por Daniel Tavares
Embora tenha sido registrado em Orós, Fagner nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 1949. Em 1958, o ainda menino Raimundo Fagner Cândido Lopes foi barrado na inauguração do Cine-Teatro São Luiz, na icônica Praça do Ferreira, no centro da cidade. Não tinha paletó. À época, o filme era “Anastácia, a Princesa Esquecida”, de Anatole Litvak, com Yul Brynner e Ingrid Bergman. Era proibido entrar sem paletó no cinema. O menino Fagner viu a riqueza da cidade chegar em seus carros de luxo, com roupas chiques e ficou do lado de fora.
Em 2016, Fagner retornou ao mesmo cinema (onde já havia estado diversas vezes, com e sem paletó), reinaugurado e revitalizado em 2014, para comemorar os seus 66 anos de idade em dois shows (o primeiro no dia de seu aniversário, 13 /10)). O show no São Luiz soava pessoalmente especial por ser uma oportunidade de resgatar esta dívida histórica e reescrever este ponto de sua vida. Os 1070 ingressos evaporaram em três horas, e uma segunda data foi anunciada para o dia seguinte (com os ingressos esgotando mais rapidamente ainda – em apenas meia hora).
Na manhã de terça-feira (11/10), o cantor e compositor, com sua indefectível boina e vestido com “roupa de primeira comunhão” (em suas palavras), recebeu a imprensa cearense para uma entrevista coletiva em que respondeu a cada pergunta com uma grande riqueza de detalhes, contando até mais do que aquilo que fora perguntado. Fagner desabafou sobre o conterrâneo Belchior e relembrou que fora flagrado por Ronaldo Boscoli dormindo no chão de um apartamento emprestado e levado para morar em sua casa com Elis Regina, e que sonha estar novamente no palco com Ednardo e Belchior.
O compositor também comentou sobre como vê a própria importância na vida das pessoas, eventos recentes na Serra da Piedade, em Minas Gerais, e elegeu os discos mais importantes de sua carreira, além de revelar que negou contratos nos Estados Unidos (para concorrer pela preferência do público latino com Roberto Carlos e Julio Iglesias) e Japão e lembrar-se do não seguido conselho de Tim Maia (“Sai dessa merda desse país”). Papo muito bom. Confira abaixo:
Ps. Esse show irá virar um DVD!
Qual a sua relação com o Cinema São Luiz?
Quando surgiu a ideia de fazer essa comemoração do meu aniversário me lembrei daqui, porque nasci na Floriano Peixoto [Nota: rua paralela à Major Facundo, onde fica o Cinema]. Esse cinema foi tudo na minha vida. Tudo de grandioso e de sonhos que tive, tive aqui nas cadeiras desse teatro. Foi uma coisa muito importante. Daí está a explicação do fato de eu vir comemorar esse aniversário, que raramente comemoro, pra trazer de volta as lembranças que tive na minha infância, na minha adolescência. É um show especial para o teatro e a gente vai procurar trazer as emoções que vivi aqui, um repertório de músicas que não canto há muito tempo, mas que vão se adequar muito bem para esse momento. Espero que as pessoas possam ter essa compreensão de que aqui vai estar “passando” um filme da história de um artista que é da terra, que nasceu a três quarteirões daqui, que o primeiro filme que teve aqui eu não entrei porque fui barrado, porque não tinha paletó, e tudo de grandioso que sonhei, essas imagens começaram aqui no Cine São Luiz.
Qual a sua expectativa para esse show de aniversário?
