entrevista por Guilherme Lage
Duas coisas chamam atenção no Omfalos de imediato. A primeira é a sonora bicuda dada pelo duo brasiliense aos limites do black metal. Ao subgênero, popular nas paragens escandinavas, acopla-se influências de pós punk e rock gótico, death metal e hardcore.
A segunda é a brutal honestidade. Seu material lírico é um vômito existencial saído de estômagos que emulsionam com crueza os dissabores e as sensações humanas, retratando doenças como a depressão e o transtorno afetivo bipolar. O desabafo é tal que as letras de seus dois álbuns “Idiots Savants” (2011) e “Cotton Candy Rendezvous” (2013) permanecem até hoje sem publicação.
As faixas, assim como na doença maníaco-depressiva, acontecem em ciclos e contam visões fragmentadas de uma mesma existência, trazendo à tona sentimentos dos mais íntimos. A música da dupla compõe uma narrativa inovadora no que tange o conteúdo de uma vertente quase estanque no cenário heavy metal brasileiro.
Em conversa com o vocalista Zé Misanthrope (com a camiseta do Facada na foto que abre o texto), batemos um papo sobre a arte da banda, os projetos A Peste e Godtoth, o segundo ao lado dos membros do Facada, influências literárias e, claro, metal extremo.
Você pode contar um pouco sobre como foi seu início na música? Como você começou a tocar. Foi em Brasília mesmo ou em outra cidade?
Meu início na música tem um começo bem peculiar. Meu pai, apesar de ser um sujeito totalmente quadrado e careta gostava muito de música, especialmente de heavy metal. Então eu cresci tendo acesso a uma coleção bem considerável de clássicos logo muito novo. Desde muito cedo ouvi coisas como Iron Maiden, Testament, AC/DC e tantos clássicos do final dos 80 e começo dos 90. Daí foi natural pra mim acabar enveredando pelos caminhos mais extremos do rock. Como se fosse uma progressão lógica. Sobre eu começar a mexer com música, eu comecei a tocar em Brasília mesmo. Comecei a me perceber vocalista no ano de 1996 fazendo algumas bandas com amigos da escola. Nada muito sério. Em 2000 eu respondi a um anúncio de uma banda de Death Metal local chamada Brutalized, chegamos a gravar uma demo, fazer alguns shows e isso foi o começo da minha caminhada. Curioso que esse ano reencontrei alguns membros da banda e estamos em contato constante, estamos até considerando escrever algumas músicas novas e matar a saudade das antigas. Estou animado pra ver o que sai.
Sobre o Omfalos, eu acho uma das bandas mais autênticas do metal extremo brasileiro. Como vocês tiveram a ideia de começar a banda? Porque é algo raramente feito no Brasil. Uma banda de black metal que acopla influências de outros estilos.
Eu tinha passado uns anos no Canadá e voltei a morar em Brasília em 2008. Um belo dia, por meio de uma grande amiga em comum, eu conheci o Thormianak (segunda metade da banda: guitarra, baixo e teclados). Todo mundo que gosta de black metal no Brasil sabe a importância que o Miasthenia tem no cenário nacional, e, apesar de fazermos parte da mesma cena, até aquele momento eu nunca tinha conversado com ele. No mesmo momento percebemos que tínhamos muito em comum. Além do black metal, descobrimos uma fascinação mútua pelo gótico, pelo punk e pela arte de vanguarda em geral. Naquele mesmo dia, combinamos que montaríamos uma banda. Passamos uns dois anos tentando estabilizar uma formação, até que em 2010 decidimos que seríamos apenas nós dois na banda e convidaríamos um baterista pra nos ajudar. Talvez esse diferencial que você fala venha do fato de que nossa criação veio de um lugar muito honesto, pois nós dois lutamos contra a doença mental. Então toda aquela fúria veio causada pelo nosso próprio tormento. Da nossa incapacidade de lidar com nossos problemas na época. De modo que para exprimir esse sentimento tão visceral de um jeito realmente honesto, nós não poderíamos nos prender a dogmas estilísticos. Tudo ia correndo livremente sem filtros. Claro que isso também tem o seu lado negativo, pois por a música ter vindo de um lugar tão dolorido, as letras de modo geral sempre refletiram toda a nossa dor e história de vida. Então não foi um processo agradável revisitar essas memórias angustiantes e isso causou um dano emocional enorme em nos dois. Tanto ele quanto eu entramos em crises emocionais profundas ao final do último show de 2016 e ainda estamos nos recuperando disso. Mas sobre a variedade sonora, posso dizer que facilita muito o fato de sermos pessoas muito ecléticas. A gente é bastante inspirado por muitas coisas fora do metal, e até mesmo da música. Sempre fui muito interessado por literatura e essa influência se faz muito presente nas coisas que faço até hoje. Então foi muito natural fazer o som desse jeito, nunca pensamos necessariamente em fazer algo diferente, simplesmente saiu assim. Até porque o sucesso da banda não foi algo que antecipamos, pelo contrário, ficamos muito surpresos que as pessoas se interessaram pelo projeto. Apenas fizemos algo do coração, pra deixar a gente feliz e celebrar nossa parceria.
