entrevista por Guilherme Lage
Existe uma relação estreita entre a música e os sentimentos vividos outrora. A familiaridade e a vibração no cérebro, reavivam faíscas do que foi vivido no antes. Esse apego ao passado pode tornar difusa a apreciação do que é feito no agora, embaralhando-se com a perspectiva do que já foi. O quarteto sueco Graveyard é uma banda que conhece bem esta relação.
Desde os primórdios, o grupo lida com o peso das influências que remetem aos tempos áureos do rock n’ roll e do blues. Alinhá-los a um saudosismo sonoro, no entanto, é no mínimo um desperdício. Há algo de novo e autêntico na forma como o quarteto se desenvolve, aproveitando as lições do passado e aplicando-as em uma nova perspectiva, com elementos próprios. Se esquivando de alguma restante aura do “classic rock revival”, se reinventado em cada disco (já são cinco na carreira, e o mais recente, “Peace”, foi lançado em maio de 2018).
Ouvir o Graveyard, portanto, não é uma viagem no tempo. Pelo menos, não pretende ser. Ainda que os acordes emocionais e a voz dolorosa de Joakim Nilsson evoquem os fantasmas do blues, o ouvinte não é transportado a alguma enlameada terra dos pântanos do Mississípi. O berço dessa sonoridade é a gélida Gotemburgo, na Suécia. Acoplam-se a isso as guitarras do hard rock setentista, enfurecida pela insatisfação de quem vive os nossos dias.
A incursão lisérgica que une os tempos idos ao agora, dá o tom de uma banda que desafiou a mortalidade e, recém desperta, se recusa a descansar em paz. Auxiliados por um novo batera e pela produção por Chips Kiesbye (Hellacopters, Michael Monroe), os suecos se encontram em turnê promovendo as faixas de “Peace”. Em entrevista via Skype, o baixista Truls Mörck falou, entre outras coisas, sobre o novo disco, influências, carreira e o ressurgimento da banda após o hiato em 2016. E se é por paz que o Graveyard procura nesse disco, é em vida que pretendem encontrar.
Vamos começar falando sobre o disco novo?
Sim, começamos a compor durante a primavera e gravamos o álbum em Estocolmo no mês de dezembro. Se chama “Peace”, é o primeiro com nosso novo baterista, Oskar Bergenheim, e estou muito entusiasmado com ele.
Como foi o processo de gravação?
Tentamos gravar ao vivo em estúdio o máximo que pudemos. Colocamos a bateria em um cômodo e as guitarras em câmaras separadas. Então gravamos ao vivo. Quando a bateria estava soando boa o bastante, fizemos o overdub nas guitarras e no baixo um bocado de vezes com diferentes amplificadores e guitarras, para poder escolher o que soava melhor mais tarde. Depois fomos a outro estúdio em Gotemburgo, onde moramos e gravamos todos os vocais.
O nome do álbum, “Peace”, vem de algum tipo de sentimento de paz entre os membros da banda pós hiato?
Sim, isso. Mas acho que também por uma procura por paz e como passamos por todos esses tempos difíceis no ano passado. Percebemos o quão importante é tentar encontrar um sentimento de paz após toda aquela merda que passamos. Isso foi o que inspirou o título no início e quando pensávamos mais a respeito, percebemos que existem muitos níveis que poderíamos atingir com isso. Também funciona como uma mensagem positiva para o mundo (risos). O mundo em que vivemos hoje não é lá muito pacífico. Então achamos que seria legal mandar uma mensagem positiva para o mundo e ver o que acontece. Mas claro, é sobre a banda e como tivemos as nossas dificuldades.
A banda está de volta há um ano agora, como foi a recepção por parte do público?
Eu diria que recebemos boas vindas bem calorosas. Acho que as pessoas ficaram extremamente felizes, ninguém ficou bravo e nem nada disso (risos). E isso é ótimo. Nos sentimos muito felizes e agradecidos por isso. Isso nos fez perceber que, mais do que nunca, temos que continuar e ser o melhor que pudermos. Ficamos bem impressionados com toda a positividade e a energia dos fãs. Quando anunciamos o retorno e um disco novo, as pessoas ficaram realmente entusiasmadas. É algo muito inspirador.
Como a dinâmica da banda mudou com a entrada de um novo batera?
