo de composição para o “Besta Fera”. Letra e melodia foram resgatadas por Jards. E não haveria melhor forma das palavras chegarem, se não fosse com a bateria de Thomas Harres sendo tocada como uma marcha, um anúncio. Contrapondo com a bossa nova de elevador, que na realidade está nos levando, de forma sádica, para as trevas.
“Nesse mundo tortuoso vão nascer outras forças que a gente não conhece. O clipe dá a ideia de algo que está para ir embora, mas não foi ainda, porque tem força. A sensação é de que o Macalé é o próprio Brasil. Ele está vivo, está forte, vai conseguir passar por essa. Esse é um lado otimista. A gente vai conseguir, mas é duro. A gente vai ter que atravessar por túneis. Essa viagem ao Hades, ao inferno, é o nosso momento atual. Vai deixar a gente perturbado, mas, pelo menos, se a gente conseguir existir e resistir novamente, vamos estar muito mais fortes”, finaliza Gregório, ao que Danielly complementa: “Eles vão derreter na luz. É que a gente ainda está em Trevas”. Assista ao clipe!
– Carime Elmor (fb/carime.elmor) é jornalista, fazedora dos zines Malditas e colaboradora do CAFÉ8.
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