Nos dois discos existe algo como uma assinatura da banda. Mas fica claro que são dois trabalhos distintos com influências diferentes. Você diria que os dois álbuns são conceituais?
Sim, são conceituais, mas de modos diferentes. Eu costumo dizer que o “Cotton Candy Rendezvous” é a conclusão lógica do “Idiots Savants”. O “Idiots”, apesar dos elementos distintos de punk e grindcore, é um disco mais constante dentro do metal. É uma sequência de música bem brutal até a sétima música quando entram em cena as três músicas que fecham o álbum bum clima mais Doom e gótico. E se você reparar bem, o “Cotton” começa exatamente onde o “Idiots” parou. A diferença é que o “Cotton” foi um álbum bem mais lapidado, cheio de camadas e muito mais denso e melódico. Mas sem dúvida, existe uma conexão clara entre os dois. Em termos líricos, o “Idiots” pode ser considerado um disco conceitual por todos os temas estarem ligados à doença mental, mas não existe ali uma história propriamente dita, como é o caso do “Cotton”. No “Cotton” busquei fazer as letras contando uma história tal como os discos do King Diamond e Queensrÿche. Fiz uma história sobre um enterro de uma pessoa onde os parentes e amigos se encontram e dão, cada um, uma visão diferente daquele morto. Para escrever isso, eu imaginei como as pessoas próximas a mim reagiriam com a minha morte, então cada faixa corresponde a visão de uma pessoa que fazia parte da minha vida naquele momento sobre a minha morte. Por causa dessa conexão emocional tão grande, eu não consigo ouvir o disco até hoje e também não me sinto à vontade para compartilhar as letras.
Nota-se muito essa densidade nas faixas, realmente dá pra perceber que são visões fragmentadas. Todas soam um pouco diferente uma da outra.
Sim, captou bem essa ideia de visões conflitantes sobre o mesmo fato. Tem algumas escolas de pensamento que dizem justamente isso, né? Que tudo são interpretações. Na época eu estava lendo muito um livro sobre teoria de identidades de um sujeito chamado Stuart Hall e ele tem um conceito interessante de que as pessoas não são seres unos e constantes. Que na verdade somos um amontoado de facetas. De vários papeis sociais diferentes que a gente assume pra multiplicidade da vida. E o interessante é que muitos desses papéis sociais são conflitantes entre si. Aí tentei colocar essa ideia de identidade fragmentada nas letras.
Você comentou agora sobre Stuart Hall e falou que se interessa muito por literatura. Por “The Naked Lunch” (quarta faixa do primeiro disco “Idiots Savants”) imagino que o Burroughs seja uma grande influência, né? Quais outros autores te inspiram?
Sem dúvida Burroughs é enorme na minha vida. Eu sou muito fã dos métodos dele de escrita automática e processo criativo com colagens.Eu sempre fui muito apaixonado pela visão de mundo mais sensível e multifacetada do Milan Kundera. Admiro muito a literatura russa, gosto de quase todos os góticos e românticos…Mas eu ando numa fase de amor muito grande com a escrita marginal brasileira. De uns tempos pra cá eu decidi escrever minhas letras em português para transmitir toda a visceralidade da nossa língua. E nessa de pesquisar os livros para escrever as letras eu redescobri Lima Barreto, que tem sido minha maior inspiração, e uma infinidade de escritores de fora dos grandes centros urbanos no Brasil. Gente como Ferréz, Marcelino Freitas, Cátia Cernov, Wesley Barbosa, Cidinha da Silva, Ni Brisant, Valdeci Nascimento e tantos outros.A obra desse pessoal surge do Brasil real, o Brasil que sangra, chora e grita para não ser esquecido. Me identifico muito com isso e estou absorvendo loucamente o que essas pessoas têm a dizer.
