por Pedro Salgado, de Lisboa
Enquanto bebemos um café no Chiado, em plena tarde de chuva, Manuel Molarinho começa por recordar o seu percurso inicial ligado ao punk. “Os meus amigos do Love You Dead precisavam de um baixista. Na época eu não dominava o instrumento, mas aceitei o desafio e comecei a tocar e compôr”, conta. Após integrar várias bandas, Manuel monteu o seu projeto solo, O Manipulador (uma ‘one man band’). Em 2013 o músico lisboeta estabeleceu-se no Porto e seria convidado para atuar no TRC Zigurfest (um pequeno festival anual de música moderna, associado ao coletivo artístico Zigur Artists), do qual Ricardo Cabral integrava a organização. “Percebemos que nos dávamos bem, tínhamos um estilo que fazia sentido e eu sentia vontade de regressar às bandas com mais energia, algo que tivesse uma linguagem corporal”, explica.
Optando pelo nome Baleia Baleia Baleia, inspirado numa conhecida piada, a dupla constituída por Manuel Molarinho (baixo e voz) e Ricardo Cabral (bateria) iniciou a sua atividade em 2016, apostando no pop punk, no rock e na canção autoral e realizando shows vibrantes que cativaram o público do norte e sul de Portugal. “O que temos para falar hoje é diferente de há 10 anos atrás. Perdemos mais tempo com os arranjos das músicas, mas pretendemos que as nossas ideias sejam claras e percetíveis”, afirma. Esse cuidado está presente no álbum homônimo de estreia da banda, onde se evidencia o punk dançável, toadas experimentais e a urgência vocal de Manuel. Lançado dia 14 de março, “Baleia Baleia Baleia” pode ser ouvido e baixado no Bandcamp.
“Quero Ser Um Ecrã” e “Sacaplicação”, os dois temas mais diretos do disco, destacam-se igualmente pela força do refrão e a conjugação da vertente melódica e rítmica. O épico “Interdependência” revela uma ambição sonora superior, cabendo a “E Se O Diabo Quiser” o papel de incutir algum mistério à habitual ironia lírica do duo. Para Molarinho a explicação é clara: “As nossas letras nunca são escritas de um só jorro, mas essa canção se refere à tentação em geral. O diabo aparece como uma metáfora para aquilo que consideramos proibido. Depois contextualizamos esse fato na rotina do dia a dia e na forma como o nosso cérebro processa as coisas em que pensa”. Para além de ambicionarem uma liberdade criativa absoluta, a outra aspiração da dupla define o seu caráter universalista: “Pretendemos comunicar e esperamos que o relacionamento dos outros com a nossa música seja imediato”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Manuel Molarinho conversou com o Scream & Yell sobre o Baleia Baleia Baleia. Confira:
Porque demoraram um ano a gravar o disco de estreia?
Nós esforçamo-nos por ter as melhores condições para uma boa captação sonora. O Teatro Nacional do Porto deixou-nos gravar as baterias no Teatro Rivoli (duas delas já tinham sido registradas na nossa sala de ensaios, Quarto Escuro). Se nós cumpríssemos esses timings seria a melhor forma possível, porque daria para gravar em Agosto (o mês de férias do Ricardo). Ele é técnico de som no Rivoli, eu tenho quatro bandas e organizo um festival itinerante de Inverno, “Um ao Molhe”, dedicado aos colegas que tocam sozinhos em palco. Em função do tempo disponível, encontramos um espaço para registrar as coisas à nossa medida. Na realidade, acabou por ser bom que a gravação demorasse um ano, porque as canções ficaram com novas roupagens e deu para nos divertirmos no estúdio.
Um dos aspetos marcantes do disco é a sua intensidade rítmica. De algum modo procuraram trazer para o álbum a energia que vocês existem no palco?
Sim, procuramos ao máximo que o álbum soe como um show, ou pelo menos que tenha esse feeling. Mas não queremos tocar igual no disco e ao vivo. Isto pode parecer contraditório mas não é. Os discos e os shows são realidades distintas para nós e queremos aproveitar o melhor de cada faceta. Ao vivo o som tem menos camadas, é mais cru, mais despido, mas há toda uma componente visual e de contato com o público que é impossível transportar. Tentamos compensar enriquecendo o disco textural e harmonicamente com todo o tipo de arranjos, duplicando ou triplicando linhas de baixo, gravando várias vozes, editando imensas coisas aqui e ali e inclusivamente usando a primeira fase da mixagem como parte da composição. No fundo, aproveitamos todas as liberdades que o estúdio nos dá, mas também quisemos incorporar ao máximo os erros, os acasos, as oscilações, tudo aquilo que nos torna humanos e imperfeitos para que soe como se estivesse acontecendo enquanto ouvimos.
