entrevista por Marcelo Costa
Felipe Souza de Albuquerque é um músico que apresenta uma das características principais da criação artística: a inquietude. Despontando como vocalista do Mombojó em 2001, uma banda que rapidamente saiu de pequenos palcos para se apresentar para grandes multidões (e que cravou um dos grandes álbuns brasileiros deste século: “Nadadenovo”, o álbum de estreia do Mombojó, figurou em quarto lugar na votação de melhores discos de primeira década deste século feita pelo Scream & Yell), Felipe S. logo se enveredou por outros projetos como o Trio Eterno, o Del Rey (onde toca guitarra) e, agora em 2017, sua aguardada estreia solo.
Lançado em janeiro, “Cabeça de Felipe”, primeiro disco solo de Felipe S., é um retrato criativo dos novos tempos seja na produção “caseira” com acabamento profissional (“O álbum foi 80% gravado em meu apartamento”, ele conta na entrevista abaixo), seja na temática observadora dos dias atuais presente nas letras (“Estamos vivendo um momento de extrema segregação, mas acho que conflitos serão inevitáveis”, pontua), seja no formato de apresentação ao vivo, que contempla a possibilidade de um sexteto (como foi no show do MASP) ou mesmo de Felipe sozinho acompanhado de um vinil (como foi no Tardes Scream & Yell, na Sensorial Discos).
“Quis ter na minha carreira solo as mais variáveis formas de se apresentar possíveis”, conta Felipe S na entrevista abaixo, feita através de uma longa troca de e-mails. O bate papo ainda trata do lançamento de seu novo clipe, para a faixa “Anedota Yanomami” (canção escrita sob o impacto da tragédia em Mariana, MG. “O clipe mostra devaneios de situações de opressão”, diz Felipe), que você assiste em primeira mão no Scream & Yell, e que teve direção de Luan Cardoso, da Quixo Produções.
“Cabeça de Felipe” é sua estreia solo. Como é para você estar solo depois de trabalhar tantos anos com bandas?
Foi uma surpresa pra mim. Não foi nada premeditado, mas a partir de junho de 2016 comecei a sentir essa vontade e achar que naquele momento seria viável conciliar a carreira solo com a banda por que metade dos músicos do Mombojó voltaram pra recife. E estávamos esperando há um tempo conseguir um lançamento fora do Brasil do material produzido com a Laetitia Sadier (que foi lançado oficialmente em abril). Esses fatores criaram um intervalo que foi onde eu criei e finalizei o “Cabeça de Felipe”.
As canções do álbum foram compostas quando? São todas novas ou há alguma coisa ali que você tinha guardado por achar que não cabia no Mombojó ou no Trio Eterno?
Algumas músicas são bem antigas como “Departamento do Amor” e “Vão”. Ambas eu já toquei em apresentações ao vivo do Trio Eterno, mas a maioria das músicas são mais novas. Boa parte surgiu em 2013 naquele ano bem agitado. Não separo qual música é para qual projeto, mas no Mombojó a gente sempre pensa coletivamente quais músicas gravar e sempre mostro várias.
O álbum foi gravado dentro do seu apartamento? Como rolou isso?
O álbum foi 80% gravado em meu apartamento. Fui trabalhando nas musicas como se fossem demos. Gravei voz, violão, baixo, teclado e guitarra. E fui sentindo que o resultado estava ficando satisfatório. Tanto é que tem poucos instrumentos em cada música. Quando esgotei as minhas ideias comecei a botar as ideias e execuções dos amigos nas musicas. Depois gravei algumas vozes em estúdios (Veredas e Trampolim) e meus amigos foram mixando as musicas das suas casa ou dos estúdios (Veredas e Trampolim também). O disco foi masterizado por Arthur Joly que também mixou uma das musicas.
Aliás, o Arthur Joly também prensou um vinil com algumas bases do disco para te acompanhar ao vivo, certo? Como surgiu essa ideia e como você imagina levar esse show ao público?
Quis ter na minha carreira solo as mais variáveis formas de se apresentar possíveis. Seja sozinho ou acompanhado por um sexteto. Daí surgiu a ideia de prensar um vinil para quando tiver a oportunidade de tocar em cima de bases pré-gravadas. Por enquanto só tive uma única chance quando toquei na Sensorial Discos aqui em São Paulo num evento do S&Y.
Eu fui descobrir que teu pai era artista plástico no ano passado, quando estive no Sesc Santo Amaro e vi algumas obras dele. Como a arte dele te influenciou?
