Boteco: Cinco países, dez cervejarias

por Marcelo Costa

Abrindo uma seleção de cervejas e países pelos Estados Unidos, mais precisamente por Cloverdale, cidade californiana a menos de duas horas de São Francisco, casa da Bear Republic, icônica cervejaria fundada em 1995 que já passou por aqui com as excelentes Hop Rod Rye, Big Bear Black Stout e a Racer 5, e agora retorna com a Hop Shovel, uma baita American IPA tradicional produzida com centeio e trigo e os lúpulos Mosaic, Denali e Meridain. De coloração âmbar alaranjada com creme bege clarinho de boa formação e média alta retenção, a Bear Republic Hop Shovel exibe um aroma que equilibra notas cítricas (maracujá) e herbais (levemente mais intensa) com a percepção de caramelo derivada do malte com um toque resinoso (total old school IPA). Na boca, doçura caramelada e herbal no primeiro toque seguidos de amargor médio, mas muito mais sossegado do que os 100 IBUs que a cervejaria acusa – vou fechar em 60, mas ainda assim acho exagerado. A textura é meladinha com leve picancia. Dai pra frente, uma Old American IPA do primeiro time, tão boa quanto a Racer 5. No final, bastante herbal e amargor leve. No retrogosto, mais amargor, caramelo, pinho e grapefruit.

Mantendo-se na Califórnia com a primeira da mítica AleSmith a passar por aqui (no meu Untappd será a quarta), cervejaria badalada e bastante premiada fundada em San Diego em 1995. Na lata, a cervejaria define essa cerveja como “San Diego Style India Pale Ale”: trata-se de uma cerveja de coloração âmbar alaranjada com creme branco espesso de ótima formação e retenção. No nariz, uma bela combinação de lúpulos cítricos e herbais sugerindo pinho, toranja e tangerina sobre uma base de malte caramelo e de mel. Há, ainda, percepção resinosa. Na boca, doçura meladinha chega um microssegundo antes no primeiro toque do que a avalanche de notas cítricas, herbais e resinosas que passam na sequencia atropelando tudo e deixando para trás muito sabor e um pancadinha de amargor (são 73 IBUs e 7.25% de álcool), que só acrescenta impacto ao conjunto caprichado. A textura é suave e picante. Dai pra frente, uma West Coast IPA do primeiro time, imensamente saborosa, refrescante e amarga, mas com doçura (e cítrico, e herbal) também presentes. No final, amargor, herbal e resina… suaves. No retrogosto, adstringência, mais resina, pinho e toranja. Que delicia!

Agora no Brasil, mas mantendo-se ainda no território das American India Pale Ale, com a Dado Bier Session IPA, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. De coloração âmbar caramelo com creme bege clarinho de boa formação e média retenção, a Dado Bier Session IPA exibe um aroma de notas frutadas doces e cítricas (grapefruit, maracujá e mamão) sobre uma base discreta de malte caramelo. Na boca, um correto replay do que o aroma adianta com frutado cítrico e leve doçura caramelada no primeiro toque seguidos de refrescancia e amargor baixo, 40 IBUs amaciados pelo malte. A textura traz leve metálico, efervescência e picância. Dai pra frente, surge uma Session (Caramel) IPA muito mais doce do que cítrica, mas, ainda assim, bastante interessante num resultado correto e de bom custo / beneficio. No final, doçura meladinha cítrica. No retrogosto, laranja, mamão, leve pinho e caramelo.

Seguindo com outra India Pale Ale quase tradicional, e quase porque recebe nitrogênio líquido e uma baixa concentração de CO2 no envase, o que a deixa a espuma mais cremosa e o corpo mais denso. De coloração dourada levemente turva (a frio) e creme branco com traços beges de boa formação e média alta retenção, a Maniacs Nitro IPA exibe um aroma West Coast, com bastante frutado (manga à frente, mas também abacaxi e laranja) e herbal (pinho) sobre uma base caramelada e levemente resinosa. Na boca, doçura frutada (manga) rápida no primeiro toque seguida de amargor pronunciado e resina na sequencia, honrando os 55 IBUs. A textura é suave com leve picância. Dai pra frente, uma boa West Coast IPA nacional, com o nitrogênio conferindo mais corpo. No final, amargor médio e herbal intenso (tipo bala de hortelã). No retrogosto, mais hortelã, um pouco de frutado e caramelo e refrescancia. Uma boa surpresa.

