por Daniel Tavares
Gal Costa é uma estrela que foi personagem / observadora da história brasileira, dos anos de chumbo de antes, dos de enxofre, agora… Acompanhada de Thomas Harres (bateria), Mauricio Fleury (teclado), Fábio Sá (baixo) e Guilherme Monteiro (guitarra), a sétima maior voz da música brasileira (segundo a Rolling Stone, Gal é precedida apenas por Tim, Elis, Ney, Simonal, Bethania e Roberto) apresentou-se no Ideal Clube, em Fortaleza, no sábado, 6 de maio. Sob o céu da Praia de Iracema, com o mar de um lado e os arranha-céus do outro, a diva pinçou sucessos de sua enorme discografia e apresentou muitas canções de seu álbum mais recente, “Estratosférica” (2015), em um show perfeito.
O cearense Robston Medeiros abriu a noite com seu violão acompanhado de um baterista e cantou sucessos de Caetano, Gil, Fagner, Djavan, Lenine, mas pouco apresentou de seu próprio repertório. Embora optasse pela zona de conforto, focando seu show em sucessos da MPB (praticamente MPN, uma vez que as vozes originais eram todas nordestinas), “Outro Cais”, sua composição, poderia ter aberto portas para apresentar mais do seu trabalho autoral. Oportunidade tristemente desperdiçada. Uma homenagem a Belchior, falecido na mesma semana, não faltou com “Mucuripe”, a única cantada em plena voz por todo o público, e “Tudo Outra Vez”. Ainda é preciso salientar o trabalho do baterista, que se destacou em “Pra Ser Só Minha Mulher”, de Roberto Carlos, a canção que fechou o show.
A apresentação de Gal começou com “Sem Medo Nem Esperança”, canção que também abre o álbum “Estratosférica”, um rockão com direito a baixo e bateria poderosos e solos de teclado e guitarra. Do rock para o blues, do presente para o passado, com “Mal Secreto”, de Jards Macalé, que conheceu a voz de Gal no seminal “Fa-Tal, Gal A Todo Vapor” (1971). O riff de “Jabitacá”, a próxima do set e outra de “Estratosférica” (parceria de Bactéria, do Mundo Livre S/A com Junio Barreto e Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado), é daqueles que gruda na memória. O show segue sem hits óbvios e, ainda que um tanto psicodélica e fugindo do padrão convencional da MPB, “Não Identificado” (que abre o primeiro disco solo de Gal, de 1969) é a melhor recebida até ali.
“Tenho me jogado no mundo, sem medo e sem esperança, tentando não sofrer muito com saudade nem expectativa”, afirma a cantora na primeira vez que se dirige diretamente ao público, antes de “Namorinho de Portão”, do álbum de estreia de Tom Zé e dela mesma. A banda, com a jovialidade que Gal busca, todos mais jovens que a canção, transforma tudo num rock. A canção já era um rock, mas fica ainda mais nessa versão atualizada. Mas não é um show de rock, ainda é MPB. Pelo público, pelas mesas, pela própria Gal e sua aura de diva, pelo whisky nas mesas e pelo cheiro de quitutes de camarão que vinha delas e, também, pelas conversas intermináveis, negócios fecháveis e fechados, era um show de MPB, classudo, estiloso, educado, mas, no palco, o DNA de rock estava 100% ali, no baixista que bangueava, no baterista que maltratava as baquetas, no tecladista e guitarrista que solavam e na frontwoman, que um dia ousara integrar uma turma que misturava tudo o que vinha de bom de fora com o que havia de melhor aqui dentro do Brasil.
A primeira em que o rock cede a vez ao balanço bossa-nova das sílabas pronunciadas com ritmo e cuidado é “Ecstasy”, mas logo os acordes mais vigorosos retornam, trazidos por “Casca”, ainda mais livres que no álbum. Apenas brevemente, porque a bela e triste “Dez Anjos”, que inaugura a parceria de Gal com Criolo (e que também é uma parceria com Milton), vem em seguida. E o lamento mais urbano dá lugar ao lamento sertanejo. Em “Acauã”, ela ordena: “Te cala, Acauã”. Mas o bicho não se cala. E nem ela. Numa versão mais pesada, apesar de ser uma das canções mais bobas de Gal (na verdade de Jorge Ben e Arnaldo Antunes, com sua estética minimalista característica), um pretenso hino de autoafirmação, mas falho pela letra frágil (nem de longe é uma das melhores do ex-Titãs, mas, tudo bem, nem sempre é preciso ser sisudo). E seguindo absolutamente o script dos shows da turnê “Estratosférica”, uma das três (!) em que Gal está atualmente envolvida, “Quando Você Olha Pra Ela”, o sambinha de Malu Magalhães tem seu espaço, assim como “Cartão Postal”, blues de Rita Lee e Paulo Coelho, que Gal sequer já gravara anteriormente, e “Pelo Fio” (de Marcelo Camelo).
Conversando novamente com o público, Gal reclamou do calor dizendo até que Fortaleza seria mais quente que Teresina, de onde acabara de vir. Adiante ainda acrescentaria: “Eu sou uma nordestina do mundo. Agora estou em São Paulo. Lá faz frio”. Ainda contou que Guilherme entrara na banda como substituto. Da primeira vez que tocaram juntos, o guitarrista fez uma “cama” deliciosa (daquelas que qualquer cantora deita e goza) e por isso fez o Projeto Espelho D’Água, em que divide o palco apenas com ele. Também falou de Marcelo Camelo (de quem gosta muito porque, nas palavras dela, ele faz um rock bossa nova). Teria pedido uma música pra ele para incluir no “Estratosférica”. Ele mandou duas. Uma entrou no disco. A outro só é possível ouvir nos shows. E nesse momento “Espelho D’Água”, ao menos, o show é do guitarrista Guilherme.
Mudando novamente a dinâmica do show, Gal fica sozinha no palco para interpretar “Sim, Foi Você”. Aliás, sozinha não. Ela e seu violão. Um breve momento para lembrar-se do dia em que conhecera Cetano. “Para você, que é o maior cantor do Brasil?”, indagara-lhe Caetano. “Eu disse: João Gilberto”, respondera de pronto. “Também acho”, replicara o outro baiano e lhe ensinara a canção. O momento voz e violão é bem breve. Logo a banda inteira volta e o público finalmente dá a resposta que estava devendo em “Como Dois e Dois”. Estava todo mundo comportado demais até ali. Antes, só um ou outro bêbado mais afoito pedia “me leva contigo”. Ainda animado o público recebeu “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, com destaque para as cirúrgicas, mas certeiras, intervenções do tecladista. “Por Baixo”, com o samba dialogando com “Arara”, outra num tom roqueiro, e a canção que dá nome ao disco e a turnê, “Estratosférica”, vem em sequência. O tecladista pega outra guitarra. Por quê? Porque é outro rock.
Quanto à mobilidade de Gal no palco, a arma que a cantora usa para manter a atenção do público é apenas a própria voz. É uma baita de uma arma, mas é a única. Sua movimentação é mínima, mas, pelo menos, deu liberdade aos seus “pupilos”. Caso quisesse reaprender com eles, como talvez tenha sido o motivo de escolhê-los, o baixista, pelo menos, ensinaria de bom grado. O outro clássico de Jorge Ben da noite, “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”, fica delicioso, com riffs prog descambando numa guitarra baiana. Dá certo? Deu. E a voz de Gal? Robert Plant, Roger Daltrey, Paul McCartney e, aqui, Roberto Carlos, todos tem uma voz diferente da que começaram suas carreiras, pouco antes de Gal. A maioria continua bem, mas em novas ranges, novos tons, se adequando aos novos registros vocais. Gal não se adequou a nada. Não precisou. O público ouviu a mesma voz que teria ouvido em 1974. À frente do palco, jovens de seus 25 anos apaixonados pela diva, alguns não contendo os gritos de “poderosa”, atestam isso. Este jornalista, de seus quarenta anos, até se sentia mais jovem. Tanto quanto eles. Tanto quanto ela.
Finda a primeira parte do show, “Meu Nome É Gal” abre o bis. Gal se rende a todos os seus colaboradores, novos e antigos, citando cada um, Caetanos e Antônios Cíceros. “Tenho 51 anos”, teria dito, na costumeira alteração que faz na letra da canção. E assim como de costume, também há o duelo de voz e guitarra com Guilherme, quase a la Page/Plant, que termina com toda a banda envolvida em uma jam de derrubar microfone do baterista no chão. O povo de frente, aqueles de 25, 40, 70 anos, gritou “mais um” por uns cinco minutos. “Vingança”, de Lupicínio, e que seria uma amostra do outro show que tem rodado o Brasil, foi cortada do set. Talvez por causa do calor, mas não daria mesmo, depois daquele fim, mini apoteótico, com “Meu Nome É Gal”, terminar com uma canção mais intimista. Talvez tivesse cabido melhor no miolo do show que em seu encerramento.
O show, entregue com bastante competência por todos os envolvidos, produção, som, iluminação, banda e pela própria Gal é um evento imperdível. E a cantora merece ainda mais elogios por não se prender ao óbvio. Enquanto para outros grandes artistas fica a crítica: de que adianta ser um dos maiores compositores do Brasil se em suas turnês de lançamento de discos cantam só uma ou duas canções? Pra que compor nos nossos dias se não for para cantar ao vivo? Gal é isenta disso (só do disco novo foram oito canções nessa noite e ainda em três turnês rodando o Brasil). Claro que não agradou a todo mundo pelas muitas ausências, que em uma discografia enorme seriam inevitáveis, mas é preferível a coragem de uma artista que se renova a cada ano ao ensimesmamento e autoindulgência de alguns de seus colegas. A julgar por este show, ao contrário de colegas, de tempo, de estrada e de MPB, o show dela em 2018 será completamente diferente. Não bastassem as três turnês, “Estratosférica”, “Espelho D’Água” e “Ela Disse-me Assim”, Gal ainda estreará em agosto, ao lado de Gil e Nando Reis, o espetáculo “Trinca de Ases”, com shows já agendados em São Paulo e Rio. Em 23 e 24 de junho o show “Estratosférica” será gravado para DVD na Casa Natura Musical, na capital paulista. A diva não para.
– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Fotos: Reprodução do Facebook oficial de Gal Costa.