por Leonardo Vinhas
Conhece Kevin Johansen? Ele pode ter passado pelo seu caminho sem você saber, afinal o rapaz já fez muitos shows no Brasil, gravou participação em programas de TV daqui, e não é nada difícil encontrar canções dele em muitas das playlists populares dos serviços de streaming. Ainda não associou nome à pessoa? Ajuda se eu disser que é um sujeito nascido no Alasca, que cresceu em Buenos Aires, passou um tempo no Uruguai e hoje reside novamente na Argentina, onde ocupa aquela posição de “conhecido o bastante para não ser underground, não tão pop a ponto de ser mainstream”? Que é um cidadão bem apessoado, que canta em pelo menos três idiomas (espanhol, português e inglês) e adora fazer letras com trocadilhos linguísticos? E que ele já apareceu em muitos quadrinhos do Liniers (o autor das tiras Macanudo), virando até parceiro musical do quadrinhista, a ponto de excursionarem juntos em um projeto que misturava ilustração e música (e que, veja só, passou pelo Brasil também)?
Pois é, Kevin Johansen sempre esteve por perto, e veja que nem mencionamos suas turnês internacionais, que já incluíram Europa e Austrália, sempre acompanhado da banda The Nada (como se disse, ele adora trocadilhos linguísticos…). Sua música é uma junção do folk de seu país natal com o daqueles países onde morou. Cabe nela um apelo pop muito grande, que é adequado ao seu incomum “canto falado”, grave e baixa, e ajuda a compor o carimbo pessoal de suas canções. Risonho e sem pressa, Johansen conversou com o Scream & Yell por telefone a duas semanas de uma nova temporada brasileira. Como em suas canções, misturava os três idiomas, e o resultado linguístico soava muito peculiar. Porém, optou-se por traduzir integralmente para o português, para assegurar a clareza da leitura. Confira abaixo.
Sua relação com o Brasil já é extensa: tocou aqui muitas vezes, colaborou com artistas locais, tem toda sua amizade e parceria artística com o Paulinho Moska… Você se lembra como isso começou, o que desencadeou essa relação tão próxima com o Brasil?
Sim. Começou com meu amigo Jorge Drexler, que me falou do Paulinho [Moska] e me apresentou para ele. Também teve um festival em Porto Alegre, não me lembro qual, foi em 2004, ou 2005. Minha amizade com Jorge e com Paulinho cresceu, e ele teve vontade de me levar para tocar no São Paulo e no Rio, lá por 2006 ou 2007. Foi o começo da nossa “sociedade”, e começamos a fazer alguns shows mais seguidos sempre no Rio e em São Paulo. Eu e minha banda também abrimos uns shows da Vanessa da Mata, também rolaram alguns programas de intercâmbio latino-americano e um deles nos levou à Brasília. Teve mais algumas desculpas para irmos aí (risos), então estamos sempre passando por esse grande país, do norte ao sul.
Você veio aqui com o Liniers uma vez. Ele não é propriamente um artista massivo, mas certamente é um dos quadrinistas estrangeiros mais conhecidos por aqui. Pode ter tido um bom número de pessoas que foi no show porque o conhecia, mas não sabia quem você era (risos). Uma situação de um não-músico atraindo para a música, talvez. Deve ter sido uma experiência bem atípica.
Liniers faz algo que não se escuta e eu faço algo que não se vê – porque a música é invisível. Foi algo muito orgânico que surgiu da nossa amizade e da vontade de fazer algo juntos. Descobrimos que o público gostava das duas disciplinas de uma maneira encantadora, e foi um primeiro descobrimento de uma forma de apresentar a música e a arte conjuntamente. Bom, sempre houve colaborações de músicos com artistas plásticos na história, não dá para dizer que inventamos a pólvora. Simplesmente encontramos nossa forma de fazê-lo: um desenhista em uma câmera digital projetando as imagens em tamanho grande paralelamente às canções. Registramos isso no DVD “Viva México” e isso nos permitiu passar por boa parte da América Latina. No Brasil, chegamos quando começávamos com essa ideia, não chegou a ser uma apresentação formal.
E existe a possibilidade de vocês voltarem a passar por aqui novamente, só que com a apresentação oficial?
Sim (ri). Só que agora ele está morando em Vermont, na América do Norte, e eu moro em Buenos Aires. Estamos um pouco distantes, e eu estou com as apresentações do “Mis Americas”. Já faz seis meses que não nos vemos, mas vamos nos encontrar agora que ele virá para a Feira do Livro de Buenos Aires, e estou muito feliz por isso.
Em toda sua trajetória, as colaborações são comuns. Há algum artista de Brasil com quem você gostaria de colaborar, além dos muitos que já gravaram contigo, como Kassin, Arnaldo Antunes (em “Torcer a Favor”, de 2016) e Moska?
Uh, milhares! (risos) É um pouco como diz Paulinho: a música no Brasil é imensurável. Ele fala que há gêneros e estilos que nem ele, brasileiro, conhece. É uma história tão vasta, não dá para aprender tudo o que acontece no país. Sempre digo que o Brasil é um imperialista musical, pela forma que sua música conquistou o mundo. O boom pós-bossa nova foi o que mais me chegou por aqui, os tropicalistas dos anos 70 foram muito fortes em Buenos Aires. Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa e os clássicos dos 70. Tenho a sorte de tocar com Zurdo Roizner, o mesmo baterista que tocou em La Fusa (casa de shows portenha) com Vinicius de Moraes (no disco “Grabado en Buenos Aires con Maria Creuza y Toquinho”). É um baterista de 77 anos (risos), e já está há quase 14 anos comigo, conta umas histórias incríveis… Mas voltando à sua pergunta: quando fui tocar no CCC (Centro Cultural Carioca) com Paulinho, Caetano foi nos ver. Ele foi muito querido, nos convidou a comer pizza com ele… Caetano é uma dessas fantasias lógicas que um músico tem de colaborar em algum momento, assim como com todos os grandes. Depois tem o pessoal que está mais próximo geracionalmente, como a Maria Gadú, com quem eu e Paulinho gravamos uma versão de “Oh My Love, My Love”, Paula Toller fez versões minhas (“À Noite Sonhei Contigo” e “Glass (I’m So Brazilian)”), eu cantei com a Daniela Mercury… Creio que a música latino-americana em espanhol tem seu lugar, a brasileira também, e são mercados tão grandes que é um milagre já quando se consegue meter o pé na porta. É um milagre para mim ir quase todos os anos a São Paulo, é uma base para continuar crescendo. É algo que acaba de começar.
E a questão idiomática? O jogo das palavras, explorando ao máximo o sentido delas, é uma das características de sua composição. A maior parte das letras são em espanhol ou em inglês, mas o português aparece vez ou outra. Como é nosso idioma para você, em termos de sonoridade e poética?
Acredito que o português tem algo muito universal, não? É uma ilha linguística. Temos um espelho da península ibérica, Portugal e Espanha, na formação linguística do nosso continente. Tenho a sorte de ser filho de uma mãe intelectual, que se dedicava às letras, e vem daí a curiosidade pelos idiomas e letras. Minha mãe falava bem o português e nos incentivava a praticar o idioma. De algum modo – obviamente muito intuitivo – e com as viagens ao Brasil, deu para ir adquirindo um vocabulário. Eu me interesso pelos climas, as culturas, de algum modo sou um subtropicalista (risos). Porque o clima marca as culturas: aqui temos um clima mais como Londres, mais europeu, e quanto mais pro sul [da Argentina], mais frio. Também se dizia que Buenos Aires era a Paris do Sul. Temos o tango, há mais italianos, então somos mais fanfarrões e, em alguns momentos, antipáticos, apaixonados (risos). Mas também se aprecia o que a outra cultura tem. Estamos longe idiomaticamente: acredito que na América de hablaespana deveríamos aprender o português como segunda língua, e no Brasil, deveria ser ensinado o espanhol como segunda língua, para estarmos mais ligados. E em segunda instância, deveríamos todos aprender o inglês, porque é um idioma universal importante.
Mas continuamos como uma ilha. Nem nas cidades fronteiriças é comum encontrar brasileiros que falem espanhol.
Totalmente. Às vezes fico chocado quando um jornalista brasileiro me diz: “Podemos fazer a entrevista em inglês”. Como assim? (risos) Vamos tentar nos comunicar em portunhol, cada um fala um pouco seu idioma… (risos) É uma luta constante, e creio que tem raiz na história entre Portugal e Espanha. Aconteceram coisas entre os dois países, culturalmente, para dividir uma península (risos). Mas podemos também pensar nas pequenas ilhas que há na Espanha, não? País Basco, Catalunha, Galícia… Galícia tem um portunhol marcado, né? (risos) O surpreendente é que o Brasil conseguiu unificar sua linguagem mesmo em um território tão vasto, e conseguiu encontrar sua identidade. Levou tempo, e acho que agora vejo que o Brasil está começando a olhar um pouquinho para o resto da América Latina, que já abraça o Brasil faz tempo. O Brasil só tem que parar de nos dar as costas, olhar para nós. Porém, Buenos Aires também sempre olhou para a Europa, e nisso existe uma identificação entre Brasil e Argentina: primeiro vamos para o norte, e depois vamos para os arredores, para a América Latina. No “Mis Americas” falo muito celebrar as diferenças – que é o contrário do que o Trump diz, o discurso de temer as diferenças. Se fosse tudo igual, seria tudo muito chato, não?
Falemos de “Mis Americas”, inclusive. Ele vem mais um pouco mais dançante e bem mais pop – são duas direções que vem aparecendo cada vez mais na sua obra. O que tem te empurrado nessa direção?
Foi um caminho muito orgânico. Matías Cella, produtor e amigo que trabalha muito comigo e com Drexler, me disse: “Por que não vamos para Nova Iorque e gravamos com seus amigos dos anos 90?” Eu vivi ali até os anos 2000. Fomos e gravamos num estúdio do Brooklyn. Matías também falava muito do Kassin, que queria trabalhar com ele, e fomos para Botafogo, no Rio, e trabalhamos com ele. Por fim, viemos a Buenos Aires, juntamos The Nada – que me acompanha já há quase 15 anos – e terminamos. O título “Mis Americas” me pareceu acertado [nesse contexto], e coloquei o subtítulo “Volume ½” (“volume meio”) em vez de “volume 1”, porque era o princípio das Américas que eu conheço, que são os países do Atlântico Sul, mais Nova Iorque, que foi onde vivi dos 25 aos 335 anos, e também na infância. Vivi na “West Coast” quando criança, e na “East Coast” de adulta. De algum modo, “Mis Americas” tem esse som muito urbano, no qual entra o folclore urbano, que também é pop, e alguns sons roqueiros. Mas está atravessado pelo folk do Norte e o do Sul, porque eu queria muito ter um som bem acústico, que é a nossa cara.
“Mis Américas” saiu no ano passado, você o tocou bastante ao vivo. Isso deve ter mudado sua visão dessas canções. Assim sendo, quando vier um possível próximo volume, você consegue antever o que ele trará?
Sim, será o “volume ¾” (risos). De fato, estou trabalhando nisso. Sempre sobra um disco inteiro de cada disco, né? Estou trabalhando umas coisas muito brasileiras, que tenho vontade que entrem no próximo disco, e quero continuar trabalhando com Kassin, porque foi uma experiência linda. Sobraram duas faixas, que certamente estarão no próximo disco. Uma se chama “Mi Querido Brasil”, que é uma homenagem ao país, à sua cultura, que eu pessoalmente adoro, e o outro, que tem um som bem urbano brasileiro, um pouco funky, que se chama “Tortura”, que fala de uma relação amorosa de longe. Há um nativo de Cuba, tem um aceno ao country e ao folk norte-americano, haverá algo mexicano também – o México é outro imperialismo musical enorme, com suas cores e sons característicos. Vamos investigar um bocado, mas vamos aos poucos, porque é um plano ambicioso, mas que deve ser conduzido com humildade para preservar os estilos e executá-los fielmente.
Você é um grande fã de música, dá para notar…
Hehehe, sim!
… então, para encerrar, falemos de suas versões. Você faz um bom número delas, e fica claro que empresta sua sonoridade para todas, ainda que consiga também deixar o elemento essencial da original ali. “La Estaca”, que você gravou para o tributo aos Aterciopelados, “El Dorado”, é um ótimo exemplo disso: o deboche da original persiste, mas sem a fúria punk, ela vem outro humor e bem mais folk. Quais os critérios que você emprega na hora de escolher e arranjar as canções que você vai recriar?
(ri) Para mim, um bom cover ou uma boa versão acontece quando você se apropria da canção, sente-a como algo próprio, e ao mesmo tempo, você tem que confiar que a canção é tão boa que ela pode sobreviver a qualquer transmutação genérica. Por exemplo, fiz uma versão country de “Modern Love”, de David Bowie, totalmente lenta, ou seja, o contrário da original, que é um pop oitentista, veloz, rápido. Agora, por exemplo, estou fazendo uma versão de “Perfect Day”, de Lou Reed, como folclore argentino, um zamba (pronunciado como o “samba” brasileiro, mas é um ritmo tradicional da província de Salta). Fiz também temas de Caetano, fiz uma versão de “Menino do Rio”, que me pareceu uma versão acabada, melhor que a original. Fiz também uma de “Trilhos Urbanos”, uma canção que gosto muito. Tento sempre, ou quase sempre, fazer a versão de um modo diferente da original, e aí fica demonstrado que uma criação pode até sobreviver ao mau gosto dos arranjos da época (risos). Porque às vezes a moda era aquele som horrível de teclado (risos), que nos soa feio hoje em dia. Mas aí você vai, tira esse som, e vê que sobra uma canção impecável em termos de estrutura. Eu gosto de ir atrás da estética e da estrutura das canções.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Interessante.