Já sou um cara tarimbado de palco. Comecei a cantar com seis anos aqui na Ceará Rádio Clube, tentava ser calouro do programa do Irapuã Lima, na Rádio Iracema. Fiz novela na TV Ceará, cantei no Theatro José de Alencar e busquei o palco. Então já sou um pouco malaca de palco, de emoção, já enfrentei grandes multidões e tudo, mas esse (show de aniversário) é especial, até porque a gente vai trabalhar músicas que não canto há muito tempo e vou estar diante de uma plateia absolutamente de amigos, de pessoas que vivem comigo há muitos anos, que tem expectativa no meu sucesso, que gostam do que faço. Gostam quando me veem bem, quando me veem na televisão, e sabem que não gosto de comemorar aniversário. Por conta disso, sei que vão ser duas noites muito especiais, num local histórico. Tenho certeza de que vai ser muito diferente. Vou dar uma tremedeirazinha, um pouquinho de emoção, porque vou cantar diante da família, diante dos amigos, diante de um público que está lá fora esperando. Assumo essa responsabilidade, sei que estamos preparando um trabalho muito bonito, mas ele requer não só técnica, ele requer que você controle a emoção por estar diante de pessoas tão queridas.
A reinauguração do Cinema é uma tentativa de revitalizar a região, que perdeu bastante do apelo com a proliferação dos shopping centers associada a problemas como falta de segurança, dificuldade de estacionamento, ocupação de praças pela população de rua. Ao escolher este cinema você acredita estar contribuindo para que o povo de Fortaleza não esqueça esse bairro que é tão importante para a cidade?
Bem, eu já comecei outras coisas aqui. Aqui não tinha réveillon e eu, de certa maneira, trouxe réveillons pra cá. Sempre fui muito participante do “Natal de Luz” [Nota: programação natalina que acontece na Praça do Ferreira no mês de dezembro, com o Coral da Luz se apresentando no Hotel Excelsior, shows na praça e outras atrações]. O povo adora essa região de Fortaleza. Se servir um pouco para que desperte a atenção do fortalezense, do grande número de turistas que vem para ver tantas coisas belas que tem no Ceará, eu vou ficar muito feliz. Venham aqui ao Centro conhecer a tradição do Ceará, conhecer a vaia que deram ao Sol, tudo isso. É um lugar muito lindo, até porque tem que se lembrar do fato histórico: esse cinema foi da cadeia de cinemas São Luiz, que foi feita no Brasil inteiro, e ele foi o privilegiado por ser propriedade de um cearense chamado Luiz Severiano Ribeiro. Por coincidência, o filho dele mora no prédio onde moro no Rio de Janeiro. Existem todas essas coincidências em relação ao São Luiz, em relação à minha história aqui dentro, com relação às pessoas acharem que eu nasci em Orós… Espero que esse evento possa despertar a curiosidade para o ponto cultural importantíssimo da nossa cidade, que é a Praça do Ferreira, especialmente o Cine São Luiz, que era rodeado de grandes cinemas, o Diogo, o Moderno, o Magestik, o Cine de Arte, o Jangada, tantos outros cinemas que convivi a minha vida toda. E os grandes filmes que vi aqui.
Você, Ednardo, Belchior e o resto do pessoal do Ceará fizeram sucesso nos anos 70 quando “invadiram” o Sudeste levando a sua música. Hoje a gente tem uma nova geração de músicos cearenses fazendo essa mesma trajetória (Cidadão Instigado, Selvagens à Procura de Lei, Mafalda Morfina, Jonnata Doll, Artur Menezes). O que você sabe sobre esses nomes?
Conheci o Cidadão Instigado porque nos encontramos (para alguns shows) há alguns anos atrás em São Paulo. Eles fizeram uma releitura (do meu trabalho). Conheci o Fernando Catatau e senti que ele tem uma influência muito grande do Robertinho de Recife, mas carrego comigo, pós-Robertinho, o Cristiano Pinho, que é um dos maiores gênios e músicos que a gente tem aqui no estado do Ceará. Não conheço os demais (artistas citados). O conselho que dou: cheguem perto de mim, venham me mostrar as coisas que não conheço de vocês. Sempre fui muito aberto pra ouvir, pra gravar música dos outros. Há muitos anos atrás fui fazer um disco e pelo fato de eu escutar e descobrir artistas novos e poetas, descobri o Francisco Carvalho. Eu não sabia que havia um cearense chamado Francisco Carvalho que já tinha ganhado prêmios de literatura e estava escondido no Ceará. Recebi um livro dele e musiquei cinco poemas. Isso me fez fazer um disco. Eu estava parado, mas gosto de ser surpreendido. Tem artistas que não, que só gravam suas músicas. Então as pessoas, os caras que gravam, que escrevem, os poetas anônimos desse país, eu tento ser um pouco biblioteca desse povo. Esse povo me procura na esperança de que eu grave alguma música, como já gravei há algum tempo, e me mostra poemas. Sempre fui muito ligado a poesia e todo mundo gosta de me dar. Vou fazer um show e sempre levo uma mala vazia pra trazer livros e CDs. Isso acontece naturalmente, principalmente aqui pelo Nordeste. Se eu tivesse tido cuidado teria um acervo anônimo desse país muito grande. Uma vez coloquei um anúncio no jornal O Globo, em uma coluna muito lida, pedindo às pessoas pra mandarem fitas porque eu ia gravar um disco novo. O meu produtor era então o Mariozinho Rocha, um diretor da TV Globo, de novelas. E ele estava sem gravadora. Eu o levei pra produzir meu disco na Sony e ele virou diretor da Sony. Nessa época ele estava gravando o meu disco e o da Gal Costa. E essas fitas que pedi por uma simples notícia no jornal O Globo congestionaram o correio da gravadora, na Rua Botafogo. Chegaram mais de 1500 fitas e ele foi lá em casa e falou: “Fagner, eu nunca vi um negócio desses”. É a carência do povo que escreve, que faz música. Então sempre fui muito ligado nisso. Pode mandar suas músicas lá para o ararena@ararena.com.br, que é o nosso estúdio, aqui na Rua Jaguaribe, 55, aqui perto da Costa Barros, em Fortaleza. Acho que sempre pode ter uma surpresa. E continua chegando. Sempre que vou ao estúdio há uma correspondência enorme. Eu gostaria de conhecer o que o pessoal novo vem fazendo a nível autoral. Não só musical. Porque, musical, a gente sempre teve aqui grandes músicos. A minha banda é… brincadeira, né? Sempre trabalhei com os melhores músicos. Uma das razões de eu ainda estar vivo musicalmente e artisticamente, é porque eu sempre procurei trabalhar com os melhores músicos, os melhores maestros, os melhores estúdios e os melhores poetas que deram voz e vida às minhas músicas. Eu basicamente escrevi alguma coisa, mas eu sou um músico, eu sou um compositor, eu sou um cara de estúdio, um cara que vai até o fim, um cara que briga com o maestro, com o técnico… Eu sou um cri-cri do estúdio. A minha vida é um estúdio fonográfico. Não é a toa que eu gravei mais de 40 discos, que produzi mais de 50 discos. O estúdio pra mim é comida. Eu posso ficar o dia todo dentro dele. Tem gente que não gosta. Eu vivo dentro do estúdio. Eu sobrevivo dentro do estúdio. A gente sempre teve bons músicos aqui. E hoje a minha alegria é estar vindo aqui amanhã (para o show de aniversário) com uma banda só cearense. Mas eu gostaria demais de conhecer essa nova geração, que tivesse alguma coisa que eu pudesse gravar com eles, que eu pudesse cantar com eles. Se eles quiserem também, né? Tô na fita. Estou vivo aí. Gostaria que essas gerações… não sei se elas estão muito distantes da gente a nível estético, a nível poético… mas eu gostaria demais de ser surpreendido até porque sou muito cobrado por isso. A minha geração, eu, Ednardo e Belchior… ficou uma marca muito forte. O Belchior sumiu, o Ednardo está por aí e eu continuo muito na ativa. Então as pessoas me cobram muito. Eu gostaria de subir num palco com o Belchior, com o Ednardo. Fiz tudo por isso. Fiz um show aqui na Praça do Ferreira. Convidei os dois. Fizemos um show em Sobral. Meu sonho era esse, porque vi surgir o projeto Grande Encontro, que agora me chamaram novamente pra fazer. Eu não queria e acho que um repertório Belchior, Ednardo e Fagner não fica menor do que nenhum Grande Encontro (nota do editor: em referência ao projeto que une Elba Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho). Nós temos um repertório poderosíssimo, querido, forte no Brasil inteiro. Mas tentei juntar o Belchior com o Ednardo, e eles tinham suas diferenças, e essas diferenças impediram a gente de continuar esse projeto. E eu sou cobrado por onde eu passo. Cadê o Belchior? Cadê o Ednardo? Não sei se eles voltam pra mim. Até gostaria. Eu gostaria de subir num palco [com eles]. Fiz agora com o Zé Ramalho, fiz com o Zeca Baleiro, mas as pessoas me cobram muito de Belchior e Ednardo. E eu lamento muito porque Belchior, até eu sair daqui do Ceará, foi meu melhor parceiro. Grande poeta. Chegou lá, virou uma concorrência na cabeça dele que eu não sabia como. O Ednardo, nós éramos vizinhos, nós nos criamos aqui na Rua Artur Timóteo. Tocava piano. Se empolgou pra ser compositor quando eu ganhei o festival com a música “Nada Sou” [IV Festival de Música Popular do Ceará, Fortaleza, 1968]. E passou a pegar no violão… no outro dia eu olhei e ele estava com o violão na mão. As primeiras músicas do Ednardo, eu que passei um pouco pra ele. Ele deve se lembrar disso. Então sempre fui um cara de trabalho coletivo [Fagner faz questão de frisar o termo] e adoraria que eles estivessem comigo nesse momento. Não estão. Então, que venham. De vez em quando encontro o Ednardo na esquina, no mesmo bar que frequento… Belchior sumiu mesmo, porque o Belchior é outro temperamento. Ele deu as costas pra mim. Passei a ser uma ameaça para ele, mas não era nada disso. Eu sempre respeitei o Belchior. Tenho o maior orgulho de dizer que a minha melhor música, a música mais marcante da minha vida é “Mucuripe”. E é com Belchior. As pessoas me perguntam: cadê o Belchior? Por que nego pensa que eu sou amigo do Belchior. Eu não sou amigo do Belchior. Sou um cara que respeita o Belchior profundamente. Mas ele não teve respeito com a gente, por isso ele está sumido. Lamento ter perdido o grande parceiro. Mas ganhei o Fausto Nilo, que a partir desse momento virou meu parceiro, meu amigo, meu irmão. Eu lamento profundamente estar abrindo isso aqui pra vocês, essa história… poderia ser uma história… mas, já que estamos falando, vamos falar mesmo. Eu gostaria muito de ter no palco a presença de Belchior e Ednardo, poder cantar as músicas deles. Quando ganhei o festival aqui no Theatro José de Alencar, em dezembro de 1968, a música que eu mais gostava era “Espacial”, do Belchior. Belchior sempre foi importante na minha vida, mas não fui importante na vida dele. Lamento.
Sua parceria com Belchior, “Mucuripe”, foi gravada por Elis Regina. Você acha que ela é responsável por sua projeção em âmbito nacional?