Mudou bastante. Acho que num âmbito particular, na nossa química, foi uma mudança enorme. Muitos dos problemas tinham a ver com Axel (Sjöberg, ex baterista), ele não estava feliz com a banda e foi ele quem tomou a decisão de sair. Então, poder contar com o Oskar foi um grande alívio. Axel é uma ótima pessoa e um grande baterista, mas as coisas não estavam mais funcionando. Oskar entrou pra banda e fez uma grande diferença. Além disso, ele é um baterista bastante diferente. Talvez não dê pra notar no disco, mas ele tem mais influências de jazz e blues, enquanto Axel tinha uma pegada mais punk rock. Então, as novas músicas foram escritas com esse novo baterista.
Originalmente, você era o guitarrista do Graveyard e voltou pra banda em 2015 como baixista. Como foi essa mudança pra você?
Bom, eu sempre me considerei uma pessoa que faz música e não foco tanto na parte instrumental a princípio. Me interesso mais em todo o processo de fazer um disco. Fazer música, arranjar, construir um som. Adoro tocar guitarra, mas adoro tocar baixo também. Obviamente, foi um pouco difícil de reaprender, porque são instrumentos diferentes. Mas eu já tocava baixo antes em outras gravações. Já estava no estúdio tocando baixo, então já sabia o que queria fazer. Mas claro, há toda a parte física do instrumento, é maior e mais pesado nas mãos. Foi difícil no começo, mas também muito divertido trocar os instrumentos. Já toco guitarra há tanto tempo que estava começando a me enjoar um pouco do meu próprio jeito de tocar. Obviamente eu estava um pouco nervoso, porque entrei em uma banda grande e havia muita expectativa em cima de mim e o antigo baixista era muito bom. A princípio me senti muito pressionado, mas me dediquei bastante e as coisas deram bem certo.
A arte da capa do novo álbum é incrível, assim como a dos outros discos. Pode falar um pouco sobre ela? Qual a ideia por trás?
A capa do “Peace” é do mesmo artista que fez a capa do nosso último álbum (“Innocence & Decandence”, 2015). E também foi ele quem fez a arte do “Hisingen Blues” (2011). Ele trabalhou com a gente antes e confiamos na interpretação dele e como ele ilustra nossa música na arte dele. Então falamos do título pra ele e demos uma ideia geral de como o disco soava e ele criou essa arte. Não sei como ele conseguiu, mas acho que combina muito com as letras. Pra mim, as letras são como histórias contadas em uma paisagem como aquela da capa. E tem aquele personagem misterioso, que não é muito familiar. Acho de verdade que as letras poderiam se passar naquela paisagem. É muito surreal, como um sonho e tem esse personagem no meio, que muito bem poderia ser um cantor ou alguém que escreveu as letras (risos).
Eu estava assistindo ao clipe de “Please Don’t” e ele realmente me pegou. O vídeo fluiu muito bem com a letra da música…
O vídeo foi feito por um cara chamado Castor. Acho que ele ouviu a música e se apegou a essa parte da letra que diz “Don’t abandon my soul” e também no nome da banda e se inspirou nessa ideia de um funeral meio executivo, meio conferência. A letra é bem dramática. É bem sombria. Então foi legal adicionar um pouco de humor e aliviar um pouco a tensão da faixa.
Ainda que o Graveyard tenha influências dos anos 60 e 70, existe algo bem autêntico e contemporâneo na música de vocês. É importante manter esse lado mais atual em torno da banda?
Com certeza. E acho que é o nosso maior objetivo. Combinar a atemporalidade do rock clássico com algo, não sei se contemporâneo, mas não queremos ficar presos a nenhum tipo de regra. Não estamos tentando copiar nada dos anos 60 ou 70, mas nos influenciar nas partes boas e combinar com o nosso próprio estilo. Se você conseguir ser você mesmo, é sempre contemporâneo, até porque somos contemporâneos, estamos vivendo o hoje (risos). Então pegamos o passado e juntamos com o que nós mesmos criamos. Fico feliz que você tenha dito isso. Não diria que estamos tentando ser modernos ou nada disso, mas tentando ser nós mesmos e fazer o que queremos fazer. E se conseguirmos fazer isso, acho que soaria bem contemporâneo e clássico ao mesmo tempo.
No último disco você cantou uma faixa (“From A Hole In The Wall”) e Jonathan (Ramm, guitarra) faz os vocais de “Far Too Close”. Em “Peace” você também faz os vocais em algumas faixas. Como funciona essa dinâmica de colaboração nos vocais?
