entrevista por Renan Guerra
Versando de forma agridoce sobre as agruras de existir em nosso tempo, os gaúchos da Dingo Bells construíram uma sólida base de fãs tendo apenas um disco como bagagem, o excelente “Maravilhas da Vida Moderna” (2015), que lhes levou ao palco do Festival Morrostock e do Lollapalooza Brasil 2016 e rendeu dois troféus do Prêmio Açorianos de Música 2015 (nas categorias Composição Pop e Projeto Gráfico).
Três anos se passaram desde a estreia e agora eles lançam seu segundo disco, “Todo Mundo Vai Mudar” (2018), produzido por Marcelo Fruet e viabilizado através do edital da Natura Musical. Expandindo seu olhar sobre a maturidade, o trio – Felipe, Rodrigo e Diogo – mergulhou mais fundo na busca pela compreensão do nosso tempo, tudo em embalagem pop e poética bastante envolvente.
Em sua passagem por Santa Maria (RS) no que seria o terceiro show oficial de lançamento do disco, numa noite muito fria, no Theatro Treze de Maio, a banda me recebeu para uma conversa sobre o novo disco. Com ares de espetáculo de teatro, o novo show conta com projeções e momentos especiais, que mostraram a grandiosidade que o Dingo Bells assume no palco e perante o público.
No camarim, antes do show, Felipe Kautz (baixo e voz) contou como foi a produção e a pressão do segundo disco, a presença do guitarrista Fabrício Gambogi na banda e o novo show e o desenvolvimento do projeto com a Natura Musical. Rodrigo Fischmann (voz e bateria) chegou logo depois para acrescentar seu olhar sobre o tema que circunda “Todo Mundo Vai Mudar”: incertezas. Confira o papo!
“Todo Mundo Vai Mudar”, o novo disco, teve as canções compostas num tempo mais curto, de dois meses. Como foi esse processo de produção do segundo disco.
Felipe: Entre tapas e beijos. [risos] Foi um processo interessantíssimo e acho que muito enriquecedor. Ele cobrou seu preço sim, a gente teve que aprender a se comunicar muito melhor enquanto um grupo que compõe, então tu tem que estar aberto a ouvir crítica em relação às coisas que tu faz e também tem que galgar ali o teu espaço pra poder criticar o que vem de fora. Então eu acho que a gente brinca com esse negócio de tapas e beijos, mas de fato foi isso que rolou. Porém a banda saiu com mais força desse processo, por que a gente já está junto há tanto tempo que tu meio que aclara as vias do diálogo e da comunicação. Foi muito proveitoso. E a gente acabou achando no disco o lugar do nosso denominador comum, digamos assim, em termos de criação. Então, foi muito massa.
Mas vocês tinham algum tipo de pressão já que o primeiro disco foi muito bem recebido pelo público?
Felipe: Cara, algum tipo de pressão eu acho que sim. Acho que o que rolou com o “Maravilhas [da Vida Moderna]” foi algo que nos pegou de surpresa também. O disco teve uma repercussão, em termos de imprensa, público e etc., maior do que a gente imaginava. Claro que a gente se esforçou para isso, trabalhou para isso e era isso que a gente queria, mas nunca tem como saber o que vai rolar. Então, para esse segundo disco, rolou meio que certa tensão pra entender o que do “Maravilhas” tinha feito ele rolar tão bem e eu acho que a ideia num segundo trabalho é meio que tu tentar pegar aquelas coisas que funcionaram e levar elas adiante, somadas a outras coisas pra tu seguir contando uma história, chegando até as pessoas. Então, a tensão que rolou foi um pouco isso, pra gente tentar descobrir quem a gente era e o que a gente queria propor e dar um passo adiante com relação ao primeiro disco.
E você acha que vocês conseguiram descobrir de alguma forma quem vocês eram nesse processo ou ainda não?
