por Renan Guerra
“A Culpa”, de Domingos Oliveira (1971)
Um casal de irmãos decide matar seu pai tendo como cúmplice o noivo da irmã em busca de uma herança de milhões de dólares. Porém, depois de enterrarem o pai numa cova rasa em um palacete (meio despedaçado) no Rio de Janeiro, os três acabam tendo que lidar com o medo, a culpa e o remorso. Com claras influências freudianas, “A Culpa” é o filme menos “Domingos” de Domingos Oliveira, sendo construído de forma distinta, com uma linearidade meio distorcida, trazendo preceitos da tragédia grega, mas apropriando-as ao espectro nacional, como nas peças de Nelson Rodrigues. A sustentação dessa história se concentra no trio de atores: Paulo José, Dina Sfat e Nelson Xavier, todos com atuações estonteantes. É certamente o filme com mais pretensões de Domingos, que busca aqui arroubos filosóficos, criando paralelos entre essa vida vazia dos irmãos ricos com a construção social das cidades. Vale atenção para a bela e claustrofóbica fotografia do filme, bem como os cenários cariocas da década de 70 (atenção ao Elevado do Joá ainda em construção). Se você não for cativado pela história, nem pelos arroubos dostoievskianos do filme, certamente não passará incólume pela beleza e força do olhar de Dina Sfat, a real dona desse filme.
Nota: ****
“Amores”, de Domingos Oliveira (1998)
Este filme é um dos culpados da eterna comparação de Domingos com Woody Allen: os diálogos ágeis e inteligentes, as neuroses modernas, os arroubos filosóficos em meio a conversas banais, está tudo aqui (mas para defesa de Domingos, tudo isso já estava lá em “Todas as Mulheres do Mundo”, de 1969, antes ainda do estilo “Woody Allen” ser delimitado). Fazia quase 20 anos que Domingos não lançava um filme, por n razões, quando “Amores” nasceu em 1988 de um roteiro escrito ao lado de sua musa e esposa, Priscilla Rozenbaum, versando sobre uma ciranda de relações: um pai protetor (Domingos), uma filha em busca de liberdade e de uma carreira (Maria Mariana), uma atriz em busca do amor (Clarice Niskier) e um casal em busca de salvar sua relação (Priscila e Ricardo Kosovski). No meio do caminho, esses personagens se embaralham e criam conflitos completamente cotidianos, que dão um ar de simplicidade ao filme, mas que nas entrelinhas da verborragia do roteiro, escondem uma obra de apurada delicadeza e de um olhar certeiro sobre o seu tempo. Destaca-se a encantadora beleza juvenil de Maria Mariana, filha de Domingos, em seu único filme ao lado do pai. Vale atenção especial também a trilha sonora de Nico Nicolaiewsky, que traz um ar (um tanto melancólico) de galhofa ao longa.
Nota: ****
“Carreiras”, de Domingos Oliveira (2005)
Da década de 90 até os dias atuais não se pode considerar o cinema de Domingos sem ater-se a figura de Priscilla Rozenbaum, que, mais que atriz-musa do diretor, é também parceira de vida, de roteiros e de criação. Ela é uma artista tão inteligente e multifacetada quanto o próprio Domingos e não merece nunca ficar apenas a sua sombra, como apenas “esposa do diretor”. E é aqui em “Carreiras” que ela brilha sozinha, num filme que é quase um monólogo. Produzido de forma ultra-independente, o filme se utiliza de certos recursos do teatro (que aliás integra uma discussão inicial do filme: quais os limites e as diferenças entre teatro e cinema?) para contar a história de Ana Laura, uma jornalista de meia-idade que se vê apavorada pelos padrões de beleza da TV em que trabalha, entrando numa espiral de autodestruição durante o ciclo de uma noite, completamente regada pelas carreiras de cocaína. Com uma câmera trepidante e closes longos sobre a face de Rozembaum, Domingos soa um Bergman à carioca, mais efusivo e sob efeitos da cocaína. Limitações técnicas à parte, “Carreiras” consegue dar espaço para discussões politizadas e intensas sobre mercado de trabalho, família, drogas e escolhas (algo meio relegado na obra de Domingos, em função de uma, quase saudável, alienação de suas personagens). Suficientemente cômico, “Carreiras” é um espaço para Priscilla mostrar que é uma estrela desvalorizada, que domina a câmera com a força de uma Geena Davis e que nos mantém encantados durante todo o filme, entre o deslumbramento e a paralisia.
Nota: ****½
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Scream & Yell. A foto de Domingos de Oliveira é de Lucca Pougy / Divulgação