Do Brasil para a Alemanha com mais uma Freigeist, a Medusalem Eisbock, um estilo bastante particular que prevê o congelamento da cerveja para extração da água e, como resultado, o conteúdo fique mais concentrado, encorpado, maltado e, principalmente alcoólico (no caso dessa são 18% de álcool!). A base de uma Eisbock é a Adambier, estilo tradicional de Dortmund, uma versão mais forte da Altbier. De coloração marrom extremamente escura, praticamente preta, com creme bege claro de ótima formação e média alta retenção, a Freigeist Medusalem Eisbock exibe um aroma com notas doces e frutadas sugerindo calda de ameixa, alcaçuz, açúcar mascavo e amadeirado sutil. Ainda há leve percepção de álcool (bem leve para o tanto de álcool que carrega). Na boca, muita doçura, mas também café no primeiro toque. Na sequencia, pegada licorosa, café, alcaçuz, calda de ameixa, terroso e quase nada de álcool (vai ser difícil levantar da cadeira depois). A textura é licorosa (como era de se esperar). Dai pra frente, terroso, café, açúcar mascavo, calda de ameixa e álcool, ainda que sutil. No final, calda de ameixa, terroso. No retrogosto, o terroso persiste e é seguido por ameixa e calor alcoólico. Ótima!

A segunda alemã é da lendária Weihenstephaner, a cervejaria mais antiga do mundo, que surge aqui numa colaborativa com a norte-americana Sierra Nevada. Juntas, as duas cervejarias pensaram em uma Hop German Hefeweizen (claro) que une o tradicional lúpulo alemão Hallertauer Tradition aos made in USA Amarillo e Chinook. O resultado é uma cerveja âmbar turva de creme bege majestoso de excelente formação e eterna retenção. No aroma, em um primeiro momento, percepção tradicional de banana e condimentação, e a percepção é de que a levedura atropelará os lúpulos, mas com calma começam a surgir nuances frutadas diferenciadas. Na boca, as coisas mudam radicalmente já no primeiro toque, que traz além de banana e condimentação, pêssego e toranja também, acrescentando uma leve pegada tropical no percurso que se segue, e também amargor, sutil, mas presente (35 IBUs). A textura é sedosa com leve condimentação. Dai para frente, um conjunto que se posiciona no meio do caminho entre uma Weiss tradicional e uma cerveja lupulada. No final, condimentação e mais presença de lúpulo do que de levedura – o que é bem interessante. No retrogosto, a banana fica muito mais macia do que numa Weiss tradicional abrindo espaço para toranja, pêssego e maçã, além de condimentação. Bela!

Da Alemanha para Quenast, na Valônia belga, casa da Brasserie Lefebvre, responsável por, entre outras, a linha da Abadia Floreffe além de boas cervejas como a Hopus e a Saison 1900. Aqui temos a Moeder Overste (traduzindo: Madre Superiora), uma Belgian Triple (tradicionalíssima) produzida desde 1985. De coloração dourada com creme branco majestoso, espesso e longa retenção, a Moeder Overste exibe um aroma caprichado com sugestão de frutas cristalizadas, damasco e tanto maçã quanto abacaxi em calda na panela além de doçura de mel e leve percepção de condimentação. Na boca, pegada frutada no primeiro toque, mas muito mais sutil do que o aroma faz imaginar. Na sequencia, leve metálico e, também, leve percepção dos 8% de álcool com um amargor leve, mas presente, acompanhando (e até surpreendendo). A textura é suave e picante de álcool (facilmente perceptível). Dai pra frente, bastante álcool, mas as frutas cristalizadas que ajudam a disfarçar a potência alcoólica. No final, frutas cristalizadas e calor alcoólico (e até leve amadeirado). No retrogosto, mais frutas cristalizadas, mais álcool e calor.

A segunda belga é um exemplar da novíssima Lambieik Fabriek, cervejaria de três amigos que vinham produzindo pequenos lotes de Lambic nos últimos 10 anos, mas que depois de receberem um grande volume de barris em um determinado mês (muito acima do tradicional), decidiram profissionalizar a produção (na maneira belga de ser). Nascia mais uma cervejaria especializada em Lambic. Esta Oude Geuze Brett-Elle é um blend de cervejas novas e mais antigas refermentadas com levedura selvagem. De coloração amarela levemente turva e dourada com creme branco de boa formação e média alta retenção, a Oude Geuze Brett-Elle exibe um aroma que combina as notas tradicionais de celeiro, couro, feno e suor de cavalo com leve cítrico puxado para limão, pêssego e maçã verde. Há, ainda, doçura de malte quase imperceptível e o funky da levedura selvagem. Na boca, doçura de malte e leve acidez no primeiro toque se abrindo para um conjunto provocante na sequencia, mas, ainda assim, levemente arisco perto de Geuzes mais tradicionais (e também com um sabor mais… cristalino). A textura oferece frisante bem suave e, dai pra frente, a sensação de fazenda, celeiro e feno é incrível, com um toque intenso de acidez de limão. No final, azedinho de limão. No retrogosto, mais limão e também maçã verde e feno. Delicinha!

