Texto por Renan Guerra
Maria Bethânia é figura mística, misteriosa, a abelha rainha, dona do dom, entre outros epítetos que seu|s fãs repetem. Por isso diversos documentários tentam desvendar universos de Bethânia: o clássico “Bethânia Bem de Perto – A Propósito de um Show” (1966), de Júlio Bressane e Eduardo Escorel, apresenta uma cantora em início carreira, porém de pulso firme, uma jovem decidida e quase impenetrável. “Música é Perfume” (2006), de Charles Gachot, é quase mítico ao criar ares de diva a pequenos atos de Bethânia. Já “Pedrinha de Aruanda” (2006), de Andrucha Waddington, se aproxima da intimidade de Bethânia, de sua família, adentra a casa dos Veloso, mas ainda assim parece sempre apresentar um olhar de outrem sobre a família.
É a chegada de “Fevereiros” (2018), de Marcio Debellian, que consegue criar um retrato bastante íntimo de Bethânia, completamente despojada de sua aura de diva, porém não menos mística. O longa de documentário parte do enredo campeão de 2016 da escola de samba Mangueira, que versava sobre Bethânia e suas relações religiosas, para traçar um interessante retrato das crenças da baiana e assim desenhar um cenário rico sobre o Brasil, o sincretismo, o samba e a negritude.
Marcio Debellian foi responsável pela reedição do clássico livro “Maria Bethânia Guerreira Guerrilheira”, de Reynaldo Jardim, e depois produziu “(O Vento Lá Fora)” (2014), filme que traz leituras da professora Cleonice Berardinelli e de Bethânia sobre a obra de Fernando Pessoa. Esse histórico já faz de Debellian alguém mais próximo da cantora, com uma proximidade que, atrelada a um forte respeito à artista e a sua religiosidade, lega ao filme uma intimidade e um cuidado que conseguem transmitir ao público a presença sincera de Bethânia. O filme acompanha de forma modesta a preparação do desfile da Mangueira, dando conta especialmente dos rituais religiosos que a cantora participa em sua cidade natal, Santo Amaro, na Bahia, especialmente a festa de Nossa Senhora da Purificação, no final de janeiro e início de fevereiro.
Apelando para a mística de um Brasil sincrético, “Fevereiros” opta por um olhar mais positivo desse cenário. Quando pensamos nas atrocidades cometidas no país e no mundo em nome da religião, essa parece não ser a melhor escolha; quando se pensa na sisudez do catolicismo ou nos preconceitos espalhados pelo neopentecostalismo, essa parece ainda mais uma escolha datada. Porém, de forma contrária, “Fevereiros” consegue apresentar uma genuinidade nesse olhar, que leva à tela uma religiosidade que vai muito além de igrejas ou religiões, mas que cultiva a fé como possibilidade de enfrentar o mundo e criar formas de vida.
É essa religiosidade que faz o filme navegar pela história do samba e cria vínculos fortes entre a Bahia e o Rio de Janeiro, bem como entre Santo Amaro e a Mangueira. Nesse recorte místico, o roteiro consegue abarcar uma linha temporal bastante ampla, que vai da libertação dos escravos no final do século XIX até a construção do samba enquanto descendência clara das religiões de matriz afro. É um cenário bastante amplo e é essa é uma das qualidades do filme de Debellian: em nenhum momento ele se perde nessa lógica, isso por que o diretor escolhe não abordar as questões com didatismo ou um tom professoral. As questões do filme não são mastigadas ou explicadas (isso até pode afastar um pouco um público que não é “entendido” do universo de Bethânia ou que não tem familiaridade com o Candomblé), é a sensibilidade quase religiosa do ritmo do filme que nos conduz por construções que alinhavam temas crassos da nossa formação enquanto sociedade.
Para construir esse painel, as imagens de arquivo também são enriquecedoras: Mãe Menininha do Gantois, Jorge Amado, Cartola, entre outros, aparecem em arquivo. Cenas de longas como “Quando o Carnaval Chegar” (1972), de Cacá Diegues, e “Doces Bárbaros” (1976), de Jom Tom Azulay, também completam esse cenário histórico de Bethânia. De todo modo, desse baú de antiguidades a maior relíquia é um lindo trecho em que a cantora interpreta “De Manhã” (a primeira faixa que Caetano compôs, especialmente para ela), enquanto Dona Canô e Dona Edith do Prato tocam seus pratos como instrumento.
Em entrevistas bastante íntimas, Bethânia e Caetano Veloso contam histórias de suas infâncias e montam um painel sobre como as primeiras lembranças formam questões pontuais da religiosidade de ambos: ela extremamente crente, com seus patuás e suas santas protetoras; ele ateu e descrente de quase tudo. Essa dicotomia cria um belo olhar sobre liberdade religiosa e sobre crer no que te faz bem e, por isso, “Fevereiros” soa como um filme fundamental num tempo em que se tenta cercear e delimitar muito da nossa esfera pública, em que a religião parece querer impor ditames, em que a fé de uns quer regular o corpo e as decisões de outros. O documentário é sobre Bethânia, sobre sua fé, mas traz uma visão que demonstra que é possível se conviver em harmonia quando deixamos que a fé seja algo íntimo e pessoal.
Bethânia crê no seu Deus, acredita e louva as suas santas e os seus orixás de forma extremamente verdadeira para si e é isso que é tão encantador no filme: vê-la falando de forma natural, leve, a contar pequenos segredos, pequenas dúvidas e descobertas de uma pessoa em constante aprendizado com sua fé. Vemos Bethânia a passear pelas ruas de Santo Amaro em procissão, a tomar chuva, a carregar a sua santa de devoção, vemos uma Bethânia comum, extremamente humana em seu misticismo, extremamente brasileira, desse Brasil caboclo, mestiço que ela tanto ama e canta. Em cena simbólica, ela ergue um copinho americano com sua cerveja e brinda à Nossa Senhora, de forma tão simples, tão singela e tão forte para ela. É essa Maria Bethânia que transparece na tela: uma mulher que crê e louva suas crenças da forma que faz sentido para ela.
“Fevereiros” é como que uma junção do sagrado e do profano. É o profano em nome do religioso; é o sagrado sendo dessacralizado pelo profano; é o samba como oração. É Bethânia de carne e osso. No final das contas, é um filme para fãs e não-fãs de Bethânia, para crentes e ateus, para quem ainda acredita no Brasil apesar de tudo, para quem ainda acredita no povo e na sua força. Por isso, assista se deixando levar pelo místico.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha.