Texto por Caio Bosco
A magnífica estilista francesa Agnes B., junto com os selos Potemkine e Re:Voir, nos presentearam com uma caixa com 6 DVD’s do diretor lituano, naturalizado estadunidense, Jonas Mekas. O pacote “Jonas Mekas: The Major Works”, lançado em 2017 no exterior, conta com os 5 longas mais cultuados de Mekas, um DVD só com curtas-metragens e um livreto bastante explicativo (em francês e inglês) em cada um dos DVD’s. A caixa é um panorama sobre a vasta vida e obra de Mekas, além de um testemunho fílmico inestimável sobre as vanguardas artísticas e a cena nova-iorquina dos anos 1950, 1960 e 1970, cobrindo desde sua primeira obra-prima, “The Brig”, de 1964 até “Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty”, de 2000.
Imagine um desavisado que não goste de cinema experimental se predispondo corajosamente a ver o épico “As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty” e, na metade desse ‘tour de force’ de 288 minutos, escutando o próprio diretor dizer “Você deve agora estar percebendo que o que você esta vendo é uma obra-prima sobre nada. Nada!”. Porém, difícil acreditar na possibilidade de alguém que não goste de cinema autoral e alternativo, ou seja, a grande maioria do público, ver um filme de Mekas até a metade; as epifanias, movimentos frenéticos e cortes feitos diretamente na sua Bolex 16mm, as imagens que mostram o seu cotidiano doméstico e os comentários ‘voice off-câmera’ em inglês com um sotaque divertidíssimo, narram profundas divagações sobre a vida, o amor, a arte, a memória e os laços afetivos. Essa teia de características profundamente pessoais na obra de Mekas, deve ser um verdadeiro instrumento de tortura para a maioria dos consumidores de cinema, mas uma coisa é certa: os impacientes nem imaginam o ouro que estão perdendo.
Jonas Mekas é antes de tudo um poeta! Utilizando tanto as palavras quanto as imagens, sua expressão artística tem aquela mágica que a poesia possui de sintetizar o mundo em versos, no caso, sintetizar a profundidade das perdas e conquistas, materiais, sentimentais e artísticas de sua riquíssima biografia, vendo de perto e em atividade, o cume centenário com seus 95 anos (recentemente ele esteve na cinemateca de Paris para um debate e na galeria de arte Agnes B., expondo seus trabalhos com fotografia e divulgando seu mais recente livro: “A Dance With Fred Astaire”, de 2017, com direito a um valioso podcast no site da radio France Culture). Os filmes de Mekas, altamente líricos e autobiográficos, nos apresentam através do ‘nada’, como ele mesmo diz, reflexões valiosas de quem fugindo da Lituânia na Segunda Guerra, fora preso por oito meses em um campo de trabalho perto de Hamburgo, na Alemanha, e junto com seu irmão, o também filmmaker Adolfas Mekas (1925-2011), se torna um imigrante na América e tem o seu destino posicionado no cerne do novo epicentro da cultura ocidental: Nova Iorque.
Após a Segunda Guerra, Jonas cursa a universidade de filosofia em Mainz e, em 1949, os irmãos partem juntos em um navio para a Big Apple. O atracamento se dá em uma noite de tempestade, mesmo assim, eles contemplam o espetáculo de luzes e relâmpagos na cidade e, na manhã seguinte, visitam a estátua da Liberdade, lá a decisão estava fechada, os Mekas iriam ficar em NYC e não iriam trabalhar em uma padaria na cidade de Chicago, onde os esperavam amigos e um lugar para morar. Depois de instalados em Williansburg, na época, o bairro mais pobre do Brooklyn, uma das primeiras atitudes dos Mekas fora pedir dinheiro emprestado para comprar uma câmera Bolex 16 mm, a partir de então, Jonas começa a filmar o seu próprio cotidiano, os momentos de um imigrante tentando recomeçar a vida em um lugar completamente diferente da zona rural do leste europeu do qual fora criado. Essas imagens podem ser contempladas no filme “Lost, Lost, Lost”. Lançado em 1976, o filme é uma compilação de filmagens entre 1949 e 1963, um testemunho do desenvolvimento de sua principal invenção no cinema: o ‘filme diário’. Como o título salienta três vezes, alguém realmente perdido, um filme doloroso que mostra a vida de um exilado, que tenta (como ele mesmo diz) “crias raízes em um novo solo”, cuja a ideia de comunicação pelas imagens mostra-se ser o mais assertivo para quem ainda não compreende a língua inglesa e que tem o seu desenvolvimento de maneira dual, já que como poeta, o seu trabalho que já reúne sete volumes, são escritos em sua língua materna.
Diferente da repulsa por Hollywood e sua máquina alienante, mantida pela maioria dos intelectuais europeus exilados nos Estados Unidos naquele período, Mekas desenvolveu um interesse pelo outro lado da colina das estrelas: o cinema avant-garde, que já apresentava clássicos como “Meshes of the Afternoon” (1943), da maravilhosa Maya Deren e Alexander Hammid, algumas obras de Kenneth Anger e documentaristas experimentais como Sidney Meyers e Morris Engel, além do histórico de vanguarda europeia com os pioneiros filmes das escolas surrealistas e dadaístas (Man Ray, René Clair, Buñuel, Dali, Hans Ritcher, Jean Cocteau), da escola soviética de Dziga Vertov e Eisenstein, os descendentes da linhagem impressionista francesa como Abel Gance, Jean Epstein e Jean Vigo, e, os nossos patrimônios: Alberto Cavalcanti com “Rien Que Les Heures” (1926) e Mário Peixoto com “Limite” (1931). Diante da descoberta e de se envolverem profundamente, em 1954, os irmãos Mekas lançam a revista Film Culture, Jonas avança seus passos de crítico e teórico, escrevendo para a Village Voice e ensinando em diversas instituições acadêmicas, como a Universidade de Nova Iorque e o MIT.
Após fundar uma cooperativa de filmmakers, a NACG, junto com ícones como Shirley Clarke, Peter Bogdanovich e Ken Jacobs, Jonas Mekas se torna uma figura proeminente na cena cultural nova iorquina como diretor da Film-Makers Cinematheque, que expandiu-se em 1969, tornando-se a Anthology Film Archives, um centro internacional de estudos, preservação e exibição de filmes e vídeos (focado sobretudo na produção independente), fundado por Mekas com um auxilio luxuoso de gente como Stan Brakhage, Peter Kubelka e P. Adams Sitney, travando por décadas uma batalha cultural, social, económica e política contra a hegemonia cultural hollywoodiana. É desse período que vem uma verdadeira obra-prima: “Walden” (1969), uma epopeia de 180 minutos filmada cronologicamente em seis latas entre 1964 e 1968, o ápice de sua criação. Um diário cinematográfico em que Mekas “somente esta celebrando o que vê” e nos da de bandeja imagens caseiras, experimentais, despretensiosas, mas incrivelmente valiosas sobre os principais personagens do meio artístico e cultural da vanguarda mundial: de um fim de semana ensolarado nas montanhas nevadas do Colorado com Stan Brakhage e família passando por Timothy Leary falando de sua comunidade em Millbrook sobre os benefícios e perseguições de suas pesquisas científicas até reuniões artísticas e boemias com Andy Warhol, Gerard Malanga, Edie Sedgwick, Jack Smith, Ken Jacobs, Barbet Schroeder, Hans Richter, Carl Theodor Dreyer, Shirley Clarke e Tony Conrad além da estreia de Velvet Underground & Nico na turnê Exploding Plastic Inevitable. Há ainda imagens raríssimas de Allen Ginsberg e Peter Orlovsky no vértice da Beat Generation em uma manifestação Hare Krishna e um dos registros mais incríveis: a famosa performance de John Lennon e Yoko Ono cantando “Give a Peace a Chance” na cama de pijamas em 1969, em um hotel em Montreal.
Outro filme muito importante do diretor, por aspectos sentimentais históricos e políticos, é “Reminiscences of a Journey to Lithuania” (1971-1972), que foi selecionado para o National Film Registry da Library of Congress USA pelo seu significado cultural e estético. A película mostra uma viagem que os irmãos Mekas fazem de volta a Lituânia após 27 anos sem ver os familiares e os antigos amigos. De rara beleza e verdade, os sentimentos exalam pra fora da tela, o reencontro com a mãe (uma linda senhora de 1887 que fazia tradicionais pratos em um fogo de chão), as brincadeiras, as risadas, a atmosfera bucólica do fim de verão, tudo mostra a humanidade mais profunda de uma maneira quase banal. A história por de traz de um filme que merece destaque: ambos os irmãos foram convidados como redatores-chefes da revista Film Culture a irem ao festival de cinema de Moscou, Jonas lembrou do nome de Yuri Zhukov, redator-chefe das páginas culturais do Pravda (jornal oficial do Partido Comunista Soviético e que significa literalmente “verdade”). Zhukov era um homem de mente aberta que se interessava pelamúsica do Velvet Underground, LSD, experiências extra-sensoriais e estivera em Nova Iorque em 1967 para entrevistar Abbie Hoffman e Allen Ginsberg, ambos apresentados ao soviético por Mekas. Jonas fez uma série de pedidos a contra gosto da produção do festival, o primeiro de se encontrar com Zhukov e pedir a ele um visto para que os irmãos Mekas pudessem ir a Lituânia ver a mãe e os irmãos; um carro que pudesse leva-los da capital a vila de Semeniškiai e, o mais incrível, uma autorização para filmar o encontro, os irmãos sabiam que estavam sendo vistos como agentes duplos e resolveram jogar com isso. Para desespero dos organizadores do festival de Moscou, Zukhov aceitou todos os pedidos paulatinamente e durante toda a estadia, o governo disponibilizou para Mekas um caminhão com equipamentos de última geração e uma equipe para a filmagem, os quais Jonas gentilmente negou dizendo que tudo o que precisava para fazer seus filmes era de sua Bolex 16mm.
Existe um fio condutor que passa por todas as obras da caixa “Jonas Mekas: The Major Works”, que amarra um sentido nobre e que só pode ser compreendido pelos seus dois polos cronológicos, “The Brig”, de 1964 e “As I Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty”, de 2000. Uma odisseia em que nosso Ulysses, no caso Mekas, sai de terras sombrias e se empreende em uma viagem rumo ao oásis, passando pelo mais árido deserto, que começa com sua versão para a peça da companhia experimental nova iorquina “Living Theatre”. “The Brig” se passa em apenas um cenário: uma jaula em uma prisão militar naval dos EUA. E tudo aqui é amargo, cada fotograma parece um pesadelo que nos remete ao que há de pior na política estrutural militar norte-americana, como a base ultramarina de Guantánamo por exemplo. O nível de degradação humana que vemos no filme se deve as atuações cheias de ódio, a claustrofobia do cenário, ao seu ‘mise en scène’ errático e sua feiura estética, e, mesmo tendo sido lançado uma década antes do que “Lost, Lost, Lost”, a depressão das imagens compiladas deste último (que até então eram somente experimentos imagéticos caseiros), parece dar o suporte de desespero e de desconexão existencial nessa película que foi importante para definir a cena local e que tivera o seu maior totem alguns anos antes, em 1959, com o diamante “Shadows”, de John Cassavetes.
Se em “The Brig” a violência e a crueldade dão o tom, em “As I Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty” o amor transborda vinte e quatro vezes por segundo, formando um hino épico e poético sobre a vida e o privilégio de estar vivo. Durante suas mais de quatro horas, vemos o que o Village Voice chamou de “um filme descaradamente feliz”, com uma compilação de mais de 30 anos de imagens familiares, diários de seu casamento sólido e tardio, o nascimento de seus filhos, atividades cotidianas, amizades carinhosas, passeios na natureza, deliciosos piqueniques e o inseparável prazer pelo cinema. Tudo regado aos comentários irônicos do próprio diretor que define sua película como “um filme sobre pessoas que nunca discutem ou brigam e que se amam”, uma rendição aos sentimentos que verdadeiramente importam, vindo do nosso poeta que no período estava comemorando sua oitava década.
Jonas Mekas é um artista que deve ser propagado, conhecido, analisado, discutido e apreciado mais no Brasil. Sua forma livre e ‘handmade’ de fazer cinema, pode encontrar ecos interessantes em uma produção criativa, mas cada vez mais engessada e burocratizada como a nossa. O patrimônio artístico de Mekas detém uma característica que somente grandes artistas visionários têm (sobretudo Joseph Beuys, Eva Hesse, Karlheinz Stockhausen, James Benning, Miles Davis e Godard), um universo que parece ser difícil e hermético ao entrar, mas, uma vez dentro, se torna muito mais difícil de se querer e conseguir sair.
– Caio Bosco (fb/caioboscocerebral) é cantor, compositor e músico (https://caiobosco.com), já lançou diversos trabalhos, tanto solo, quanto com o Radiola Santa Rosa. Cinéfilo e pesquisador amador, já compôs trilhas para curta-metragens internacionalmente premiados, planeja escrever sobre cinema avant-garde, experimental e alternativo, visando contribuir com pesquisas sobre realizadores que são pouco conhecidos no Brasil.