Texto por Renan Guerra
A vida de Elza Soares é tão conhecida quanto suas músicas. Todo fã de Elza já se deparou inúmeras vezes com a tal história dela indo ao programa de Ary Barroso e dizendo que vinha do “Planeta Fome”. Sua trajetória de lutas e um sem-número de percalços é sinônimo de resistência e força e por isso mesmo já foi esmiuçada de diferentes formas: já foi tema da excelente biografia “Elza Soares – Cantando Para Não Enlouquecer”, de José Louzeiro, de 1997, e retorna agora as livrarias pelas mãos de Zeca Camargo no livro “Elza”. Além disso, Elza é figura importante do livro “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha” (1995), de Ruy Castro, que foi levado às telas de cinema (“Garrincha – Estrela Solitária”, de Milton Alencar, 2003) e teve Taís Araújo no papel de Elza.
A questão é: como remexer mais uma vez na história de Elza? Há perspectivas novas a serem expressas? Esse é um desafio que o espetáculo “Elza” resolve de forma surpreendente. Dirigido por Duda Maia, com texto de Vinicius Calderoni e arranjos musicais de Letieres Leite, a peça – algo entre o musical, o experimento cênico e a dramatização – se atem em passagens bastante fortes e fundamentais da vida de Elza: sua infância, o início de sua carreira, a perda de seus filhos e seu amor desmedido por Garrincha, todas passagens já bastante conhecidas da vida da cantora, mas mesmo assim o espetáculo traz fôlego novo a essas histórias.
Com sete atrizes no palco, mais seis musicistas, “Elza” constrói-se em atos demarcados pelas cores da iluminação, pelos figurinos das protagonistas e pelos objetos cênicos que elas portam. Latas d’água são usadas de diversas formas no primeiro ato, assim como uma espécie de carrinho ganha múltiplas utilidades no ato seguinte. A simplicidade da construção dos cenários e da iluminação dá espaço para a grandeza da atuação das cantoras e atrizes Larissa Luz, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte, Janamô, Júlia Tizumba e Verônica Bonfim. Larissa é a Elza central, porém todas se revezam na figura da cantora, assim como passeiam por outras personagens, em construções cênicas bastante específicas.
Falando assim, pode soar como um espetáculo cabeçudo, muito conceitual, porém o texto é extremamente inteligente em guiar o espectador por essas construções sem se perder nas linhas narrativas. O fato do espetáculo assumir o seu recorte de forma bem clara é um ponto crucial para que o espectador entenda as escolhas feitas, isto é, muita história ficou de fora. São mais de 80 anos de vida, não cabe tudo num espetáculo, mesmo considerando-se o fato de que a sessão durou praticamente duas horas e meia.
Nesse tempo canções das diferentes fases de Elza surgem em cena: “Beija-me”, “Se Acaso Você Chegasse”, “Espumas ao Vento”, “Língua”, “Pra Foder” e tantas outras formam um excelente panorama da diversidade do trabalho da cantora. Momentos importantes são as duas passagens em que a triste “O Meu Guri” (Chico Buarque) aparece, pois a voz de Khystal é dolorosa ao entoá-la. Já a primordial “A Carne” ganha releitura em coro, incluindo novos versos em seu final, a dizer “a carne mais barata do mercado FOI a carne negra” – após esse número, a plateia que lotava o Teatro Paulo Autran, no SESC Pinheiros, ovacionou as meninas, aplaudindo-as de pé por alguns minutos, isso antes mesmo de o espetáculo terminar.
Todas as atrizes que compõem “Elza” são espetaculares e cada uma tem o seu momento de brilhar em números musicais que mostram a potência vocal e a entrega delas, tudo isso sempre respeitando a diversidade do elenco e das vozes que construíram a peça. De todo modo, Larissa Luz – que também trabalhou na direção musical do espetáculo, ao lado de Pedro Luís e Antônia Adnet – é uma força da natureza a parte. Ela consegue encarnar Elza de uma forma extremamente única; estão ali os trejeitos, os maneirismos da voz, o riso único, porém nada é caricato, há um respeito em construir essa personagem, em desenvolvê-la de forma plena.
“Elza”, no final das contas, consegue desenhar de forma satisfatória todas as nuances de uma personagem complexa e compreende essa narrativa como exemplo de força e garra, sem cair na pieguice. A confluência entre música, luz e atuação faz desse espetáculo um acontecimento importante que precisa ser visto, do tipo “leve sua mãe, sua irmã, sua tia, sua amiga”, leve mais gente para ver essa peça. É preciso celebrar a existência de todas essas mulheres que construíram esse fascinante trabalho!
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o site A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.