Texto por Renan Guerra
Ainda antes dos créditos iniciais de “Bingo” aparece a mensagem na tela “ajuste o tracking para a melhor qualidade do filme”, com aura de VHS e chiados típicos. Está claro, estamos de volta ao passado. Nesse retorno aos anos 80 é interessante saber um pouco mais sobre o que há de real na história: Bingo é o Bozo, Augusto é Arlindo Barreto, TVP é o atual SBT – antiga TVS – e a Mundial é a platinada Globo. Trocando os nomes reais por causa dos direitos autorais, o filme de Daniel Rezende conta a história de exageros e excessos de um dos intérpretes do famoso palhaço infantil.
“Bingo” acompanha a trajetória de Augusto (Vladimir Brichta), ator de pornochanchadas que, esnobado pela emissora Mundial, acaba aventurando-se ao interpretar o infantil Bingo na TVP, tornando-se assim o Rei das Manhãs da década de 80, incluindo aí seus exageros, em meio a uma vida boêmia, com orgias regadas a litros de uísque e carreiras de cocaína. Grande parte dos acertos do filme encontra-se na interpretação irretocável de Brichta, um ator que ainda não havia brilhado dessa forma – apesar de uma carreira longa no cinema, que já conta com mais de 12 filmes, entre eles “Real Beleza”, de Jorge Furtado, e “A Mulher Invisível”, de Claudio Torres. Vladimir Brichta consegue dar conta da dicotomia de ser uma estrela para as crianças tanto quanto da figura complexa que surge abaixo da maquiagem, acrescentando assim um ar cafajeste ao seu Augusto que o torna inevitavelmente charmoso, levando o espectador para esse universo de exageros de forma bastante divertida.
Leandra Leal é sua principal parceira de cena e acerta o tom ao interpretar Lúcia, a diretora crente do programa infantil; já Ana Lúcia Torre encanta ao interpretar Marta, a mãe de Augusto, uma atriz amargurada que sobrevive como jurada em um programa de calouros. Porém, o grande destaque é Vasconcelos (Augusto Madeira), o cameraman parceiro das orgias de Augusto, com uma interpretação certeira que habita o espaço tênue entre a sedução e o asco. Destacam-se ainda as participações de Tainá Muller, bela mesmo sob um cabelo volumoso; Emmanuele Araújo como Grecthen (única personagem real que autorizou seu nome no filme) e Domingos Montagner como um palhaço, um delicado último personagem para o ator que se dedicou a arte dos picadeiros.
A história de Arlindo Barreto, o personagem real, já foi capa de muitos tabloides, como o Notícias Populares, porém sua trajetória na cultura pop nacional vem desde os tempos da Boca do Lixo. No filme “Corpo Devasso” (1980), de Alfredo Sternheim, por exemplo, Arlindo interpreta um homossexual cheio de problemas existenciais e uma paixão idílica por David Cardoso. Em sua filmografia como ator ainda há títulos como “A Noite das Taras” (1980), “A Insaciável – Tormentos da Carne” (1981) e “A Fábrica das Camisinhas” (1982). As histórias de excessos que as reportagens sensacionalistas (de jornais e portais) narravam previam que o conteúdo dava pano para um filme daqueles bastante exagerados, do tipo “drama sobre os efeitos nocivos das drogas para que se exiba aos adolescentes na escola”, porém o filme de Daniel Rezende acerta outro alvo. Com um olhar estilizado sobre a década de 80, “Bingo” é um filme cool, que diverte e transforma as cenas mais alucinantes em gargalhadas do público.
“Bingo” marca a estreia de Daniel Rezende na direção, mas sua carreira em cinema é longa, com grandes serviços prestados ao cinema nacional, tendo sido montador em vários filmes, entre eles “Cidade de Deus” (2002), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar, “Diários de Motocicleta”(2004), “O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias” (2006) e “Tropa de Elite” (2007), além de títulos internacionais como “Ensaio Sobre a Cegueira” (2008), “Árvore da Vida” (2011) e “Robocop” (2014). Sua experiência lega ao filme um cuidado minucioso, tanto na trilha (que traz Echo & The Bunnymen e Devo, por exemplo) quanto na construção do roteiro, que é ágil, direto e bastante criativo, sem deixar levar-se pelos clichês das cinebiografias que abundam no cinema nacional dos últimos anos.
Destaca-se também a fotografia de Lula Carvalho, que enche a tela de neon, lembrando em certos momentos os filmes de Dario Argento ou Gaspar Noé, mas que conversa de forma bastante interessante com os filmes do neon-realismo à brasileira dos anos 80, como, por exemplo, “Anjos da Noite” (1987), de Wilson Barros e “A Dama do Cine Shangai” (1987), de Guilherme de Almeida Prado. Outro trunfo do filme é conectar apelo nostálgico (de fácil sedução para quem viveu a época) com recriação cuidadosa do período (para quem não estava lá). Nesse quesito, os detalhes culturais são tão bem apresentados que funcionam como gatilho nostálgico para alguns e como viagem temporal para outros: estão lá os exageros da TV, os cabelos volumosos, a trilha com direito a Metrô e um olhar extremamente ácido sobre a cultura pop nacional, que nos demonstra como não mudamos tanto assim nesse tempo. No final das contas, “Bingo – O Rei das Manhãs” é um filme que apresenta uma história bem barra pesada, porém de uma forma tão sagaz e quase sórdida, que transforma o nonsense da cultura pop dos anos 80 em um artigo de luxo para o nosso cinema. Eis uma prova de que se pode fazer cinema brasileiro pop e comercial com qualidade técnica e sem subestimar o espectador.
Nota: ****
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha e Scream & Yell.
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