entrevista por João Paulo Barreto
Ator, apresentador, cineasta e escritor de literatura infantil, o baiano Lazaro Ramos mergulha na história dos 25 anos do Bando de Teatro Olodum em “Bando, Um Filme de” (2018), documentário em que assina a direção ao lado de Thiago Gomes e que busca “plantar uma semente de reconhecimento” sobre um projeto teatral que não apenas o moldou (“Eu fui cozido nesse caldo”) como é “um grupo de teatro com uma composição imensa de atores negros que tem a maior longevidade da América Latina”.
Criado em Salvador nos anos 90 em parceria com o Grupo Cultural Olodum, a companhia Bando de Teatro Olodum foi responsável por lançar Lázaro Ramos e também Érico Brás. O documentário foi lançado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (há, ainda, uma exibição agendada para o dia 29/10, às 17h50, no Espaço Itaú Frei Caneca) e compila imagens de arquivo (como cenas e extras do filme “Ó, Pai, Ó”, de 2007), material coletado de extensas entrevistas com membros do Bando de vários épocas, colaboradores e outros convidados.
Além desse resgate, o filme também traz a imprescindível questão da resistência de uma companhia de teatro cujas dificuldades enfrentadas vão de encontro com a sua incrível longevidade. “Como conseguiu resistir por tanto tempo? Era justamente esse assunto que a gente queria tratar”, explica Lázaro. “É sobre resistência, e como, durante esses 25 anos, foi produzido teatro na nossa terra”, completa. Sobre o processo de construção e a importância política e social da obra e de sua carreira, o ator baiano falou com exclusividade com o Scream & Yell.
Em “Bando, Um Filme de” mais do que a documentação cinematográfica dos 25 anos do Bando de Teatro Olodum, o que temos é um registro do grupo como símbolo de resistência artística e política. Desde o primeiro esboço era essa a intenção?
O lugar inicial foi justamente esse. Tínhamos as imagens da leitura de “Ó Paí Ó”, que eram apenas registros que a gente queria fazer, mas que se tornou uma pergunta, na verdade. Uma pergunta que era muito forte, pelo menos no meu coração: como é que esse grupo tão grande de pessoas conseguiu permanecer por tanto tempo em atividade, muitas vezes sem remuneração, falando coisas que não estavam usualmente no palco? Como conseguiu resistir por tanto tempo? Era justamente esse assunto que a gente queria tratar. É sobre resistência, é sobre processo criativo, e é como, durante esses 25 anos, foi produzido teatro na nossa terra. No filme, você vê que a gente fala um pouco de outros grupos que existiam, mas nós tínhamos o bando como protagonista dessa história. Mais ainda: tínhamos esses atores e suas histórias de vida como protagonistas.
O filme, neste aspecto, traz uma imprescindível mensagem relacionada à urgência e à permanência do Bando. Inclusive, o ator Jorge Washington fala da necessidade de ser ativista quando também se é ator em Salvador.
Eu acho que essa é uma mensagem importantíssima para esses tempos: estar no palco é ser ativista, sim, hoje em dia. Permanecer no palco, lutando para levar arte para a vida das pessoas, levar reflexão para a vida das pessoas, tentar transformar as realidades, é, sim, resistir. É, sim, lutar para que a gente viva em um país com menos barbárie do que a gente está se encaminhando para viver.
No processo de construção, com a estrutura seguindo o formato de entrevistas contínuas, houve algum receio de que o ritmo do filme fosse prejudicado?
Não temi isso, não. Por uma coisa: eu acho que esses atores e atrizes, os entrevistados, têm tanto a dizer que isso, por si só, já seria importante e cativante. Um dos fatos que ajudou foi o de eu não ser o entrevistador durante a feitura do filme, pois eles não estavam falando nada para Lázaro, para o amigo e o parceiro de trabalho. Muito pelo contrário. As perguntas todas eram feitas para os instigarem, deixando que eles falassem por muito tempo. O material bruto é gigantesco, porque as pessoas queriam muito falar. Era a busca pela voz do individuo que está ali no bando. De todas as gerações. E isso acontecia de uma maneira muito linda. A gente teve uma dificuldade para chegar a esse formato final, porque as pessoas queriam muito falar. Queriam muito ter aquele espaço, aquele microfone que muitas vezes é negado a esses atores individualmente. Às vezes, em um grupo de teatro, você fala do coletivo, um ou outro tem a oportunidade de dar uma entrevista quando vai divulgar uma peça. Quando se tem um trabalho solo, fala um pouco mais. Mas, eu senti muito de que era um momento único para esses atores todos. E isso produziu pérolas. As pessoas dizem coisas que às vezes eu até converso: “gente, vocês sabem o que estavam dizendo? Compartilhando com o mundo?” (risos). Mas é esse desejo de ser escutado e ter o microfone na mão. São histórias que se misturam histórias de vida e histórias pessoais das pessoas.
