Entrevista por Daniel Tavares
Fotos por Liliane Callegari
A primeira vez que o renomado saxofonista Kenny Garrett tocou no Brasil como artista solista foi liderando um trio em 1997, num dos melhores e mais longevos festivais que essa pobre nação já abrigou, o Free Jazz Festival, que entre 1985 e 2001 trouxe ao país alguns dos nomes mais importantes da música mundial, gente como Chet Baker (1985), Ray Charles (1986), Sarah Vaughan (1987), Nina Simone (1988), John Lee Hooker (1989), Dizzy Gillespie (1991), Terence Blanchard (1992), Ornette Coleman (1993) e James Brown (1994), entre dezenas de outras estrelas.
Naquela época, 20 anos atrás, Kenny chegava ao Brasil com dois prêmios da renomada revista DownBeat (Melhor Sax Alto em 1996 e 1997 – ele voltaria a ganhar outras seis vezes o mesmo prêmio, a mais recente em 2013), um disco em que recriava Coltrane (“Pursuance”) e, segundo depoimento na Folha de São Paulo na época, tocou “uma versão de ‘Giant Steps’ maravilhosa, provavelmente a mais bonita que já ouvi”. De lá para cá, ele voltou ao país diversas vezes, a última no Jazz na Fábrica 2015, do Sesc Pompeia – já com um Grammy na mala (de Best Jazz Instrumental Álbum, em 2010).
“Quando vim ao Brasil pela primeira vez, comprei uns três livros com melodias do Antônio Carlos Jobim”, relembra em entrevista por telefone ao Scream & Yell. Desta vez, porém, ele traz repertório renovado com as canções do álbum “Do Your Dance!”, lançado em 2016, um disco com nove números inéditos de sua autoria que exibem influências de hard bop e funk buscando honrar o título conceito do trabalho: “Você não precisa dançar como um dançarino profissional. Você pode fazer do jeito que quiser. Você apenas precisa dançar”, insiste, divertidamente.
Na entrevista abaixo, Kenny Garrett fala sobre a experiência de ter tocado com Miles Davis (“Eu o tive como um professor. Eu estava lá como um estudante aprendendo”), reforça que o importante para um músico é estudar e manter a mente aberta (“Eu ainda estudo até hoje”) e não recrimina que segue um caminho pop (“Acho que você tem que decidir o que é que funciona pra você”). Sobre o Brasil, diz que adoraria conhecer alguma escola de música e ouvir música tradicional. “Ainda ouço muita música brasileira”, avisa. Confira o bate papo.
Você já tocou com Art Barkley, Herbie Hancock, Miles Davis, Chick Corea e Duke Ellington, alguns dos maiores nomes do Jazz. Como você se sentiu quando se encontrou pela primeira vez com todas essas pessoas? Quem era você na ocasião? Era mais como um fã deles ou era mais como um músico, um colega?