O single “Quero Ser Um Ecrã” inclui um refrão certeiro e a sua urgência vocal destaca-se na tempestade sónica da faixa. Concorda com esta leitura?
Realmente, é uma canção bastante urgente e foi das primeiras músicas que fizemos. Eu não me coloco numa posição crítica, porque em vários momentos estou sendo o ecrã, imerso nesse mundo e alheado do resto. De certa forma a canção coloca uma pergunta: Porque queremos ser um ecrã? Existe também um tom jocoso e de aceitação, porque os seres humanos são falíveis e não tem mal nenhum divertirmo-nos com isso. Esse tom é mais estético do que racional, ou seja, foi aquele que nos pareceu mais adequado. Por vezes, deixar as coisas fluírem também é mais interessante do que pensar tudo ao milímetro.
Quais são as vossas principais influências musicais?
O stoner rock não é a nossa principal influência, porque vamos buscar muitos elementos ao conteúdo rock e trocamos músicas de que gostámos. Existem várias referências que nos unem: Lightning Bolt, Beatles e Sonic Youth. O Ricardo mostrou-me algum Dead Meadow que eu não conhecia, bem como sonoridades mais calmas. Confesso que não penso muito no que escuto quando estou compondo com ele. No meu projeto solo, O Manipulador (com loops), nos Burgueses Famintos (poesia com spoken word) ou no Madrasta (trio de rock experimental) tudo passa pelo cérebro e pela desconstrução, enquanto o Baleia vem mais do instinto, da emoção e de não ter medo de sermos um ato inesperado. Na realidade, somos um conjunto de coisas de que não gostamos, mas fomos obrigados a ser. A cultura pop tem disso e impõe-se um pouco à força. O Baleia relaciona-se mais com a urgência de tocarmos juntos, divertirmo-nos, criando algo que se soltasse e fosse nosso. Tudo dentro do rock e da música alternativa, não seguindo os cânones tradicionais.
Quais são os objetivos futuros da banda?
O objetivo óbvio é tocar e rodar. No dia 14 de Abril estaremos no Hard Club. Temos várias datas marcadas para depois desse show e o interesse na banda tem aumentado, mas essa atuação é a mais importante para nós. O país é pequeno, por isso convidamos todo o mundo a ir ao Porto e passear um pouquinho (existem voos baratos a partir do Algarve também). Depois disso continuaremos a tocar e pensaremos num novo disco, em mais músicas e eventualmente fazer shows no estrangeiro. Para já estamos nos divertindo. Também temos um lado visual (Ricardo Cabral dirigiu o clipe de “Quero Ser Um Ecrã”) e com os vários amigos dessa área pretendemos fazer vídeos para as canções mais apelativas. Queremos desviar-nos um pouco dessa base de compor, gravar e atuar, mantendo um igual grau de diversão.
Gostaria de deixar alguma mensagem para os leitores brasileiros do Scream & Yell?
A música brasileira é um mundo. Por isso, é um pouco inescapável não ter algumas referências. Relativamente à mensagem, escutem a nossa música e mandem feedback. Adorariamos tocar no Brasil e se a nossa cena colher fãs lá seria muito legal. É um país com muito entusiasmo. Eu tive a felicidade de passar uma semana no Rio de Janeiro e percebi que há um apreço muito grande pela energia positiva. Apesar de existir o lado triste, sobressai a alegria na música ao vivo e essa também é uma marca dos shows do Baleia Baleia Baleia. Quando escolhemos o nome da banda, descobrimos que existia um grupo brasileiro que se chamava Baleia. Eles fazem um som experimental, alternativo e com uma vertente eletrônica. São difíceis de catalogar, isso é bom, mas lembram um pouco o Radiohead. Eu e o Ricardo escutamos muito Tim Maia durante as viagens de carro. Ele também é fã de Erasmo Carlos. No meu caso, gosto bastante de Dilermando Reis (um guitarrista de chorinhos e valsas). Sinto que no Brasil a música faz parte do cotidiano e em qualquer músico vemos aquilo que ambicionamos: a guitarra é uma extensão do braço. Para mim, às vezes, existe uma separação, mas recordo que no Rio estive em casa de um amigo, vi-o tocar e cantar e senti que aquilo era um bolo em que várias pessoas entravam de uma forma mágica.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Pedro Gomes Almeida / Divulgação.
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