Como foi revisitar sua memórias no Bando, o grupo no qual você foi criado? Foi difícil?
Não, foi muito fácil. Eu queria muito falar sobre isso. Tem uma coisa que eu acho que a gente fala pouco. Que a nossa própria terra reconhece pouco, e o Brasil nem se fala. Mas a gente tem na Bahia, em Salvador, um grupo de teatro com uma composição imensa de atores negros que tem a maior longevidade da América Latina. A gente não fala isso. Isso é um título importantíssimo de ser reconhecido. E eu sempre falo isso. Em todas as entrevistas, em todos os lugares. Porque eu acho que isso é importante demais para não ser reconhecido, valorizado e celebrado. Isso é nosso! Essa é a nossa história. Essa é uma contribuição para a cultura do nosso país que ainda não foi devidamente reconhecida. Eu acho, inclusive, que esse documentário é pouco. Eu acho que muito mais poderia ser falado. Esse é mais um traço da nossa história que a gente eclipsa. Que a gente silencia. E o documentário vem justamente para isso. Para plantar uma semente de reconhecimento. E hoje em dia, posso até acrescentar, não é só o bando. Eu acrescento que é o teatro feito na Bahia e que é o teatro que nos forma, que me formou e é onde estão os meus primeiros ídolos. É o teatro onde a gente tem artistas e uma mão de obra que é única no nosso país.
Existe uma questão que me incomoda no cenário artístico baiano que é uma ausência de um posicionamento político. Com algumas exceções, diversos cantores e atores baianos se eximem dessa responsabilidade como formadores de opinião. Você, como alguém sempre presente nessa questão, acha o que dessa inércia?
Cara, se posicionar politicamente depende de várias coisas. Primeiro do desejo, segundo do repertório. A gente às vezes acha que todo artista tem um repertório vasto de conhecimento sobre todos os assuntos. E às vezes não é assim. Às vezes, quando a pessoa vai falar, ela se expõe nas suas fragilidades, na sua ignorância, também. Acho que a gente precisa reconhecer isso. E tem as estratégias políticas de cada pessoa. Tem gente que opta por outras coisas. Eu posso falar de mim, da minha história. Eu fui cozido nesse caldo. Eu comecei a fazer teatro com 15 anos de idade no Bando de Teatro Olodum. Foi assim que eu fui capacitado. Os meus interesses artísticos e cidadãos, as informações que eu vou buscando para me capacitar, são muito nesse sentido. E isso é um repertório que é muito particular. Eu não faço fogo amigo contra a minha classe, entende? Eu posso falar de mim, da minha vivência, daquilo que o Bando me deu e me ensinou. E também daquilo que a minha família, que muitos deles moram na periferia de Salvador, ou em bairros pobres da nossa cidade, vivem no dia a dia e isso é algo que eu enxergo. E por isso me motiva. Nem todo mundo tem essa vivência e capacitação. Inclusive, para mim o inimigo não é esse cara (esse artista que não se posiciona). Para mim o inimigo é o que fala a favor da barbárie, quem incentiva a violência, quem não incentiva a escuta, quem acha que não vai ser tão ruim assim. Para mim é mais importante falar contra a barbárie. E essa barbárie não vem desse lugar. Vem de outro que é o risco iminente e que só vai aumentar a nossa luta. E que já está aí há muitos anos. Na verdade, agora, para te falar bem a verdade, eu estou recolhendo forças por saber que a luta continuará e talvez aumente. E essa é uma luta que não começa agora, pelo menos na minha vida. Principalmente por vir de um bairro como o Garcia e da Federação, em Salvador, que tem demandas muito ligadas às questões sociais. Por ser um homem negro, por ser nordestino, por ser ator de teatro, desse que é o Bando de Teatro Olodum. E isso convoca a gente todos os dias. A convocação à luta é uma coisa que é permanente na vida. E quando a gente acha que vai descansar, na verdade a gente percebe que a luta permanecerá. É um momento recolher forças.
A luta e a arte são indissociáveis nesse caso.
A gente vem lutando há anos, cara. Isso é uma loucura. A luta permanece. É uma vida sem descanso. Mas vamos lá. É isso. No meu caso, pelo menos, eu acho que algo que alenta é ter a arte como arma, também. E que bate em um outro lugar. Que bate no emocional, na afetividade, e que é muito poderosa. Eu acredito muito no poder da palavra, da afetividade e da arte. E disso aí a gente não pode abrir mão.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. As fotos são, por ordem sequencial na página, de Bob Wolfenson, Isabel Gouvea e Diney Araujo / Divulgação.