por Leonardo Vinhas
“Vamo’ Cuscobayo / Ustedes pongan huevos que ganamos…” O canto da torcida do Boca Juniors, adaptado para servir à causa própria, abre o primeiro LP da banda gaúcha Cuscobayo. O riff de violão, emoldurado por percussão, vocais em uníssono e riff punk de trompete, dá ao ouvinte todo o contexto que ele precisa para saber o que se seguirá: um jorro de energia mais acústico que elétrico, tão gaúcho quanto platense. É a primeira faixa, “Antigo Sofá de Molas”, mas a tônica mantém-se pelas outras nove. Uma receita que vem conquistando público em seu Estado natal, a ponto de colocar mais de 500 pessoas em show próprio em Caxias do Sul, base do quinteto.
Rafael Froner (voz e violão), Alejando Montes de Oca (trumpete e voz), Marcos Sandoval (voz e cajón), Lourenço Golin (baixo) e Rafael Castilhos (percussão) formaram a Cuscobayo em 2012. Desde então, lançaram o EP “Na Cancha” em 2013 e o álbum completo homônimo em 2016. A presença constante, quase semanal, em palcos gaúchos, lhes rendeu um publico considerável para uma banda independente, principalmente se considerarmos que eles não têm clipe, e o primeiro EP pecava bastante na qualidade sonora. “Cuscobayo”, o álbum, resolve esse último problema, com uma produção que valoriza a rusticidade do som e traduz a energia bruta dos shows em um disco viável. As letras oscilam entre uma “boa onda” recomendável e o discurso de frases prontas e superficiais, mas é na execução crua e intensa que a banda ganha seu público.
2016 foi um ano que trouxe não apenas o lançamento do disco, mas também a primeira passagem por palcos mais ao norte de seus lares. São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais e Goiás receberam a Cusco, e para 2017, há a previsão, quase confirmada, de shows na Argentina e no Uruguai. Além do segundo disco. Nesse estágio de possível transição para algo maior, o Scream & Yell conversou com Rafael Froner logo após o show da banda abrindo para sua maior referência musical, os argentinos Onda Vaga. Com sotaque carregado e segurando um mate na outra ponta da linha telefônica, o frontman assumido da Cuscobayo contou como vive esse momento.
Quando conversamos durante a última edição do Festival Brasileiro de Música de Rua, você disse que a banda conseguia ser o ganha-pão de vocês. Isso ainda é a realidade?
É meio relativo. Não ganhamos o suficiente para nos sustentarmos 100% com a banda. Todos largamos nossos empregos formais para viver da Cuscobayo. A gente está crescendo, mas está vendo que com isso aumentam também os gastos. Por exemplo: investimos um monte para captar bem o som e o vídeo no nosso show com o Onda Vaga no Opinião [em outubro de 2016] para fazermos clipes e tal. Por enquanto estamos pegando esse dinheiro da banda, separando um pouco para nós e investindo muito nela. Mas todos fazemos uns bicos. A banda não dá prejuízo, ela se sustenta, mas não dá para pagar o aluguel só com a grana dela. A previsão é que a gente consiga isso em breve.
Como foi com o Onda Vaga, aliás? São, afinal, a maior referência de vocês.
Foi muito bom, muito positivo. A gente trocou muita ideia com eles, são gente comum, de boa. Foi emocionante para nós, queríamos fazer isso há muito tempo. Nunca tivemos a pretensão de esconder que eles são nossa maior influência.
Há quem chame a Cuscobayo de “Onda Vaga brasileiro”? Vocês se veem assim?
Quando a gente surgiu, o Onda Vaga foi um referência não só de som, mas também estética. Nosso som tem cajón, voz, violão e metais, mas não é parecido com o Onda Vaga, deu para ver isso claramente no show. Eles são uma banda bem mais leve que nós. Nós investimos muito no batuque, no peso, e eles são muito mais melódicos. Depois de quatro anos de banda, não concordo com essa afirmação. Talvez fosse assim nos primeiros seis meses nossos, em 2012, só que hoje em dia temos identidade, estética e discurso próprios. Inclusive até influenciamos outras bandas aqui da região. Não me incomoda que falem que somos o “Onda Vaga brasileiro”, mas não acho isso acurado. Acho que já “desatachamos” disso.
Esse peso não aparecia no primeiro EP, e agora se escuta bem no álbum. Pode ser que a troca de produtores tenha influenciado nisso, claro – o Carlinhos Balbinot é um cara do rock pesado e do indie, e o Francisco Maffei tem referências mais próximas às do som de vocês. Mas também não pesa o fato de vocês terem finalmente definido qual é a essência musical de vocês como banda?
Quando finalizamos a composição de “Vagabundo” – que é até hoje uma canção que é nosso carro-chefe – percebemos que forjamos uma coisa diferente. A partir dessa forja fomos criando o que veio depois. Teve até quem chamasse o som de “chegueden”, uma coisa onomatopeica, por causa da levada do violão. Assumimos esse “rótulo” para nós. Quando a gente sobe no palco, não consegue fazer uma coisa leve. Quando éramos adolescentes, uns de nós tocávamos rock, outros tocavam metal, e a gente tem a mesma entrega que tinha naquela época. É essa energia que se mantém – essa e o fato de termos tocado em torcida de futebol. Quanto aos produtores, o Chico [Maffei] tem um tato muito bom para saber como a banda vai soar melhor, tanto que ele insistiu para que gravássemos o disco quase todo ao vivo, sem metrônomo, para pegar até aquela aceleradinha dos shows, saca? Ele foi muito feliz nisso, ele conseguiu captar esse peso sem que soasse agressivo. Manteve o grave que faz as pessoas se mexerem.