Sim, canto um pouco no novo disco e Jonathan também. Ele não faz os vocais principais em nenhuma música, mas faz alguns backing vocals. Tentamos colocar todas as nossas vozes ali, até o Oskar canta um pouco. Faço os vocais principais em duas faixas e acho que tira um pouco do peso das costas do Joakim quando nos alternamos.
Nos discos anteriores vocês demonstram um lado político bem forte e os membros da banda têm um background no punk. Existe algum tipo de mentalidade punk rock por trás disso?
Nós todos compartilhamos essas crenças políticas. Acho que em “Lights Out” (2012) esse lado foi mais evidente. Mas também não queremos nos prender em um único tema para as letras, cantar música atrás de música sobre injustiça ou assuntos políticos. Nós nos expressamos, mas não sinto que esse novo disco é tão político. Acho que existe uma perspectiva do “underdog” no punk rock (nota: tendência de criar uma identificação com pessoas em situação desfavorável). Acho que vem do blues originalmente, dos primórdios do rock n’ roll. Acho que tem muito a ver com isso. No blues, rock n’ roll, no punk se observa bastante esse tipo de perspectiva. É o tipo de música que procura unir as pessoas.
Seu projeto solo é muito diferente da música do Graveyard. Há uma busca pessoal por transitar em estilos tão diferentes assim?
Sim, preciso desse tipo de coisa. Sou meio incansável quando se trata de música. Preciso fazer coisas diferentes ao mesmo tempo para que exista uma dinâmica. Agora estou trabalhando em um disco de música eletrônica, não sei se vou terminar algum dia, mas senti a necessidade de fazer alguma coisa completamente diferente. Mas faço esse tipo de coisa quando tenho algum tempo sobrando. Curto todos os tipos de música e componho todo tipo de música, então faço isso sempre que posso. Quando o Graveyard não está na estrada, gravando ou compondo, me empenho nisso.
E você consegue conciliar bem seu projeto solo com o ritmo da banda?
Na verdade, não faço mais turnês com meu projeto solo. A princípio eu cheguei a excursionar quando lancei o disco, mas percebi que não poderia conciliar. Então não tenho feito nenhum show com projetos há algum tempo. O outro projeto agora é mais para gravações. Seria demais, eu acho, fazer turnês com duas bandas diferentes.
Você já disse algumas vezes que não é uma pessoa tão sociável. Esse traço da sua personalidade te ajuda no processo de criação?
Bom, sou bastante introvertido. Então acho que talvez me ajude a realmente me expressar e não me focar tanto em algum tipo de sentimento mais geral, no que está a minha volta o tempo todo ou corresponder a todas às expectativas. Mas acho que todo mundo na banda é meio introvertido (risos). Mas todos temos essa característica e exploramos esse tipo de sentimento, então talvez seja por isso que a música soe um pouco diferente da música de outras bandas.
Aqui no Brasil somos fascinados por bandas suecas, o que tem na água daí que faz bandas tão boas?
Não sei se é bem na água (risos). Tenho uma teoria sobre isso, acho que é porque a Suécia é um lugar muito frio e escuro na maior parte do ano. Então acho que nos reunimos em estúdios para ensaiar e tentar escapar da realidade um pouquinho (risos). Os invernos são bem rigorosos. E não estou dizendo que outros países não tenham, mas na Suécia temos um longo histórico de música tradicional. No Graveyard sinto que a música tradicional sueca influenciou um pouco o jeito de compor, com essa melancolia e o clima da música. Acho que esse tipo de música funciona bem com o rock n’ roll num geral. Ainda que não toquemos folk rock, o sentimento e a melancolia combinam bem com rock n’ roll.
Por último, mas não menos importante, podemos esperar o Graveyard por aqui em breve?
Não diria em breve. Mas estamos trabalhando nisso. Nós queremos muito ir, é um sonho nosso ir para a América do Sul. Estamos trabalhando nisso há um bom tempo. Mas não posso dizer em breve, infelizmente, gostaria muito de dizer que sim. Não posso dizer exatamente quando, mas com certeza nós iremos. Espero que sim, seria demais.
– Guilherme Lage (www.facebook.com/breadandkat) é jornalista e mora em Vila Velha, ES.
Excelente e oportuna entrevista. O Graveyard tem uma discografia impecável (já incluindo o Peace na análise) e essa pontinha de esperança de virem ao Brasil é muito salutar!