Voltando pra música um pouco. Nos seus timbres, principalmente no “Cotton”, eu noto uma certa aura Mike Patton. Ali naquelas épocas de “Angel Dust” e “King For A Day (Fool For a Lifetime…)”. Ele é uma influência?
Acertou na mosca. Faith no More é sem dúvida minha maior influência vocal. Eu sempre fui muito apaixonado por essa coisa de vocalistas versáteis. Gente como King Diamond, Mike Patton, o Kyo do Dir En Grey. Eles me inspiraram muito a quebrar os limites e explorar ao máximo os limites da minha voz. “Album Of The Year” é meu disco de cabeceira.
Falando um pouco sobre A Peste, como funciona pra você essa dinâmica com dois vocalistas? Assim como o Omfalos, ali tem uma mistura muito louca de metal, punk e tudo isso, né?
A Peste foi mais ou menos assim: uns amigos meus, tinham uma banda que não ia pra frente nunca. Eles tinham feito um monte de músicas mais puxadas pro punk que eram muito legais, mas por conta de alguns desencontros, nunca acabaram sendo gravadas devidamente. Um belo dia eu os chamei pra tocar comigo e trouxe um guitarrista e um baterista pra gente começar algo. Eles sugeriram usar as músicas que já tinham feito pra essa banda anterior e fazer mais algumas novas. Aí o Marcelo, que era o vocalista da banda anterior pediu pra participar e topamos na hora. Pra mim é sensacional ter dois vocais, pois a gente pode explorar uma gama de texturas muito grande e brincar muito nos arranjos. O Marcelo é um vocalista sensacional e ele tem um estilo mais puxado pro hardcore que casa perfeito com a bagagem death/black que eu trago. Mas é interessante que essa é minha segunda experiência com dois vocais, pois no Godtoth que eu tenho com o pessoal do Facada, eu e o James dividimos os vocais. Sobre a parte sonora da Peste, todos na banda também são bastante abertos a outros tipos de som. Apesar de a veia mais death metal estar sendo a diretriz dos trabalhos mais recentes e do vindouro, sempre tem muita coisa de punk, Doom, noise no meio.
Como você falou sobre o Godtoth, o “Satanic Holocaust” é um dos discos mais legais que eu ouvi no ano passado, que foi quando eu descobri o projeto.
Esse ano estou indo em Fortaleza pra gravar o segundo!
Eu adorei essa pegada do disco. Parece que é um disco de metal pensado pra ser mais cru, mais direto ao ponto e ligado até a alguns “clichês” do metal extremo. Era essa a intenção mesmo? Um disco rápido e divertido?
A ideia do Godtoth é justamente essa, ser um tributo a todos os clichês/clássicos do metal extremo. Então é um disco feito pra celebrar essas bandas incríveis que nos inspiram tanto. Dá pra reparar que ele é cheio de pequenas referências e citações a várias bandas clássicas. É um disco que tenho muito orgulho de ter participado.
Pel’A Peste e também por algumas outras coisas, noto que você é uma pessoa bem politizada. Agora há pouco o Bolsonaro foi eleito no Brasil e, por incrível que pareça, muitas pessoas no cenário metal eram eleitores e defensores ferrenhos. Como você enxerga isso?