Meu pai me ensinou a ver as coisas com outros olhos pelo fato dele ser artista. E acho que carrego muito disso na minha formação e na hora de criar. Pra mim é muito simbólico positivamente ter uma obra dele que ele fez pra mim como capa do meu primeiro disco solo.
“Cabeça de Felipe” trafega por várias sonoridades, uma canção é diferente da próxima. Isso foi planejado?
Isso é uma das minhas características em todos os trabalhos que faço. No “Cabeça de Felipe” não quis fugir disso. Na verdade, acho que tive mais espaço pra deixar que outras pessoas dessem suas caras em minhas musicas.
Algumas parcerias do álbum são de artistas que não trabalham diretamente com composição musical, como é o caso do artista plástico Cristiano Lenhardt e da atriz Juliana Didone. Como surgiram esses encontros?
Cristiano já foi meu parceiro na música “Saí Descalço” no disco do Trio Eterno. No “Cabeça de Felipe” ele fez o cenário do show. Ele é um amigo muito próximo e gosto muito de fazer coisas com ele. Já a Juliana foi muito por acaso. Se falamos poucas vezes ao vivo. E na vez em que eu conheci ela chegamos ao assunto que ela escrevia letras e poesias. Eu pedi pra ela me enviar algumas coisas. Daí pra mim “Tigre Palhaço” foi um imenso presente. É das musicas que mais gosto desse disco. Acho que é muito enriquecedora essa troca com novos parceiros. E desse jeito que quero fazer os próximos trabalhos também.
“Anedota Yanomami” foi escrita sob o impacto da tragédia em Mariana (MG); “Nova Bandeira” nasceu de um episódio racista, como você explicou ao JC: “Um cara com estereótipo do skinhead e com bandeira do Brasil estava quase brigando com um amigo meu porque ele era nordestino”. Como você vê a situação atual do país?
Estamos vivendo um momento de extrema segregação. Nós mesmos e nossos semelhantes cada vez mais intolerantes com as diferenças, (mas) acho que conflitos serão inevitáveis.
Nessa entrevista do JC você conta que “Santo Forte” foi feita para Mart’nalia e “Sabe Quando” por encomenda para Filipe Catto. Paralelamente, há uma regravação de “Vão”, de Públius e Juliano Holanda. Como você chegou a essa canção?
A primeira versão que ouvi dessa música “Vão” foi gravada pelo Mestre Ferrugem. Fiquei viciado e, como falei, já tocava ela em outros projetos. Esse disco do Mestre Ferrugem é muito bonito. Ele vinha há muito tempo cantando côco e depois de décadas foi convidado para gravar um disco com banda em estúdio. A produção foi de Sergio Cassiano e muitos jovens bons músicos da cena de Recife participaram.
Como surgiu a ideia do clipe de “Anedota Yanomami”?
As primeiras ideias surgiram de alguns sonhos que tive com um índio que falava comigo e eu nunca entendia. E eu transformei isso numa letra fala sobre como não conseguimos viver juntos as nossas diferenças. Quando a convivência deveria ser o menor dos problemas acabou virando algo que atravessa muitas gerações. Onde no fim das contas todos somos reféns do dinheiro. O clipe mostra devaneios de situações de opressão. Assalto, morte, vida após a morte, nossa relação com nossos semelhantes. Foram coisas que passeavam na minha cabeça quando fiz a música.
E por que ela ser o primeiro “single” do disco?
Essa música é que mais simboliza meu sentimento atual, na minha opinião. Por isso começo o disco com ela. E por isso resolvi fazer um primeiro clipe dela.
Ela representa bem o “Cabeça de Felipe”?
Acho que é algo bem pessoal. Isso é como eu me identifico por mais que eu sei que o disco tem uma ampla variedade de ritmos. Seguindo a lógica da primeira impressão é a que fica quis começar por essa música
Num bate papo rápido que tivemos na Sensorial, você disse que estava buscando fazer as coisas desse disco solo de uma maneira mais relaxada, afinal o Mombojó surgiu e em pouco tempo já estava tocando direto para uma multidão de pessoas. A vontade então é de ir explorando sossegadamente as possibilidades do álbum?
É exatamente isso. Quero fazer tudo por conta própria cada vez mais. E estou curtindo começar tocando para 100 pessoas por algumas cidades do Brasil. Dá um clima intimo com as pessoas que estão indo nos seus primeiro shows de carreira. Começar degrau a degrau, coisa que, por sorte, eu não tive com o Mombojó e sou muito feliz por isso também. Cada projeto com seu momento.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. A foto que abre o texto é de Luan Cardoso / Divulgação