Olha, quando me lembro da minha experiência com o Miles Davis, eu o tive como um professor. Eu estava lá como um estudante aprendendo, mas também levei coisas para a mesa, fiz contribuições. Naquela época, eu não estava mesmo pensando em ir pra lugar nenhum, eu estava apenas honrado por tocar com alguém como o Miles. Era bacana tocar por tantas horas, treinar por tantas horas. Então, para mim, poder soar como alguém da banda dele era um privilégio. Sempre vou me sentir lisonjeado pela experiência, tanto com Miles, quanto com Charlie Parker. A música que você cresce ouvindo, e depois você tem a chance de tocar com um artista desse nível, é imensamente significativo. E agora estou em uma posição, depois de ter tocado com Charlie, com Miles, com Dizzy Gillespie, sou capaz de trazer alguma informação e linguagem também para alguns dos caras que tocam comigo. A música é uma troca. Mas, da mesma forma, Miles ainda é e sempre será o meu professor. É assim que o vejo. Nós nos tornamos bons amigos, saíamos para nos divertir, eu ligava pra ele e tocava alguma coisa no telefone e ele tocava em seguida. Mas mais do que aprender com todo mundo, eu gostava quando eles aprendiam comigo, sabe? Já sobre quando eu estava na Orchestra [de Duke Ellington], eu tinha 18 anos, saindo do ensino médio. Foi uma experiência diferente, eu finalmente tive a chance de realmente aprender sobre a música do Duke. Em primeiro lugar: eu era um viciado em música, não apenas em ouvir música, mas também em CDs, LPs, tudo o que pudesse arranjar. Não consigo pensar em nenhum músico da minha geração que tenha tido a chance de tocar com tantos grandes nomes e de tantas eras diferentes… com Dizzy (o pai do Bebop), com Miles (que veio de outra era), de todas as gerações. Mas eu sempre trouxe algo à mesa, especialmente quando eu os chamava para meus trabalhos. Eu tentava encontrar algo que os motivasse porque, você sabe, eles estavam tocando por anos e, depois de certo tempo, você acaba ficando cansado e eu esperava que minha música esperançosamente os inspirasse a tocar. Então, acho que como artistas nós temos que encontrar ou escrever algo que inspire outros músicos, gosto de tocar algo que valha a pena sentir, permitir que os músicos possam ir onde queiram ir, na sua zona ou onde quer que seja. É isso que tento fazer.
O que você acha que é mais importante para um músico, seja um músico de jazz ou de qualquer outro estilo: técnica ou feeling?
Acho que é estudar. Se você continua estudando, você aprende sobre culturas diferentes no mundo e começa a ver conexões que são excelentes e podem funcionar para você. Aprendemos muito sobre música, mas é preciso continuar estudando. Eu ainda estudo até hoje. Uma coisa que acho que um músico deve manter é a mente aberta e continuar aprendendo, porque você sempre vai aprender alguma coisa diferente no mundo.
E por falar em aprender, você é doutor “honoris causa” na Universidade de Berklee (Berklee Music College), uma das maiores instituições de música do mundo inteiro. O que isso significa pra você?
Oh, isso quer dizer que estou contribuindo para a sociedade e, você sabe, eles me honraram com isso. É um privilégio ser chamado de doutor, quer dizer, tenho um amigo que me chamava de Doutor Garrett muito antes de Berklee [risos]. Acho uma honra, mas ainda sou um estudante, ainda estou aprendendo. Espero continuar contribuindo e que a Berklee Music College nos dê muito mais doutores.
Como você tem sentido à recepção ao álbum “Do Your Dance!” (2016)? Qual o conceito?
Bem, basicamente, o conceito veio de que normalmente quem dança são pessoas felizes. E há pessoas no mundo que não dançam, então digo algo como “Dance”, “Faça a sua dança”, não se preocupe no que todo mundo está fazendo, não pense nos passos, dance de qualquer forma que você consiga. Você apenas precisa dançar. Foi daí que veio o conceito. Você não precisa dançar como um dançarino profissional. Você pode fazer do jeito que quiser.
E como este álbum foi gravado? Hoje em dia, muitos artistas gravam álbuns de uma forma que um toca a guitarra num dia, outro dia outro faz as partes de bateria, eles tocam em sessões diferentes, dias diferentes e o estúdio junta tudo e o álbum é lançado. Mas fazer jams, o encontro de músicos, com todo mundo tocando junto, fazendo improvisações, isso é muito característico do jazz. Como este álbum foi gravado?
Não. Estava todo mundo no estúdio ao mesmo tempo.
O que você acha desse tipo de gravação?
Isso se torna mais conveniente pra muita gente, mas, pra mim, sempre gosto de ter músicos lá ao mesmo tempo. Na maioria das gravações musicais você pode juntar as coisas depois, até por economia de custos, mas acho que não há uma comunicação verdadeira (nesse modo de gravação). Gosto de ter os músicos por perto e eles também gostam de mim ali. Mas não é que eu nunca tenha feito isso. Às vezes você chega ao final do processo de gravação de uma faixa e percebe que pode adicionar um elemento lá. Já fiz isso. Mas tento dizer (no momento da gravação) para as pessoas de uma forma que elas entendam sobre o que é aquela canção. Quero que haja comunicação. Se você me chama, quero responder tocando, e se te chamo pelo teu nome, quero a sua resposta da mesma forma. Se me deixarem sozinho, o resultado poderá soar ególatra, só meu.