Felipe: Acho assim: a nossa carreira é uma coisa que já vem de um tempinho e a ideia é estender ela ao longo da nossa vida, então tu nunca sabe onde tu vai parar ou qual que é o teu limite. A gente ficou super feliz com o resultado do disco, a gente acha que é um disco que é resultado do afloramento das individualidades. Eu acho que todo mundo se descobriu um pouco mais enquanto músico, enquanto artista, enquanto compositor. E o trabalho que a gente fez foi tentar deixar essas coisas virem à tona e encontrar aquilo que era comum entre nós quatro. Entre nós quatro no caso eu estou adicionando o Fabrício Gambogi, que é o guitarrista e arranjador que já nos acompanha há alguns anos e que no “Todo Mundo Vai Mudar” compôs as músicas junto com a gente.
Isso eu ia perguntar: o nome dele sempre aparece junto da banda, mas como um agregado, digamos assim, de todo modo, ele trabalha com vocês há muito tempo, não?
Felipe: Exato. A gente conheceu o Fabrício quando a gente ainda tava na escola de música, quando tinha, sei lá, 13 anos de idade. E depois de muitos anos ele passou a trabalhar com a gente. Chamamos ele pra fazer alguns arranjos de sopros e no final a gente tava querendo somar um quarto elemento ao vivo. O Fabrício é um puta músico, que fora ser um ser humano incrível, é um cara que toca muito um monte de coisa. E ele foi entrando, galgando o espaço dele ali e foi – bah! – um excelente reforço para o processo criativo desse segundo disco.
Esse show de hoje é num formato mais de teatro, tem a banda, tem sopros e tudo mais. Eu vi vocês já uma vez no SESC.
Felipe: Qual SESC?
SESC São José dos Campos.
Felipe: Bah, que legal, cara!
E era na Comedoria, um show que a gente assistiu sentado, todo mundo no chão, vocês tocaram mais tranquilos. Depois eu vi vocês aqui no Morrostock.
Felipe: Que foi muito massa esse show!
E era um show de festival mesmo, grande, tudo. Então, eu imagino que hoje já é outro show diferente dos que eu já vi.
Felipe: Sim, sim! [Em tom de galhofa] Hoje você vai ver coisas inéditas! [Risos] Mas assim, a gente tem três shows que faziam parte do nosso projeto para o edital Natura Musical, que são os três shows oficiais de lançamento, digamos assim, que foi o Auditório Ibirapuera, o Theatro São Pedro, em Porto Alegre, e o Treze de Maio aqui em Santa Maria.Para esses shows que fazem parte do nosso projeto do Natura a gente pensou sim nesse espetáculo mais pra teatro, então a gente está com o nosso naipe de sopros, a gente está com uma luz pensada, está com projeções pensadas, e tem um roteiro pensado em conjunto com o Martino Piccinini (que é quem está fazendo essas projeções e cenografia) e com a Carol (que é nossa iluminadora). Queremos justamente valorizar essa atmosfera que o teatro permite tu criar, que é uma experiência mais audiovisual que às vezes uma casa de show, e até mesmo num festival, isso está expresso de outras formas, saca? Não dá pra explorar tanto assim. Então hoje é um show bem formatadinho pra teatro mesmo, mas às vezes eu tenho muita vontade de ver a galera de pé. Pra mim, o ideal seria conjugar os dois mundos: poder entregar essa experiência audiovisual, mas com a galera podendo responder fisicamente, de pé, dançando.
No caso, você falou que essa é uma atividade ligada a Natura Musical. E vocês realizaram também o workshop, aqui em Santa Maria, que também é parte do projeto patrocinado pela Natura. Como funcionou esse workshop? E como foi essa experiência pra vocês?
Felipe: Pra gente foi… [Rodrigo chega]
Rodrigo: Tudo bem?
Felipe: Estamos falando da Oficina aqui, Rodrigo. Cara, foi super legal! Uma das contrapartidas do nosso projeto era uma oficina experimental de composição e uma audição comentada do disco. A gente optou por uma dinâmica que deixasse a galera expressar o que eles queriam ouvir e qual o rumo que eles queriam ter, levar esse encontro e tal. E foi muito legal, cara, por que a galera meio que discutiu e perguntou sobre coisas relacionadas a toda a cadeia de uma banda independente. Desde coisas mais de administração, planejamento e carreira, passando por gravação, por composição, pela questão dos shows, passando pela parte visual e gráfica dos discos, então pra gente foi super legal meio que conseguir dividir “as milhões” de tarefas que a gente tem que lidar no dia a dia enquanto uma banda independente, que tem que se virar com o que tem em mãos. Então, na verdade, a gente ficou até com vontade de fazer em outras cidades, por que tu acabas te aproximando muito de uma galera que tá comprando a mesma briga que tu. Então essa troca é sempre massa. Pra gente foi muito afudê!
Vocês acreditam que esse tipo de patrocínio, como o da Natura Musical, dá certa liberdade para vocês produzirem de forma independente. Por que o primeiro disco foi feito com…
Felipe: O crowndfunding.
Então vocês tinham total liberdade, eram só vocês bancando aquilo, com a ajuda do público. Como é agora trabalhar com o apoio da Natura?
Felipe: Sou muito a favor de editais e políticas de incentivo à cultura. Particularmente, acho que é isso mesmo que tem que fomentar essas coisas. Acho que o único limite que a Natura nos apresentou foi a questão do prazo, que tu tem um ano e meio de execução do projeto, a partir da assinatura do contrato, depois que tu é selecionado e tal. Mas fora isso, cara, o disco é todo nosso! Não teve temas que a gente cuidou ou coisas que a gente levou em consideração que a Natura poderia ou não gostar. Acho que nesse sentido é muito positivo o edital deles por que eles meio que estudam um pouco os artistas, sacam aquela carreira, daí dão a liberdade pra tu fazer o teu projeto. Então, nesse sentido, foi muito legal, a gente não se sentiu pressionado ou coagido artisticamente em nenhum momento. A gente fez o disco que a gente queria fazer e entregamos o disco da Dingo Bells que a gente tinha imaginado.
Uma coisa que eu noto desde o primeiro disco, que volta agora nesse segundo disco, é as pessoas falarem sempre que vocês retratam o amadurecimento ou maturidade, essa temática específica. Vocês sentem que esse tema circunda em torno das coisas que vocês produzem? Ou é algo que só as pessoas percebem depois de pronto?
Rodrigo: Não sei se isso soa… Não sei se sobre o amadurecimento, mas o que se falou bastante é que o trabalho em si amadureceu, em relação ao “Maravilhas”.
Nesse sentido, o primeiro seria sobre o amadurecimento e nesse vocês amadureceram?
Rodrigo: …e nesse a gente amadureceu de fato. Acho que sim, por que o “Maravilhas” era uma previsão aos nossos anseios, medos, certezas ou não, sobre o que era o amadurecimento. Com o nosso amadurecimento, veio o “Todo Mundo Vai Mudar”, que é justamente a certeza das incertezas.
Isso que eu ia dizer, por que o disco inteiro é sobre – eu pelo menos, como ouvinte, entendo ele como – incertezas.
Rodrigo: Exatamente. A maturidade traz mais dúvidas e essa foi um pouco a nossa conclusão.
Felipe: E tem uma coisa que a gente discute bastante inclusive durante o processo de composição, era meio que uma preocupação quase constante nossa, de cuidar muito com os apontamentos diretos, assim, no sentido de que a gente não se sente no direito de dizer “ah, esse tipo de vida e de comportamento é válido e esse não”, então a gente acaba normalmente optando por questionamentos, reflexões e dúvidas existenciais que é muito mais da pessoa fazer esse balanço e ver como é que ela irá atuar no mundo, dentro da sua própria vida, etc., do que propriamente dizer “ah, tem que ser A, tem que ser B ou tem que ser C”. Então eu acho que, em função disso, de não querer determinar como as pessoas devem fazer nas suas vidas, a gente acaba optando por perguntar mais do que apontar, muitas vezes, sabe?
E como vocês estão sentindo a resposta do público? Por que eu sinto que as pessoas tinham uma relação muito forte com o primeiro disco. Como que elas reagiram a esse novo disco, vocês já tem essa percepção?
Rodrigo: Muito legal a resposta da galera. Principalmente, se for a termos bem práticos, nos shows… No Ibirapuera, que a gente tinha recém lançado o disco…
Felipe: Fazia duas semanas… Não! Nove dias!
Rodrigo: Nove dias e já tinha uma resposta massa. No Theatro São Pedro foi sensacional, depois a gente foi pra Curitiba, no Festival Coolritiba.
Felipe: Curitiba chamou muita a atenção.