Dá Bélgica para a Dinamarca com mais uma representante da Mikkeller (produzida na Bélgica), a Hair In The Mailbox (algo como “cabelo na caixa de correio” que, no ditado dinamarquês, significa “você está com um problemão”), uma American IPA de coloração dourada e creme branco de ótima formação e média alta retenção. No nariz, aroma cítrico delicioso remetendo primeiro a toranja, depois a abacaxi e laranja. Ainda é possível perceber pinho, grama, pão, caramelo bem suave e feno. Na boca, replicação caprichada do aroma com pancada cítrica no primeiro toque se abrindo com leve doçura de fruta na sequencia e, depois, grama, herbal, caramelo e amargor bem suave. A textura é suave, quase cremosa, e picante. Dai pra frente (com o amargor marcando a língua) segue-se um conjunto bem saboroso, com predomínio de notas cítricas, depois herbal e só então doçura maltada. No final, secura leve, amargor herbal. No retrogosto, caramelo, toranja, abacaxi. Delicinha.

Fechando o passeio com a terceira dinamaraquesa da Amager a aparecer por aqui, La Santa Muerte, uma Russian Imperial Stout que combina os maltes Pilsner, Crystal 150, Caraaroma, Chocolate, Black e Roasted Barley com os lúpulos Herkules, Columbus, Simcoe mais mel e açúcar Demerara. Na taça, ela apresenta coloração marrom bastante escura (quase preta) com creme bege de boa formação e média alta retenção. No nariz, doçura de chocolate ao leite, mel e baunilha se destacam no primeiro momento com café bem suave, chocolate amargo e um tiquinho dos 10 % de álcool (o café aumenta a presença conforme a cerveja aquece na taça). Na boca, maior equilíbrio entre café e chocolate ao leite já no primeiro toque, e se estendendo deliciosamente para a sequencia, que ainda traz mel, baunilha, alcaçuz e leve sensação de amargor derivada da torra do malte. A textura é suave com leve picância alcoólica. Dai pra frente, um conjunto sublime e perfeitamente equilibrado (café, mel, chocolate, baunilha) que finaliza com adocicadinho e leve álcool. O retrogosto traz café verde, chocolate a alcaçuz. Delicia.

Balanço
Abrindo a série com a deliciosa Bear Republic Hop Shovel, uma American IPA das antigas, resinosa, herbal e levemente amarga. Uma delicia. Mantendo o adjetivo na área, delicia também cabe para a incrível AleSmith IPA, uma clássica West Coast de San Diego. Hummm. Vou confessar: eu não esperava nada da Dado Bier Session IPA, e não é que ela se tornou a minha cerveja favorita desta cervejaria gaúcha. Eis uma Session IPA corretinha, ainda que excessivamente doce, mas aceitável e num bom custo / beneficio. Mantendo-se essa linha mais simples de IPA, a Maniacs Nitro IPA soa ainda melhor do que a anterior, com o CO2 melhorando o conjunto. Partindo para um estilo raro, Eisbock, na versão da alemã Freigeist, que recria esses estilos antigos, e aqui produz a Medusalem, com 18% de álcool excelentemente escondidos num conjunto bem doce, mas também frutado e amadeirado. Ótima! Melhor ainda é a parceria da mítica Weihestephaner com a Sierra Nevada, uma Hop Weiss bem saborosa e lupulada. Adorei. Agora na Bélgica, a Moeder Overste é uma Belgian Triple bem frutada… e beeem alcoólica (pros seus 8%). Já a Lambiek Fabriek Oude Geuze Brett-Elle foi uma surpresa bastante agradável, um Lambic bem saborosa e muito menos arisca do que as tradicionais.

Bear Republic Hop Shovel
– Produto: American IPA
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 7.5%
– Nota: 3,77/5

AleSmith IPA
– Produto: American IPA
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 7.2.5%
– Nota: 3,84/5

Dado Bier Session IPA
– Produto: Session IPA
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 4.1%
– Nota: 3.19/5

Maniacs Nitro IPA
– Produto: American IPA
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 4.1%
– Nota: 3.39/5

Freigeist Medusalem
– Produto: Eisbock
– Nacionalidade: Alemanha
– Graduação alcoólica: 18%
– Nota: 3.95/5

Weihestephaner Braupakt
– Produto: Hop Weiss
– Nacionalidade: Alemanha
– Graduação alcoólica: 186
– Nota: 4.00/5

Lefebvre Moeder Overste
– Produto: Belgian Tripel
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 8%
– Nota: 3.33/5

Lambiek Fabriek Oude Geuze Brett-Elle
– Produto: Gueuze
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 5.5%
– Nota: 4.01/5

Mikkeller Hair In The Mailbox
– Produto: American IPA
– Nacionalidade: Dinamarca
– Graduação alcoólica: 6.3%
– Nota: 3.42/5

Amager La Santa Muerte
– Produto: Russian Imperial Stout
– Nacionalidade: Dinamarca
– Graduação alcoólica: 10%
– Nota: 3.95/5

Leia também
– Top 2001 Cervejas, por Marcelo Costa (aqui)
– Leia sobre outras cervejas (aqui)

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