Há uma canção chamada “Bossa” em “Do Your Dance!”. O que você mais gosta na música brasileira?
A música brasileira é muito rica. Não tenho a ouvido tanto como eu ouvia no início da minha carreira, mas ainda ouço muita música brasileira. Quando vim ao Brasil pela primeira vez (nos anos 90), comprei uns três livros com melodias do Antônio Carlos Jobim. Já tive experiências com pessoas que vieram de diferentes lugares, toco muitas músicas, mas, para mim, gosto de dar uma variada por culturas diferentes às vezes. Desta vez vou dar uma olhada bem melhor na música daqui porque vou fazer mais shows. Se estou tocando com músicos que são nativos do país em que estou, isso realmente ajuda, porque você pode tocar a música corretamente e, algumas vezes, na música americana nós estamos, na verdade, imitando o que ouvimos na música brasileira, nos ritmos e tudo mais. A música brasileira tem uma história rica. É bom estar em vários lugares diferentes, em contato com músicos diferentes. Às vezes estamos na Europa, às vezes na América do Sul, às vezes na África, e absorvo de tudo. Depende da situação em que estejamos naquela ocasião.
E desta vez você ficará no Brasil por quase uma semana. Como você está curtindo a viagem e o que você gosta no Brasil?
Esta na verdade será a primeira vez em que consigo ficar por mais que alguns poucos dias, então, a coisa principal quando você faz uma viagem mais longa é ter condições de descansar um pouco no começo. Foi o que tentei fazer logo que cheguei, mas adoraria conferir alguma música, amaria ir a alguma escola, universidade, ver música tradicional. Isso é o que adoro fazer. Também gosto de ir aos lugares, provar a comida, ver as pessoas, deixar o fluxo me levar antes dos shows. Normalmente o que gosto de fazer com a música é… nós viajamos pelo mundo e gostamos de fazer com que as pessoas experimentem a mesma música. Então, desta vez nós vamos tocar canções do “Do Your Dance!”, que é o meu álbum mais recente, mas também músicas do “Pushing The World Away” (2013) e de vários CDs diferentes. Você sabe como é, nós estamos aqui, é um ambiente bacana, as pessoas são legais, nós queremos nos divertir, mas também queremos trazer alegria e levar o público na viagem. Já toquei no Brasil antes e acho bonito estar de volta. Gostaria que as pessoas aparecessem e embarcassem na viagem, ouvindo boa música. Vamos compartilhar um tempo bom. Vamos compartilhar algumas memórias.
Como você vê o panorama do jazz, em particular, e do music business em geral na atualidade?
Bem, o negócio da música tem sido sempre um negócio. Nada realmente mudou. O jazz continua sendo um tipo de música para um seleto grupo de pessoas. Não fazemos shows em estádios ao redor do mundo. Ok, temos universidades onde as pessoas aprendem sobre jazz, mas isso ainda não a faz popular. Claro, como músico de jazz, eu gostaria que fosse mais popular, como a música brasileira é popular, como o hip-hop, como a música pop, mas não é assim. Até funciona se você mistura jazz com música pop, mas não necessariamente vai ser popular apenas porque vai ter algo diferente naquele ponto. Existe uma maneira de encarar o jazz de forma mais tradicional e existe uma maneira de encarar misturando com coisas mais populares. Faço isso também. Toco todos os diferentes tipos de batida no mesmo set, porque meus fãs sabem que gosto de diferentes estilos de música. Então, nunca tive tanto problema com isso, mas o que penso é que, em relação à música pop, muitos músicos que conheço fazem hip hop e outros fazem música pop, e não há nada errado com isso. Foi assim que a música chegou pra eles. Acho que você tem que decidir o que funciona pra você. Para mim, tenho feito música por um longo tempo e não posso dizer nada que desmereça sobre quem vai para este lado mais pop.
– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza.