entrevista por Marcos Paulino
Quando criança, o pernambucano Ayrton Montarroyos tinha vergonha das músicas que escutava. Afinal, não foi sem surpresa que seus amigos descobriram que ele gostava de Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto e outros intérpretes clássicos. Mas Ayrton não deixou de admirar seus ídolos, mesmo mantendo o ouvido aberto para sons mais “modernos”. E foi interpretando canções da MPB que chegou à final do “The Voice Brasil” 2015, de onde saiu como um dos cantores preferidos do público, que dele ouviu “Força Estranha” e “Carinhoso”, entre outras.
Aos 21 anos, Ayrton lançou em abril de 2017 seu primeiro disco, misturando composições de gente consagrada, como Caetano Veloso e Zeca Baleiro, e novos autores, a exemplo de Tiné e Zé Manoel. Em todas as faixas, ele faz sua releitura muito pessoal, a ponto de transformar o samba “Alto Lá”, de Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Sombrinha, em tango com arranjo de Artur Verocai. Como descreveu Renan Guerra aqui mesmo no Scream & Yell, “Ayrton reverencia o passado, mas mira no futuro”.
“Tive uma oportunidade não de me mostrar, mas de aprender”, conta Ayrton em entrevista ao Mundo Plug, parceiro do Scream & Yell, sobre sua experiência no “The Voice Brasil”, programa que ele havia recusado dois convites antes da última tentativa da produção, “meio em tom de ultimato”. Ele aceitou, foi escolhido por Lulu Santos (“Ele foi rígido comigo, não me deixava errar”) e conseguiu ser finalista do programa. Agora chega ao seu próprio disco e fala com bastante maturidade sobre sua carreira: “Talvez seja loucura dos meus 21 anos o que estou falando, talvez não, só o tempo dirá”. Confira o bate papo.
Como surgiu a chance de participar do “The Voice Brasil”?
Participei do “Encontro com Fátima Bernardes”, onde tive a oportunidade de cantar, e aí surgiu o primeiro convite para o “The Voice”. Recusei dois convites pra participar de uma audição, por achar que não tinha o perfil do programa. Sempre fui muito cético quanto à competição, achava que não poderia entrar. E não me entrava na cabeça que o “The Voice” tivesse interesse pelo estilo musical que eu cantava. A terceira ligação da Globo foi meio em tom de ultimato. Disseram que queriam investir em música popular brasileira, que seria muito bom que eu fosse. Passei pela audição e me chamaram. E participar do programa foi uma das coisas mais importantes da minha vida. Tive uma oportunidade não de me mostrar, mas de aprender. O público do “The Voice” foi meu o gás pra cantar as coisas de que gosto. Quando cantei Lupicínio Rodrigues, consegui o recorde de votação para aquela fase. Senti que não precisava ter vergonha do que faço.
Esse gosto peculiar por cantores e compositores de várias décadas atrás vem desde sua infância. Como seus amigos viam isso?
Era engraçadíssimo. Na minha casa, todo mundo trabalhou com música em algum momento, mas lá não se ouvia muita música. Tinha um aparelho de som ali parado, com discos antigos, e eu colocava pra ouvir. Aquilo me tocava profundamente, eu me pegava chorando com Dalva de Oliveira e outros artistas cantando. Mas eu não sabia que aquilo não era atual, porque não assistia à televisão. Um dia, no colégio, teve um trabalho pra gente falar sobre nossos ídolos, e escolhi Dalva de Oliveira. Ninguém sabia quem era essa mulher, aí que percebi que eu era diferente. Fiquei chocado e com vergonha de gostar. A única coisa mais jovem que escutava era Rouge, “Aserehe ra de re”, porque tocava em todo lugar. No mais, era Cauby Peixoto, Dalva e daí pra trás.
E no programa você conviveu com o Lulu Santos, seu técnico, que era o cara mais do pop, do rock. Como foi essa parceria?
Foi interessante, porque o Lulu é um cara muito antenado, assim como me julgo ser. Acho que você precisa conhecer os dois lados. O Lulu é assim também, ele sabe tudo sobre música antiga, mas está sendo produzido por um menino chamado Silva, que é um músico talentoso, com pouca gente ligada nele. Ele tem essa capacidade de renovação. No programa, ele encontrou em mim essa voz brasileira que queria ter. Fomos um ponto de resistência, eu era a pausa, representava o silêncio. Brincava com os diretores que tinha muita gente cantando muito alto, e às vezes as pessoas queriam uma voz pequenininha. Escolhi os tons mais graves que podia, porque todo mundo quer mostrar que tem técnica musical cantando agudo. Queria mostrar a beleza do grave, aquela coisa do Dick Farney, do Cauby. O Lulu abraçou isso de uma forma muito bonita. Ele foi rígido comigo, não me deixava errar, senti que teve uma conexão imediata entre a gente desde o momento em que ele virou a cadeira. Eu disse a ele que minha meta era ser perfeito, que sabia que nunca chegaria lá, mas que não iria desistir. E ele gostou disso.
Como foi a escolha do repertório do disco?
Comecei esse disco em 2013, queria que as pessoas ouvissem o que eu faço. Sempre tive a preocupação de não soar deslocado do meu tempo. Você pode saber tudo do passado, mas não ser uma coisa que já passou. Não posso querer ser um novo Cauby Peixoto ou um novo Francisco Alves porque o tempo é outro. Sempre gostei de coisa moderna, ouvia Portishead e outras bandas pra sentir a sonoridade. Liguei pro Yuri Queiroga e disse que queria que ele produzisse meu disco, e ele foi me apresentando músicas, pra ver de quais eu gostava, e eu trazia outras. Gravamos oito músicas, e quando o disco ia pra mixagem, vi que não era o que eu queria. Era muito moderno, é pra ser lançado em 2020. [Risos] No “The Voice”, entendi que eu podia ser intérprete de canção brasileira e moderno ao mesmo tempo. Então liguei pro (produtor) Thiago (Marques Luiz) e falei que faríamos o melhor disco que pudéssemos. Parte das músicas já tínhamos do primeiro disco, como “E Então”. Outras foram surgindo de um jeito louco, como “Portão”, que ouvi numa campanha publicitária. A música do Cartola (“Que Sejas Bem Feliz”), um amigo colocou pra eu ouvir no carro e disse que eu tinha que gravar. Elas foram vindo até mim.
Várias das faixas já foram gravadas por artistas muito famosos. Mudar os arranjos e a maneira de cantar foi apenas pra deixar com seu estilo ou também uma forma de evitar comparações?
Nem uma coisa nem outra. Eu só me enxergava cantando daquela forma. É o caso de “Alto Lá”, que vi a letra sem saber que era música. Aquilo me pegou forte, como um tango, me veio Piazzolla na cabeça, Gardel. E quando escutei era um samba, e fiquei pensando como iria fazer aquilo. Fiz a base do arranjo e o Arthur Verocai fez o arranjo de cordas. A música é linda como samba, mas não pra eu cantar com a dramaticidade que enxergava na letra. Na minha cabeça, “Alto Lá” nasceu como cantei, não tem outro jeito. [Risos]
Você foi à final do “The Voice” por conquistar o público, mas o tipo de música que você canta dificilmente chega à grande mídia. Como você vê esse paradoxo?
Tenho 21 anos, e nessa idade a gente é otimista, é maluco. Tenho que começar a me precaver quando eu chegar aos 50. Agora não tenho medo de nada e acho que vai dar tudo muito certo. Se tem uma coisa que aprendi no “The Voice” é a não subestimar o público. Ouvia de algumas pessoas lá dentro que ninguém conhecia Lupicínio. E então eu dizia: “Não conhece, mas vai conhecer”. A música bonita ninguém segura. O problema não é do público, mas de quem faz o mercado. Fui num show de Maria Bethânia recentemente no SESC Itaquera que tinha mais de 20 mil pessoas. O mercado é muito difícil principalmente pra quem faz uma coisa latina, porque o que hoje é visto como cool é aquilo que lembra o pop americano. Os ritmos latinos acabam sendo considerados cafonas, ou distantes no tempo. Mas quando há insistência, verdade e beleza com um trabalho, dá certo. Não vou ser como Ivete Sangalo, que tem uma grande massa de público, mas, dentro de um nicho, há condições de trabalhar muito bem diversas coisas, não só eu como todos os outros cantores. Está surgindo uma leva de grandes cantores e grandes compositores e isso me anima, e eu a eles. Falta pra gente entender que o público é inteligente, é sofisticado, é exigente, e que temos que melhorar sempre. Quando faço música hoje, me vejo com aquela sensação de quando ouvia música na casa da minha avó. Faço o que amo e consigo pagar todas as minhas contas com isso. Nunca precisei cantar o que não queria. Talvez seja loucura dos meus 21 anos o que estou falando, talvez não, só o tempo dirá. [Risos]
– Marcos Paulino é editor do caderno Plug (www.mundoplug.com), da Gazeta de Limeira.
Excelente entrevista, com 21 anos mostrou mais personalidade do que muitos medalhões do mainstrean!!!!