Texto por Renan Guerra
Alzira Espíndola, que atualmente assina como Alzira E, é uma artista de carreira longa e sólida no underground brasileiro optando quase sempre pelos caminhos mais obtusos e corajosos. Integrante do clã sul-mato-grossense dos Espíndola, ela estreou ao lado dos irmãos em “Tetê e o Lírio Selvagem”, no final dos anos 70. Na década de 80, já residindo em São Paulo, enveredou-se pela Vanguarda Paulista, lançando seu disco de estreia produzido pelo amigo Almir Sater em 1987.
Nos anos 90, Alzira viajou pela Europa ao lado de Itamar Assumpção e lançou, com ele, o disco “AMME” (1991), pelo selo loja Baratos Afins, depois mais dois discos ao lado de sua irmã Tetê Espíndola. No início do novo século recuperou o repertório da cantora Maysa em “Ninguém Pode Calar” (2000) e ao lado da poeta Alice Ruiz gravou “Paralelas” (2005). Em 2007 assumiu a alcunha Alzira E e iniciou uma parceria com o poeta arrudA, que segue até esse disco “Corte”, encontro da artista com músicos da nova geração de São Paulo.
“CORTE”, a banda, o show, o disco, surgiu de um convite do músico Marcelo Dworecki – integrante do Bixiga 70 e que já tocava ao lado de Alzira há alguns anos – para que juntos eles fizessem algo novo e diferente. Para o show, eles chamaram Daniel Gralha (trompete) e Cuca Ferreira (flauta e saxofone), ambos também do Bixiga 70, e o baterista Fernando Thomaz, parceiro de Marcelo na banda Strombólica. O repertório ficou todo por conta de músicas de Alzira, compostas ao lado de arrudA e Tiganá Santana.
Tocando juntos desde 2015, o grupo se reuniu em maio de 2016 e, em apenas quatro dias, gravou o disco, de forma ao vivo e crua. Essa gravação veloz transmite a intensidade que permeia o som de “CORTE”, algo híbrido entre o rock e o free jazz, apresentando ao ouvinte uma luta entre os instrumentos de sopro, mesclando distorções e criando um caminho de espinhos em torno da voz de Alzira. Ela, aliás, estreia aqui também como baixista, instrumento com o qual geralmente compõe.
Suas composições, por sua vez, dão esse caráter ainda mais distinto ao disco: ao lado de arrudA, Alzira cria cenários mais psicodélicos, já ao lado de Tiganá, despontam olhares mais filosóficos. E tudo funciona de forma interligada, criando sobre o disco certa camada niilista, que engendra-se sobre o ser humano em distintas perspectivas, como a afirmar na faixa “Não Existo” que “Podemos existir e duvidar de tudo isso”!
De sonoridade quebradiça, é inegável o paralelo de “CORTE” com outros rumos da música produzida em São Paulo atualmente, em projetos de gente como Thiago França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci – que neste ano também lançou o ótimo “Cortes Curtos”, de título próximo a este aqui. Apesar desse diálogo com seus contemporâneos, “CORTE” ainda soa bastante único e inventivo, trazendo novo fôlego e apontando novos passos para a carreira de todos os envolvidos.
Em seu caráter mais indefinível, “CORTE” consegue soar um olhar interessante sobre nosso tempo: não há definições bem estabelecidas de certo ou errado em suas composições, há aqui uma tentativa de tatear a nossa existência em tempos tão difusos. Faixas poderosas como “Intriga”, “Nada Disso” e “Em Nome de Quem” expõem a força do disco e propõem um desafio, como se devêssemos nos debruçar sobre cada uma dessas faixas, catando os cacos em busca de compreensão (sobre nós mesmos).
Em “Cheguei”, talvez a faixa mais acessível do álbum, Alzira entoa “Cheguei / E a chegada nem é lugar / Nem é morada”, afirmando o caráter inquieto desse projeto, que surge como faísca, que vem e taca fogo, espalha-se e apaga-se ali adiante, para depois fazer surgir outros focos de incêndio. No site oficial, que oferece o álbum com suas 10 canções para download gratuito, um texto de Peri Pane pede: “Que o CORTE vá além da ruptura. Que seja partida, partilha!”. Que seja!
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha e Scream & Yell.
Muito bom seu artigo, parabéns.