entrevista por Leonardo Vinhas
No Vento Festival 2017, em São Sebastião, uma banda estreante conseguiu chamar a atenção do público em meio a um line up extenso que incluía nomes como Francisco El Hombre, Metá Metá e Ava Rocha. A Mulamba, um sexteto curitibano, chegou ao festival por escolha popular, resultado da iniciativa Open Mic, uma espécie de competição online em que as bandas podiam se inscrever e, após serem pré-selecionadas por um júri, receber votos, com a campeã da seletiva sendo escalada para tocar no festival. A Mulamba não só foi eleita, como chegou com expectativa do público – não eram poucas as pessoas que cantavam as canções junto com as vocalistas Amanda Pacífico e Cacau de Sá.
Antes disso, a banda já gozara de um considerável estouro online, com centenas de milhares de visualizações do clipe de “P.U.T.A.”, uma canção com letra densa e direta sobre estupro e a cultura violenta acerca da exposição do corpo feminino. No vídeo, todo em preto e branco, não há apelo a imagens visuais: o choque acontece todo pela letra, embalada em um arranjo folk grave e crescente. É curioso como uma banda que começou como um “tributo a Cássia Eller” tenha evoluído para um repertório autoral em tão pouco tempo (elas se juntaram no começo de 2015), ainda mais considerando que esse repertório está sendo construído em torno de uma proposta ideológica específica. Por ora, apenas três canções estão disponíveis nas plataformas de streaming: “Provável Canção de Amor para Estimada Natália” (em versão de estúdio e ao vivo), “Mulamba” e a já citada “P.U.T.A.”. A conquista do Open Mic renderá a gravação de um EP, bancado pela Red Bull Academy, com lançamento entre o fim do segundo semestre de 2017 ou começo de 2018.
A sonoridade da Mulamba tem seus eixos bem identificáveis: melodias delicadas, arranjos majoritariamente acústicos com poucas explosões, o poder vocal de Amanda e Cacau (que ora somam as vozes, ora as alternam, ora as contrastam), os detalhes instrumentais que podem vir do cello de Fer Koppe, do baixo roqueiro de Naíra Debértolis, da guitarra “limpa” de Nat Fragoso ou da inventiva simplicidade da baterista Caro Pisco. O resultado dessa combinação, pop em essência e agressiva na atitude, funciona a favor de uma bandeira feminista assumida. Como se nota nessa entrevista ao Scream & Yell, realizada logo após o show delas no Vento Festival, a “mensagem” é assunto recorrente – e inegável – nas conversas com a banda.
Nas primeiras entrevistas, a banda falava muito da “mensagem” que queria passar. O quanto o discurso é importante? Ele está em pé de igualdade com a música, ou está acima dela?
Naíra: A gente descontruiu pra caramba o discurso que tínhamos antes, e construiu um repertório 100% autoral.
Fer: O discurso é um grito, uma fala. É uma linguagem, e a música é outra.
Amanda: A música é a ferramenta com a qual levamos essa mensagem. Podia ser outro tipo de arte. É a que a gente escolheu, ou foi escolhida por ela.
Cacau: Eu estou passando minha mensagem pela música, mas se eu descobrir uma forma de passar minha mensagem de maneira mais rápida, eu largo a música. É isso. A gente está se vendo cada vez mais como um instrumento de mensagem, de amor, de revolta – de tanta coisa! Sério.
Amanda: E se a gente foi escolhida pela música para passar essa mensagem, que cada uma faça isso da melhor maneira. Cada um dentro do seu instrumento tenta melhorar para transmitir melhor o que queremos transmitir.
Cacau: [Nossa música] É um produto que vamos vender? É, claro, porque a gente precisa comer. Mas não é um produto vazio. Tudo bem a música como entretenimento – amamos isso. Mas que ótimo quando ela consegue ser um instrumento maior, consegue dar voz a n bocas, a corpos que são massacrados…
Mas o quanto essa mensagem entra naturalmente? Você acabou de falar em “grito”, mas há muita sutileza melódica, há um convite à escuta…
Naíra: A gente falou sobre isso ontem. Principalmente “P.U.T.A.”, a melodia dela não é nada agressiva. É totalmente sutil na estrutura, na construção… Até chegar no grito, é tudo sutil, e ainda assim ela é, pra mim, a nossa música mais agressiva.
