por Marcelo Costa
“A Jovem Rainha”, de Mika KaurismÄki (Finlândia, Alemanha, Suécia, 2015)
Do capítulo “a vida real pode ser muito mais ficcional do que a própria ficção”, a história de Cristina Augusta é um deslumbre. Única herdeira do rei Gustavo II Adolfo, Cristina foi criada como Príncipe (para atender as “necessidades” do reino) e ascendeu ao trono sueco em 1632, quando tinha apenas 6 anos de idade. Em 1644, aos 18 anos, foi coroada Rainha da Suécia e, apaixonada por filosofia e artes, início uma grande reforma no país visando tornar Estocolmo “a nova Atenas”. Paralelamente, enquanto súditos, Igreja e seu próprio governo pediam um herdeiro, ela mantinha um romance secreto com sua dama de companhia, a condessa Ebba Sparre, para desespero da corte, que tratou de “abrir os olhos” da amante, que a abandonou. Desiludida, Cristina tomou uma série de decisões inacreditáveis: transformou seu primo (quatro anos mais velho do que ela) Carlos Gustavo em seu filho (sim, isso que você leu), passou-lhe a coroa e, contrariando a todos, abdicou do trono de um reino luterano, se converteu ao cristianismo e foi viver em Roma com o Papa. Amiga de Descartes e Bernini, Cristina morreu virgem aos 63 anos e é uma das raras mulheres enterradas no Vaticano, numa história que teria tudo para render um grande filme, o que não é o caso de “A Jovem Rainha” (“Tyttokuningas“ no original), um pastelão melodramático com diversos momentos dignos das passagens mais bregas das novelas mexicanas, como cabelos esvoaçantes ao vento, intriga e olhares sedutores. Quem esperava algo no nível do ótimo “O Amante da Rainha” (2012) sairá decepcionado, ainda que “A Jovem Rainha” seja daqueles filmes que de tão ruim chegam a ser bons. Cristina merecia algo melhor.
Nota: 0.5
“A Criada”, de Park Chan-wook (Coréia do Sul, 2016)
A escritora galesa feminista Sarah Waters lançou seu terceiro romance, “Fingersmith”, em 2002, e o livro, indicado ao Booker Prize, ganhou uma série da BBC em 2005 e um fã famoso: David Bowie, que incluiu o livro em seu Top 100 pessoal. Em “Fingersmith”, uma órfã adotada por um grupo de trapaceiros ganha uma missão: trabalhar como criada de uma herdeira rica visando facilitar o romance dela com um dos trapaceiros, que pretende aplicar um golpe na moça, herdar a fortuna e dividi-la com o bando. Ninguém contava, porém, que a criada pudesse se apaixonar pela herdeira. Imaginou a confusão? A trama pode parecer simples, mas simplicidade não iria atrair David Bowie e muito menos o diretor sul-coreano Park Chan-wook, que comprou os direitos do livro, tirou a trama da Inglaterra vitoriana (onde se passa grande parte das histórias escritas por Sarah Waters) e a levou para a Coreia dos anos 30, durante a época da ocupação japonesa. Conhecido pela violentíssima trilogia da vingança (“Mr. Vingança”, “Oldboy” e “Lady Vingança”, de 2002, 2003 e 2005, respectivamente), em “A Criada” (“The Handmaiden” no original) Park Chan-wook deixa o sangue de lado em 98% do filme (mas há uns 2% de dedos decepados que irão fazer o fã Quentin Tarantino sorrir) para focar em abuso sexual, amor, mentiras, jogos de sedução, vingança e sexo numa trama circular dividida em três atos e 145 minutos. O resultado não é nenhuma novidade no cinema (um dos melhores – senão o melhor – filmes argentinos deste século usa um método semelhante), mas consegue prender a atenção do espectador devido à carga de emoção, sexo, tensão e sedução que Chan-wook despeja com voracidade na tela. A intenção secreta do diretor, que brincou deliberadamente com o jogo de espelhos proposto pelo livro chegando a filmar a mesma cena de forma levemente diferente em diversos ângulos para mostrar o ponto de vista difuso de cada personagem, era fazer um filme feminista, e “A Criada” cumpre bem o papel ao mostrar tanto a força do amor entre duas mulheres quanto a alma doentia dos homens. Filme indicado pela Coreia ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “The Handmaiden” ficou fora da corrida pela estatueta por ser um filme muito mais intenso do que a Academia está acostumada (ponto a menos pra ela), mas merece atenção especial pela química do trio de atores principais, pela elegância da direção de arte e por sua encantadora perversidade.
Nota: 8.5
“Elle”, de Paul Verhoeven (França e Bélgica, 2016)
Para entender “Elle”, o filme mais badalado do ano passado na França arrastando meio milhão de pessoas para o cinema nos primeiros 20 dias em cartaz, é preciso voltar a 1992, ano em que o neerlandês Paul Verhoeven lança seu terceiro sucesso seguido em Hollywood: precedido pelos futuristas “Robocop” (1987) e “Vingador do Futuro” (1990), Verhoeven adentrava o território do suspense erótico com “Instinto Selvagem”, que consagrou a cruzada de pernas de Sharon Stone, rendeu a Michael Douglas uma indicação de Pior Ator e abriu caminho para o fracasso retumbante de “Showgirls” (1995), até hoje recordista em indicações ao Framboesa de Ouro (13, da qual “venceu” 7). “Showgirls” escancarava uma tendência cômico / brega que “Instinto Selvagem” apenas acenava (como não rir quando Sharon Stone pega o picador de gelo?) e que, 20 anos depois, parece mover “Elle”, pois a sensação é de que Verhoeven está caçoando (inadvertidamente) de todos os clichês (cômicos, trágicos e bregas) que moldam o cinema clássico francês. O esqueleto de suspense erótico está lá: Michèle Leblanc é uma executiva charmosa e poderosa (Isabelle Huppert, o Oscar que a Emma Stone levou pra casa é seu; só trocaram o envelope) que passa como um trator por cima de todos que cruzam seu caminho (filho, ex-marido, funcionário, sócia, marido da sócia, mãe) até que algo acontece: ela sofre um estupro por um homem mascarado em sua própria casa. O abuso violento não diminui o ímpeto de Michèle, que inicia um jogo de sedução com seu próprio estuprador, e que, claro, como numa tradicional tragédia francesa, não terminará bem. A tendência cômico / brega do diretor bate ponto em diversas cenas de “Elle” (no romance do filho paspalhão, no catolicismo da vizinha, no para-choque do carro do ex-marido, no telefonema pós-acidente, etc…) e alivia os temas pesados que o filme utiliza como provocação, sem aprofunda-los. Ao final, “Elle” soa bastante interessante como um elogio cínico ao cinema francês, e (ignorado) merecia a vaga do simpático australiano “Tanna” na seleção de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar (assim como “Aquarius” poderia ocupar o lugar de “Ove”), mas não tiraria a estatueta nem de “O Apartamento”, nem de “Land of Mine”, que é melhor sem ter 90% do hype. Para assistir com um balde de pipoca, refrigerante e sarcasmo.
Nota: 9.5
Oscar 2016
– Absolutamente dolorido, “Manchester-by-the-Sea” é uma pequena joia de sofrimento (aqui)
– O medo é apenas um detalhe que faz de “Moonlight” em um dos grandes filmes do ano (aqui)
– Delicado em sua brutalidade, “Capitão Fantástico” oferece muito mais do que se vê na tela (aqui)
– Tom Ford carrega a mão no estilismo em “Animais Noturnos”. Filme podia ir mais longe (aqui)
– “A Qualquer Custo” fuça as entranhas do sonho americano destroçado pelo capitalismo (aqui)
– “O Lagosta” é daquelas obras sublimes que vão arrebatar o coração de gatos pingados (aqui)
– O sueco “Um Homem Chamado Ove” é um filme bonito e delicado (aqui)
– Apesar das arestas pontudas, “Toni Erdmann” é uma pequena joia cinematográfica (aqui)
– O brilhante “Campo de Minas” versa sobre humanidade em 101 minutos de suspense (aqui)
– “Dr. Estranho” vai muito além da deliciosa sensação escapista de ver o relógio correr (aqui)
– “Animais Fantásticos e Onde Habitam”: o futuro das franquias está aqui (aqui)
– “A Chegada” é ficção científica das boas, digna de figurar entre as melhores do gênero (aqui)
– Asghar Farhadi conduz a trama de “O Apartamento” com delicadeza e genialidade (aqui)