Rodrigo: Uma galera cantando as músicas novas, isso já é um termômetro bacana, que já é um ótimo sinal, por que já demonstra essa relação afetiva com as músicas. E as respostas que vem pelas redes sociais – eu fico um pouco mais de olho nisso – eu noto que às vezes o comentário é “cara, eu ouvi uma vez e achei estranho, ouvi outra e já me bateu, na terceira eu não consigo mais parar de ouvir”. Então, a gente também se propôs um nível de complexidade um pouco mais profundo – na nossa opinião – do que alguns caminhos que o “Maravilhas” tem em termos da construção da canção, as partes, a própria letra, então acho que exige uma relação mais aprofundada também. Como o “Maravilhas” teve essa construção muito legal do público entrar no disco e as pessoas já misturavam o que era Dingo Bells e o que era “Maravilhas da Vida Moderna”, elas gostavam da banda gostando de um disco. E agora é legal que a gente já pegou um público pré-disposto a entender a obra, como uma obra completa. Um álbum. Por que teve uma relação de álbum com o “Maravilhas da Vida Moderna”, então isso foi muito legal pra poder ter um entendimento que a gente queria do “Todo mundo vai mudar”.
Na entrevista que vocês deram em 2015 para o Scream & Yell vocês conversaram com o Bruno Capelas…
Felipe: Bah, foi bem legal, foi lá no CCSP, no cafezinho, lembra que a gente trocou uma ideia?
Rodrigo: Uhm… não lembro.
Quando o Bruno comenta o fato de vocês serem uma banda mais pop, você [apontando para o Rodrigo] fala que esse conceito do pop é um tanto perigoso, não tanto pelo conceito em si, mas pelo que as pessoas entendem desse conceito do pop. E quando eu escrevi esse ano para A Escotilha sobre o novo disco eu não lembrava dessa entrevista e o que eu falei é que o que me encantava no novo disco era…
Felipe: Foi tu que escreveu n’A Escotilha?
Foi sim.
Rodrigo: Bah, que animal!
Felipe: Gostei muito do teu texto!
Valeu! …eu escrevi que o disco era muito pop e isso era uma das qualidades dele. Você ainda sente esse certo perigo do conceito do pop?
Rodrigo: Eu acho que nessa época da primeira entrevista, talvez, não me lembro em que ponto estava também a relação com o “Maravilhas”, mas a gente não sabia direito o entendimento das pessoas do pop. Acho que o “Maravilhas” comprovou que existe um entendimento que é o que a gente gostaria desse universo pop. E a gente investiu de novo nisso no “Todo Mundo Vai Mudar”, nesse nosso entendimento do pop. Talvez, falando na época, deveria ser o pop que é associado a FM pop, a rádio…
Talvez ao sentido de pop que é passageiro também, pode ser isso?
Rodrigo: Exatamente.
É que entendo esse pop num conceito de que se comunica fácil com as pessoas, há uma relação de comunicação com elas…
Rodrigo: Perfeito.
Felipe: A gente encara mais por esse viés mesmo.
Rodrigo: Identificação. Acho que fácil identificação ou identificando temas que muitas vezes são universais: mudanças, o tempo, as pessoas, as relações. Quem não se identifica com isso, né? E aí está o pop também.
Vejo muito na música independente que é feita no Brasil que às vezes a pessoa não quer ser pop, aí a canção até é pop, mas ela tenta colocar uma guitarra, uma coisa estranha meio para não ser tão acessível, para parecer mais cabeçudo, digamos assim, e nem sempre é o que vale, sabe?
Felipe: Às vezes fica sem cara nenhuma.
Sim. Por que às vezes a canção pop de 3 minutos diz mais.
R: Exato! Acho que o lance pop é bem nesse terreno que tu tá falando. Nossa maior vontade é que o nosso som chegue ao máximo de pessoas. Então, a gente veste essa música com uma forma que chegue fácil nas pessoas e que não cause… claro, não digo isso pra todo repertório, tem algumas músicas que propositalmente a gente diz “vamos causar a estranheza”, que isso também tem o seu lado pop de tu chamar a atenção pelo diferente. Isso já foi muito trabalhado, mas eu acho que é mais ou menos por aí. Causar essa identificação fácil, nesses temas universais.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Rodrigo Marroni / Divulgação.