Festival Radioca prova em 10 grandes shows que é possível fazer um grande festival com artistas completamente dispares

Texto por Marcelo Costa
Fotos por Rafael Passos

A cidade é Salvador no primeiro fim de semana cheio de outubro de 2017. O local é o Trapiche Barnabé, um velho (e belo) armazém portuário (sem teto, ao ar livre) datado de meados do século XVIII que celebra, neste fim de semana, a música do século XXI abrigando a terceira edição do badalado Radioca, um festival independente surgido em 2015 oriundo do programa de mesmo nome, no ar desde novembro de 2008 na Rádio Educadora FM de Salvador, e que mantém os dois pés fincados na diversidade musical. “O line-up reflete a variedade do que tocamos no programa”, comentava nos bastidores Luciano Matos, um dos responsáveis pelo programa (e pelo festival) ao lado de Roberto Barreto e Ronei Jorge.

A variedade é sempre uma faca de dois gumes na hora de montar um line-up, pois o choque entre artistas de premissas diferentes tanto pode ampliar a mensagem de que música boa não depende de fórmulas e estilos, e sim mais da qualidade de quem a produz, quanto pode causar estranhamento, mas não neste fim de semana, não no Festival Radioca. Tendo nas fronteiras abertas a facão pelo programa de rádio um horizonte a seguir em frente, o Radioca aposta na diversidade sabendo que seu público, mesmo sem conhecer esse ou aquele artista, confia na curadoria. E esse tipo de confiança é algo raro de se conquistar nestes dias de cinismo, dúvidas e, com pouco dinheiro circulando, oportunidades mínimas para correr riscos.

Por tudo isso, o Festival Radioca celebrar dois dias de casa cheia (cerca de 2 mil pessoas por noite), sorrisos e alguns dos melhores shows do país na atualidade é motivo para se acreditar que a boa música, sim, tem espaço e público. Com um line-up estendido em 2017 (se oito artistas se dividiram em dois dias de festival em 2015 e 2016, neste ano o número subiu para 10 convidados, divididos em cinco shows / dia), o Radioca se posiciona como um dos melhores festivais recentes da música brasileira não apenas pela escalação caprichada, mas também por todos os pequenos detalhes impecáveis de infraestrutura, som e ambiente, que garantiram ao público presente um local propício para se ouvir a nova música brasileira.

Livia NeryLivia Nery

Divulgadores defensores da nova cena local (Luciano Matos costuma falar dos melhores discos baianos em seu blog, o El Cabong; já Roberto Barreto é um dos fundadores do BaianaSystem e Ronei Jorge, após dois belos discos acompanhado da banda Ladrões de Bicicleta, prepara sua estreia solo produzido por Pedro Sá), o trio de curadores do Radioca sempre abre as portas do evento para artistas baianos: em 2015 foram escalados Pirombeira, Ifá e OQuadro; em 2016 foi a vez de Giovani Cidreira, Josyara e Retrofoguetes; já 2017 recebeu Livia Nery, Jadsa Castro e Raymundo Sodré, que dividiram as atenções com Far From Alaska (RN), Pio Lobato e Lucas Estrela (PA), Mopho (AL) mais Curumin, Quartabé, Metá Metá e Rincon Sapiência (SP). “O espírito do Radioca sempre foi e sempre será a musica, em sua essência”, escreveu a produtora do festival, Carol Morena, em seu Facebook, explicando o conceito (e mais um pouco).

Raymundo Sodré

Responsável por abrir os trabalhos num fim de tarde ensolarado, Livia Nery (com apenas um compacto) estreava no evento um show em formato banda (antes ela se apresentava sozinha com programações) para um bom público, que cresceu conforme o show ganhava corpo com um xameguinho aqui e um número mais dançante acolá. Funcionou e a baiana saiu aplaudida. “Nosso trabalho é instrumental então não há muito que falar”, pontuou Pio Lobato no show em que recebeu o jovem guitarrista Lucas Estrela. Nos primeiros minutos, mais experimentais e psicodélicos, o público tentava entender a alquimia sonora proposta pela dupla. No entanto, bastou Pio emendar uma guitarrada torta com sua homenagem “Mestre Vieira” para a plateia sacolejar e dançar ao som de belos duelos de riffs e solos entre os dois guitarristas.

Far From  Alaska

Aos 70 anos de idade, Raymundo Sodré entrou saltitando para festejar 40 anos de carreira e um disco novo. De todos os shows do fim de semana, foi um dos mais politizados: “2018 está logo ai e o bicho está pegando. Se fosse na China, Brasília já teria acabado”, pontuou em certo momento para depois fazer todo mundo cantar o refrão de “Deixa de Ser Besta”, que pedia para não acreditar nos principais partidos políticos do país, sem exceção. Do samba chula de Sodré para a porrada rock metalizada do Far From Alaska, tocando pela primeira vez na cidade, e com uma plateia devota cantando todas as músicas, inclusive as novas do recém-lançado “Unlikely”. Extremamente competentes de palco, o Far From Alaska fez um dos grandes shows do fim de semana, e se posiciona hoje como uma das melhores formações ao vivo do país.

