por Gil Luiz Mendes
É normal se juntar a um amigo para trocar ideias sobre novos tipos de som e, papo vai papo vem, formar uma banda. Melhor ainda quando o acaso resolve dar uma força. Grosseiramente, pode se dizer que foi isso que aconteceu com a Trattores, banda que surge do fértil cenário da música recifense com uma proposta interessante de ritmos tradicionais, batidas eletrônicas e tempero da América Latina.
Gustavo Kamara e Carlos Eduardo Petruchio se conhecem desde os tempos de faculdade, mas nunca tinham feito som juntos, mesmo os dois já tendo cantado em outros grupos. O primeiro esteve à frente da Venezuela, enquanto Petruchio tem no currículo trabalhos junto ao Conjunto Maravilha e a Circo Vivant. Mas a Trattores só ganhou corpo e vida após a chegada inesperada da vocalista argentina Chula Basco, e sua experiência como artista de rua pela América do Sul.
A banda (agora um sexteto com Alberto Ramsés na Bateria, Kássio Almeida no baixo e Rafael Cavalcanti na guitarra) estreia no mercado com um compacto (ouça aqui) e o clipe para “O Táxi está a Caminho”, gravado com imagens em time lapse feitas em Londres e Grantham. No bate papo abaixo, os três vocalistas contam como foi a concepção da banda, falam de planos para o futuro, da ligação Recife/América Latina e como anda o cenário de música autoral no capital pernambucana.
Petruchio e Gustavo eu sei que se conhecem desde a faculdade de jornalismo, mas como Chula Blasco apareceu e como isso mudou o som da banda?
Gustavo: Encontrei Chula através da minha namorada. Era uma época complicada, porque testamos algumas vozes, mas nenhuma fechou realmente com a banda. O processo estava um pouco arrastado. Então partimos para um plano B, que era gravar participações especiais em vez de escolher uma vocalista definitiva. Pedi para Tâmara fazer um contato inicial e Chula prontamente topou gravar umas vozes e o resultado deixou todo mundo de boca aberta. Alguns dias depois da gravação ela me perguntou: “Sim, mas é só isso? Eu quero tocar!”. E, de repente, percebemos que a Trattores tinha, enfim, uma vocalista. E era a melhor! Você tem uma banda que toma ritmos latinos como influência principal e de repente surge uma vocalista argentina com uma voz fantástica dizendo que adorou as músicas e que queria entrar na banda. Era meio surreal. A presença de Chula nos primeiros ensaios logo aumentou a exigência das outras vozes. Não porque ela colocava algum tipo de pressão por ser uma vocalista mais técnica, mas porque ela inspirava a gente a cantar melhor.
Petruchio: A latinidade, a potência vocal… a gente encontrou nela muito mais do que a gente esperava. Uma pessoa que traz uma vivência bastante diferente, uma experiência forte como artista de rua, trabalhando com malabares, artesanato, coisas com as quais a gente, mais focados no meio musical, tínhamos muito pouco contato. Essa bagagem de Chula com certeza influenciou a forma como a gente enxergava a própria música que estávamos escrevendo.
Misturar música latina com aspectos no Nordeste é uma das linhas da Trattores. Vocês acreditam que nos últimos anos Recife está redescobrindo a música feita nas Américas?
Chula: Acho que o Brasil, por falar outro idioma, ficava meio por fora do que acontecia musicalmente nos outros países da América Latina. Só que, de uns anos para cá, acho que está mudando devagarinho. Porque a música latina é muito forte e os brasileiros estão se expandindo nisso. Tanto que a Trattores não é a única banda que toma esse aspecto latino. Aqui no Recife existem várias outras e acho essa troca muito importante.
Petruchio: A galera do Norte do País já tinha essa influência muito forte por conta da proximidade geográfica. Mas acho que agora o Brasil como um todo está começando a olhar um pouco mais para os sons dos outros países da América do Sul. Acho que o processo é cíclico, vamos bebendo em fontes diferentes e buscando semelhanças para consolidar um processo artístico. E quando você enxerga os elementos da música latina, percebe as semelhanças que ela tem com a música produzida em Pernambuco.
Como está a cena independente em Recife? É autossuficiente? E como é a relação entre as bandas?
Petruchio: A cena independente de Recife sempre foi deficitária, no sentido de se bancar, de conseguir se movimentar financeiramente. Bandas que surgiram nos anos 2000 até hoje têm que ir pra São Paulo, para o Rio, desde o “Pós-Mangue” da Mombojó, até Johnny Hooker, Tibério Azul, etc. Dizem que os recifenses têm mania de grandeza, mas não dá para esconder que a cidade é pequena. Não tem estrutura para a galera fazer show todo final de semana. Se você fizer show duas semanas seguidas, na segunda não vai ter gente pra ver você tocar. Mas artisticamente a cena continua gerando muitas bandas excelentes, numa pesquisa rápida você encontra representantes de vários estilos fazendo música boa. Quando você vai a um festival também enxerga isso.
Vocês lançaram um compacto com duas músicas no início desse mês? Quando vem o primeiro disco e uma turnê?
Gustavo: Lançamos um compacto com a proposta original, que flertava fortemente com elementos eletrônicos e foi elaborada por apenas três pessoas, eu, Petruchio e Ramsés. Quando a formação atual se consolidou, nos descobrimos fazendo um som menos atmosférico e mais direto. Temos músicas suficientes para entrar em estúdio e fazer um disco, mas queremos nos experimentar mais como banda, já que agora temos seis pessoas ajudando a formatar o som. Vamos lançar novidades em 2017, mas a produção do disco deve focar 2018, com tempo para incorporar os elementos musicais de todos os momentos da banda. Esse é o objetivo. Sobre possíveis turnês, com o lançamento oficial da banda no último dia 22 de abril, agora nossa produção ganhou carta branca para agendar shows. A gente sabe que é um trabalho de formiguinha, que requer um planejamento caprichado. Vamos atrás da galera no Nordeste, no Brasil, na América do Sul.
Uma das peculiaridades da Trattores é ser uma banda com três vocalistas. Como se dá o processo de composição e como é estudado esse trabalho das vozes?
Gustavo: Inicialmente a composição tinha a minha mão e a de Petruchio nas letras e num arranjo básico de violão. Depois Ramsés pegava aquele primeiro momento da canção e trabalhava em cima como multi-instrumentista e arranjador. Só que esse processo já começou a ser modificado. Rafinha, nosso guitarrista, já trouxe uma música que achamos fantástica. Também tivemos a oportunidade de tocar uma música que fizemos todos juntos. Acho que vai ter uma hora em que a banda vai construir algo instrumental e a gente pode escrever uma letra em cima. As coisas estão mudando.
Chula: O compositor da canção normalmente apresenta uma linha melódica. Então, quando a música começa a ser testada com todos os vocalistas presentes, começamos a improvisar harmonicamente em cima dessa linha melódica. Muitas vezes buscamos nos juntar apenas os três vocalistas antes de passar a música com a banda. Só que cada vez mais o trabalho da banda tem influenciado nesse processo de arranjo das vozes, por conta de uma melodia da guitarra ou do baixo que nos faz atacar a música de uma forma diferente.
Antes da Trattores, alguns integrantes participaram de outros projetos com ritmos bem diferentes do que a banda faz como samba, soul e carimbó. Como essas experiências anteriores se reflete no som que é feito hoje?
Chula: Na Argentina, participei durante muito tempo de um coro contemporâneo. Quando percebi que a Trattores também tinha, em uma escala menor, claro, essa questão das vozes em conjunto, fiquei muito feliz porque estava com saudade dessa forma de trabalhar a música. Também toquei em bandas de rock, de música experimental e cumbia. Acho que isso é refletido nos arranjos, na sonoridade.
Petruchio: Na verdade é uma confluência de águas que desembocam no mar. Muitos na banda já trabalharam com música entre si. A diferença principal é que agora estamos dispostos a contar a história da Trattores, é uma forma de composição mais direcionado para a ideia musical que a banda representa. Eu sempre cantei em registros mais graves, mas agora trabalho isso de uma forma um pouco diferente, por ter a participação mais intensa de outras vozes.
Gustavo: Mesmo quando escrevo e canto uma música em um ritmo completamente diferente, o soul ainda é uma presença forte. É como se fosse um norte para mim. Então acho que as linhas vocais expressam essa admiração pelo soul de alguma forma. Ainda que seja imperceptível para muitos. Essa é a bagagem que eu trago.
Junto com o compacto foi lançado o clipe da faixa “O Taxi Está a Caminho”. Como foi a elaboração deste vídeo que tem imagens feitas fora do país?
Gustavo: Apesar de ter sido feito na Inglaterra, foi o processo mais simples dentro da história da banda até hoje. Falei para Marcus Vinícius Leite, amigo que estava morando na Inglaterra e já havia trabalhado com clipes, que estava precisando de um vídeo para um single. Ele me explicou que estava caminhando com algumas produções audiovisuais para uns projetos nos quais ele estava trabalhando e perguntou o que eu queria. Eu disse que iria mandar a música para ele e deixei livre para sua interpretação. Alguns dias depois ele me avisou que a equipe com que ele trabalhava na Inglaterra tinha curtido o som e se dispuseram a ajudá-lo a fazer o clipe da Trattores. Novamente, a sensação de surrealismo tomou conta. Para completar, Marcus acabou vindo morar em Recife recentemente, produziu o show de lançamento da Trattores e acabou apresentando o próprio clipe na primeira exibição.
Onde a Trattores quer chegar?
Gustavo: Queremos tocar na América Latina. Rodar pelos países. Absorver experiências musicais e de vida. Esse objetivo faz parte do nosso envolvimento com a música da Trattores. Sabemos que o nosso groove é diferente, nunca tocaremos cumbia, salsa ou o próprio reggaeton como os “pais da matéria”. Por isso a gente gosta de fugir um pouco do rótulo exclusivo de “música latina” e acrescentar “música nordestina”. Essas semelhanças e particularidades de cada estilo nos fizeram ter um vislumbre da toca do coelho. Agora queremos ver até onde ela vai. Que Lewis Carrol me desculpe pela apropriação, mas me pareceu adequado.
– Gil Luiz Mendes (https://www.facebook.com/gil.luizmendes), jornalista, 32 anos, viveu boa parte da vida no Recife e hoje mistura a sua loucura com a de São Paulo. Tem passagens pelas rádios Jornal do Commercio, CBN , Central3 e tem textos publicados no IG e na Carta Capital. É skatista e músico quando dá tempo.