Eu enxergo isso como uma constatação muito assustadora. É lamentável a falta de consciência de classe e a incompreensão das pessoas enquanto entes políticos. É triste ver quantas pessoas foram seduzidas pelo discurso fácil do ódio e das soluções supersimplificadas. Mas também mostrou o quanto estamos cercados de intolerância, racismo e ódio por todos os lados. O metal como uma micro representação da sociedade também está incluso nessa triste realidade. Mas nós, como banda, e entes políticos nos posicionamos contra toda forma de opressão e discurso de exclusão que possa existir. Lutamos ferrenhamente contra toda forma de fascismo. E em tempos como esses, se posicionar claramente é mais do que necessário. Mas curioso é ver que dentro do punk e do hip hop essa praga também conseguiu se infiltrar. De um certo modo, acho que era até previsível esse apoio por parte do metal, pois tem uma turma que sempre foi mais reacionária mesmo. Vide os black metal nazista que abundam por aí. Coerência nunca foi o forte deles. Mas é muito doido, o nível do debate político é muito superficial. As pessoas não buscam se informar, nessas eleições mesmo boa parte do arcabouço argumentativo das pessoas veio de opiniões de YouTubers e memes e isso é assustador. Pouca gente tem lido, andado pelas quebradas e conversado com a população do Brasil profundo pra realmente entender o que se passa. Afortunadamente, a esmagadora maioria dos meus amigos e pessoas que admiro na cena foram contra esse retrocesso louco.
Aproveitando, como você avalia a cena underground aí de Brasília?
A cena aqui tá muito boa em termos de bandas, mas meio fraca de eventos. A safra de 2010 pra cá tem sido sensacional, um monte de bandas muito originais como Absent, Extinction Remains, A Vala Comum, Caligo, Into The Dust, Burial Temple, Vox Nihili, Kurgan, Abismo, isso sem falar do legendário Subterror do nosso saudoso Samuel (RIP). Tem as bandas fuleragem, claro, mas as bandas legais sobressaem.
Você pode falar um pouquinho sobre suas atividades paralelas à música? O que você faz profissionalmente.
Eu sou formado em comunicação e em direito. Hoje em dia eu tenho um curso de inglês para empresas e também faço pesquisas na área de semiotica e filosofia da linguagem. Além disso, tenho um estúdio de gravação com meu parceiro Nicolas d’A Peste.
Você comentou sobre a doença mental. E obviamente isso é grande parte da sua arte. Você acha que criar arte, música, literatura, ajuda no tratamento ou pelo menos no alívio desses problemas?
Ajuda em vários sentidos. Primeiro que é uma bela válvula de escape pra deixar sair todos esses turbilhões de sentimento. Pra mim é libertador colocar toda essa angústia pra fora e, mais do que isso, perceber que não sou o único a passar por isso. Na verdade eu acabei por descobrir a importância de se dar visibilidade à doença mental. Várias pessoas entraram em contato comigo pra comentar sobre, que se sentiram representadas e até mesmo motivadas a buscar ou continuar seus tratamentos. E é de uma alegria enorme saber que posso ajudar em algo nessa causa tão séria que já levou embora tantos de nós. Tento escrever de um modo que não glorifique ou romantize as condições mentais, mas sim humanize e traga uma perspectiva diferente sobre esse tipo de transtorno. Temos que cuidar um do outro sempre. E não mistificar a condição é um passo vital pra essa causa.
Bom, para finalizar. Vi que vocês decidiram dar um tempo com o Omfalos, por que tomaram essa decisão? E, sobre o Cotton você disse que não se sente confortável, mas algum dia será que vamos ver as letras do “Idiots Savants”?
A gente deu um tempo justamente para refrescar emocionalmente. O processo do “Cotton” foi muito penoso pra gente, então decidimos dar mais um tempo pra lançar o próximo trabalho, que inclusive já está praticamente todo gravado. Como nós dois tivemos essas crises emocionais, preferimos focar agora na nossa melhora pra poder voltar depois de um jeito mais sereno no lidar. Além disso, tem o fato de o Miasthenia ser uma banda mais ativa e estar num ciclo de tour pela Europa e pelo Brasil. Mas em breve vai sair o trampo novo, que está bem diferente! Sobre as letras, vou ver se solto ocasionalmente em uma coletânea de textos que estou preparando pra lançar ano que vem. Aí todo mundo vai poder ver o que aquela gritaria toda quer dizer.
– Guilherme Lage (www.facebook.com/breadandkat) é jornalista e mora em Vila Velha, ES.
Que matéria sensacional. Zé é um cara de um coração enorme, amigo e parceiro para toda obra. Aguardando ansioso por futuros projetos.