Rincon Sapiência

Enquanto o palco era arrumado para o último show do sábado, de Rincon, no backstage uma cena inusitada acontecia: “Cara, eu já estava indo embora quando ouvi o som da sua guitarra, que incrível”, dizia Raimundo Nova, guitarrista tarimbado que integra a banda de Raymundo Sodré tocando o segundo vilão no palco, a Rafael Brasil, do Far From Alaska. “Que afinação você usa?”, perguntava o músico num autentico encontro de gerações. Bonito de ver. No palco, Rincon acompanhado de percussão, beats e guitarra, começou o show  inseguro devido a problemas no retorno do fone de ouvido. A partir da quarta música, porém, o show engatou um crescendo vertiginoso com as melhores faixas de “Galanga Livre”, um dos grandes álbuns de 2017, entoadas em coro pela plateia, que fez a maior festa do dia, pulando, sambando e cantando, no hit “Ponto de Lança”.

Jadsa Castro

O tempo permaneceu bonito no domingo, e outra jovem promessa da cena local recebeu as boas vindas de um bom público, que chegou cedo para ouvir a intensidade de Jadsa Castro, tocando canções de seu primeiro EP, “Godê” (2015), e faixas ainda inéditas, com a sensacional “LavA”, que culminou com Jadsa, aos gritos, clamando: “Mais Josyara, Giovani (Cidreira) e Livia (Nery): Mais Bahia”. Na sequencia, e timidamente, João Paulo surgiu com uma das bandas mais bacanas deste século no que tange a rock regressivo, a Mopho. Comedido no microfone, mas solto nas cordas da guitarra, João conduziu banda e público por um set que passeou pelos quatro álbuns da banda, da estreia com o já clássico disco homônimo de 2000 (que ganhou uma bela reedição em vinil “mofado” tempos atrás) até “Brejo”, o quarto disco, recém-lançado (e listado como um dos 25 melhores discos do primeiro semestre pela APCA). Sofreu com problemas no som, mas fez um show digno.

Mopho

Delicadamente vestidos como se tivessem indo para a escola, a Quartabê tinha dupla função na escalação do Radioca: mostrar as canções que eles rearranjaram do mestre Moacir Santos e ampliar os limites do evento (que havia quebrado a barreira da língua com o Far From Alaska, primeira banda cantando em inglês nas três edições do festival) colocando o povo para dançar um instrumental suave e jazzístico – não fosse a pausa no meio do show, que tirou o público do transe e abriu rodas de conversa, seria uma apresentação impecável. E o público parou de falar e começou a cantar alegremente assim que Curumin subiu ao palco, e emendou um daqueles shows que você só para de dançar quando acaba. Com repertório focado no álbum “Boca” (outro dos grandes discos de 2017), mas espaço para participação de Russo Passapusso e hits como “Passarinho”, “Magrela Fever”, “Afoxoque” e “Compacto”, Curumin deixou todo o público sorrindo após um baita show.

Quartabé

Encerrando a maratona, um Metá Metá em irrepreensível formato quinteto (aos membros originais Kiko Dinucci na guitarra, Juçara Marçal na voz e Thiago França no sax se juntaram o baixista Marcelo Cabral e o baterista Serginho Machado – que já havia tocado junto com o Quartabê) fez uma apresentação tão poderosa que deverá permanecer na memória do público presente por um bom tempo. Com canções retiradas de seus três álbuns (todos disponíveis para download gratuito) mais “Odara Elegbara”, que eles fizeram para a trilha do grupo de dança O Corpo, o Metá Metá devolveu a energia do público com muita intensidade num set que juntou noise, afrobrasilidades e resquícios punks, o que culminou em pequenas rodas de pogo aqui e ali no Trapiche Barnabé. No fim até rolou bis (o único de todo o festival).

Russo Passapusso e Curumin

Se o ditado popular diz que um é pouco e dois é bom, o três desta edição do Festival Radioca demonstra apenas que o festival está no começo de uma trajetória corajosa, que conta com o respaldo de um público esperto que confia na curadoria, e está de olhos e ouvidos atentos para o novo. Do afrorap de Rincon Sapiência ao rock regressivo do Mopho, do math indie grunge rock com influências brasileiras do Far From Alaska até a MPB com sotaque local de Jadsa Castro passando pelo samba chula de Raymundo Sodré, a eletrônica dançante de Livia Nery e o brazilian soul de Curumin até a guitarrada de Pio Lobato e Lucas Estrela, o jazzy torto do Quartabé é o afropunk do Metá Metá, o Festival Radioca provou em 10 grandes shows que é possível fazer um grande festival com artistas completamente dispares: basta estar atento (e forte). Vida longa ao festival!

Metá Metá

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Rafael Passos (www.facebook.com/rafaelpassosfotografo) é fotógrafo do Festival Radioca

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