O canto de futebol era muito citado no começo nas resenhas sobre a banda. A Cusco tem essa coisa da “gauchada”, no jeito de tocar, de serem tipos mais broncos e de ter essa ligação com estádios. Porém, no Festival Brasileiro de Música de Rua, você falou que ter virado pai de uma menina estava impactando muito tua maneira de ver o mundo. Isso vai mudar as próximas composições?
Essa é uma pergunta bem interessante. Em algumas resenhas do disco, teve quem entendesse a Cusco como uma coisa muito positiva, e não é isso que eu tento falar nas letras. Até vejo coisas positivas ali, mas é um disco com muita crítica. Tem uma vontade de atingir uma buena onda, é verdade. Mas hoje não vejo um clima – seja como cidadão ou artista – para fazer um disco falando de flores ou do pôr-do-sol. A tendência é falar de assuntos mais pesados, tocar mais o dedo na ferida, falar de política mesmo, ter letras mais ativistas. Claro, não vai ser um disco de rap, mas a minha cabeça – por ter virado pai e percebido as coisas de outra forma – está indo para rumos mais concretos. Isso não tem muito no primeiro disco. Agora esse segundo, que deve sair no ano que vem, vai ser mais “violentinho”. Não violento, mas “violentinho”.
É você quem compõe todas as canções?
O grosso sou eu quem componho. Antes de ser musico e vocalista, sou compositor. Me vejo mais como criador de música do que executor de música. Na banda eu tenho a parceria do Alejandro, que traz muitas ideias, trechos pequenos, e a gente vai criando a partir disso. Mas a responsabilidade da criação musical é praticamente minha.
Embora se note essa “buena onda” no primeiro disco, eu admito que sentia uma certa ingenuidade ali, uma utopia adolescente, “vou ser plantador no Uruguai”, esse tipo de coisa. O público de vocês é bem jovem, e parece comprar esse ideário, mesmo que utópico.
Sinto que as pessoas que nos acompanham têm uma coesão muito forte entre o que nós cantamos e o que eles sentem. As letras do primeiro disco falam de sentimentos, de coisas indefinidas, e tem um pouco dessa linguagem meio ingênua que tu disse. O público é jovem, mas tá envelhecendo com a gente. Quem começou a nos acompanhar com 17 tá com 21, a gente percebe que eles têm essa demanda, mesmo que não muito declarada, de que a gente fale o que eles pensam. Por isso tem essa intenção de querer tratar de assuntos mais urgentes no segundo disco. Sinto uma cobrança no ar de que a Cusco deveria ser mais ativista, e é o que eu queria que fosse, e que acho que vai acontecer. Já está acontecendo, mas vai ser cada vez mais.
Esse público que está envelhecendo com vocês é o do Rio Grande do Sul. Mas e o de outros Estados? Nesse ano, vocês foram para DF, MG, SP, GO… Como foi a recepção de quem estava vendo a Cusco pela primeira vez?
Eu gostei, percebi uma coesão com o público do Rio Grande do Sul. Gente de 20 e poucos, que vai fazer faculdade federal, um certo ativismo aqui e ali, esse universo.
Como se formou esse público? Afinal, em Caxias do Sul e Santa Maria, vocês tocam para muita gente.
Em Caxias, de fato, dificilmente tocamos para menos de 300 pessoas. Além da música, a gente tem uma postura dedicada à internet, sabendo aonde ela poderia nos levar. Eu sou um cara que escrevo muito bem, o Marcos é um cara que escreve com o coração – chega a escrever errado – e as pessoas gostam disso, de ambas as coisas. Acho que foi isso e os shows que formaram esse público, porque o pessoal gosta também dessa linguagem quase rural. A gente nunca volta em um lugar e encontra menos gente que da vez anterior. O público sempre aumenta.
A banda foi essa aposta alta de vocês. Insistir nesse sonho de viver dela tem prazo de validade?
Como te disse, a gente percebeu que a banda cresce, e junto crescem os gastos. Todo nosso esforço está sendo direcionado para esse momento, para buscar um retorno maior, porque sentimos que não atingimos 20% do que podemos alcançar. A gente está muito pé no chão em relação a isso, não descarto que um dia a gente se dê conta que deu o que tinha que dar e pare, cada um vá arrumar um emprego. Mas falando pessoalmente, eu, Rafael Froner, sei fazer bem pouca coisa que não isso. Cheguei a fazer três faculdades e não terminei nenhuma, tive um emprego aqui e outro lá, mas meu foco vai ser sempre pra música. Do modo que a gente está se dedicando e se estruturando, acho que é difícil acontecer de a gente parar e arrumar um emprego “normal”.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Paulo Pretz / Divulgação.