Amanda: A Ju [Strassacapa], da Francisco El Hombre, nos disse que “P.U.T.A.” já ganha a gente na melodia, disse que você escuta a introdução e já sabe que vai vir algo que vai ter que parar para ouvir. A canção te ganha para depois te dar uma porrada, um tiro na cara.
Inclusive, vejo semelhanças entre vocês e a Francisco El Hombre. Claro, vocês são muito mais melódicas, e eles muito mais rítmicos…
Naíra: Mas a gente tá aprendendo um monte de coisa com eles (risos).
…mas do mesmo jeito que é perceptível que a Francisco não é um personagem para o palco e para os clipes, que eles são quem são independentemente do meio que usam vocês também passam isso. A militância vem da ação, da postura de vocês.
Natalia: A gente descobre isso militando. Acho que cada uma aqui, quando sai de casa, sabe que tá representando a Mulamba. Sei que o que eu fizer, o que eu falar, vai representar a Mulamba, esteja eu onde estiver.
Vocês tocaram em dois festivais maiores: o Coolritiba e o Vento, sendo que nesse último chegou por voto popular. Considerando que a banda tem um ano e meio de existência, é uma presença bastante significativa. O que tem proporcionado esse crescimento, na visão de vocês?
Amanda: Também tocamos no Noites Morrostock, em Porto Alegre. Acho que vale falar disso, porque foi um palcão, que é o Opinião, que representa um divisor de águas para a gente em termos de desenvolvimento e estrutura. E a gente abriu pra Linn da Quebrada também, que é uma artista com tudo a ver com nosso discurso. O que faz o nosso crescimento é saber que tem pessoas que se sentem representadas pelo nosso discurso, não é só chegar e tocar uma canção que fizemos em casa.
Naíra: Acho que foi quando “P.U.T.A.” estourou que nos demos conta de que estávamos representando muita gente. Precisamos parar, respirar, ver o que estava acontecendo. O que chegou de mensagem… A mulherada desabafando mesmo, histórias verídicas… Foda pra caralho! Eu li umas que, meu Deus do céu! Eu não passei por isso [violência sexual], mas teve umas que eu li e senti em mim, sabe?
Como está a cena em Curitiba agora? Já houve jornalão dizendo que Curitiba é a “Goiás do Sul”, tamanha a presença do sertanejo. E socialmente, a cidade também é, no mínimo curiosa, com pequenos focos progressistas em meio a um forte conservadorismo geral.
Cacau: A gente está com um sarau, o primeiro teve já 200 pessoas. O sarau agrega outras almas, outros artistas, fomenta a cena e a coisa do buscar-se. Une as almas que tem esse mesmo pensamento de libertação que a gente tem. A cidade está sendo muito reprimida pela prefeitura atual, com bares sendo fechados, shows sendo cancelados, gente perdendo trabalho. Mas também tem uma resistência muito forte, há gente cantando na rua. Você consegue caminhar na rua e ver uma “Curitiba lado B” que não está nos palcos, não está nos bares requintados, mas está acontecendo, está fervilhando. A cidade está crescendo, recebendo migrantes, outras cabeças, outras visões. Acredito que isso vai deixar a cara da cidade mais maleável no futuro.
Amanda: Nossos próprios amigos músicos não são só curitibanos, e isso fez um esquema de criar novos espaços para se promover, tocar.
Naíra: Mas olha, eu sou de Porto Alegre. A cena de lá não se compara, a de Curitiba é muito mais movimentada. De cinco shows que a gente fez em Curitiba, em pelo menos três tinha mais de 500 pessoas. Isso é demais pra uma banda independente que só tinha duas músicas lançadas. Então acho que é uma cena que resiste.
Amanda: Mas a gente era novidade, e a novidade enjoa fácil. Por isso que tem que cuidar. Ao mesmo tempo, tinha gente de lá que achava que a gente era de São Paulo.
Vamos aproveitar a deixa e falar de estúdio, então. Vocês estão preparando um disco completo, novos singles?
Amanda: Estamos focando no audiovisual. Estamos fazendo uns clipes, o de “Mulamba” tá por vir, e está maravilhoso. Vai ser tiro também, porrada na cara. A Virginia de Ferrante é a diretora, e fizemos uma dinâmica para que conversássemos com as mulheres que participaram e conhecêssemos a história de cada uma. Espero que as pessoas que assistem descubram que o que estamos mostrando está além da música. Mas não vou dar spoiler (risos).
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. Foto que abre o texto por Leticiah Futata/HAI studio.