Sim, a Elis foi responsável por eu estar aqui. Talvez eu fosse (insistir) e não desistisse, porque eu não iria desistir disso. Larguei a faculdade e tudo. Mas eu já estava em um momento bem difícil, família pedindo pra eu voltar. Foi quando soube que a Elis estava cantando as quatro músicas no teatro: “Mucuripe”, “Cavalo Ferro”, “Noves Fora” e “Moto 1”. Aí sim, sai de um lugar onde eu não tinha onde dormir, um apartamento de um primo meu que ganhou um prêmio na Universidade da França. Inclusive o Ednardo apareceu lá um dia. Dai fui morar na casa da Elis e virei ator, virei autor da noite pro dia porque a Elis era mágica. Então, nesse janeiro de 1972, eu deixei de ser o Zé Ninguém pra ser o compositor da Elis Regina. Isso era demais. Ela me levou generosamente pra morar na casa dela, com o Ronaldo, porque eu morava num apartamento abandonado e eles gostaram muito de mim. Virei meio filho do Ronaldo Bôscoli. Ele todo dia ia me deixar num lugar onde ele não via ninguém. Um dia ele subiu no apartamento e viu que eu estava dormindo no chão. No outro dia ele me levou pra morar com a Elis. Eu passei a ser um compositor, uma pessoa assediada, virei uma pessoa importante, uma pessoa que já tinha empresário, que já tinha gravadora. E ali realmente a minha vida mudou. Por conta disso, nesse mesmo teatro, um ano depois, o Cacá Diegues me chamou pra fazer a “Joana Francesa” com o Chico e, no ano seguinte, nesse mesmo Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, em Copacabana, eu subi ao palco com a dona Nara Leão para um show chamado “Nara Muito Informal”, porque a Nara não queria mais cantar. E como eu fiquei amigo do Cacá e do Chico, o Cacá, que morava vizinho ao Menescal e foi quem levou a minha fita para a Elis, pediu para eu fazer um show com a Nara. E eu comecei cantando três músicas nesse show e terminei praticamente tomando o show dela. Ela autorizando. “Vai, vai”. Ela dizia: “Fagner, você tem que cantar! O povo te vê de uma maneira diferente. Você tem um negócio que eu só vejo com o Chico. Não esqueça isso. O povo elege seus ídolos”. Aí eu peguei corda [risos]. Eu sou um cara elegido pelo povo. O povo gosta de mim, gosta das besteiras que eu faço, da maneira como eu canto, do jeito diferente de cantar… de perder a formalidade. Muitas vezes eu me policio pra não fazer besteira, porque eu tenho tanta liberdade, o povo me dá tanta liberdade que às vezes eu abuso, tá entendendo? Então acho que já passei experiências incríveis… Depois eu e o Fausto Nilo produzimos um disco da Nara chamado “Romance Popular” (1981), vítima de muita crítica. Nara era uma pessoa revolucionária. Ela já tinha mexido com samba, com a bossa nova, com a jovem guarda e ela quis meter a mão dela aqui no Nordeste. Deu “Romance Popular”. Então fui um cara realmente abençoado por ser lançado como autor por Elis Regina e ser lançado como cantor por Nara Leão. Há de se convir que a sorte bateu, né? Na época eu fiz 12 pontos na Loteria Esportiva porque estava duro, precisando de dinheiro, e errei num Ceará e Ferroviário [risos em geral da plateia – Fagner é reconhecido como grande torcedor do rival Fortaleza, time que divide com o Ceará a preferência dos torcedores cearenses por quase 100 anos]. É verdade. Eu estava duro na porta da TV Tupi, quem me dava comida era um garçom cearense, porque o Belchior não dava, o Belchior era assim… [Fagner faz um gesto de mão fechada]. E ele tinha dinheiro, mas ele não dava. E não me pagava. Então eu estava desesperado e terminei jogando na loteria esportiva. Desesperado. Como eu gosto muito de futebol, joguei pouco e botei os palpites todos… O Ceará estava em uma campanha extraordinária, tinha o melhor lateral esquerdo, a bola de prata. Naturalmente, o Ferroviário não estava bem. Eu botei vitória do Ceará. Fiz doze pontos e perdi no Ceará x Ferroviário. [Mais risos] Então, não nasci pra ganhar dinheiro fora da música. Desculpe se não te respondi. Não sei. Eu não entendo tanto de futebol assim.
Mas você continua jogando futebol?
Não, estou devagar, mas se aparecer aqui eu faço uns pezinhos.
E a sua parceria com Zico, “Batuquê de Praia”?
O Petrúcio [Maia] me mostrou essa música e eu gravei com o Martinho da Vila. Achei muito a cara do Rio. Nunca me meti muito do samba, até porque os sambistas falam: ‘Pô, Fagner, você só canta em menor’. Eu sou chorão, sou seresteiro. Aprendi serestas ouvindo Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Altemar Dultra, Cauby Peixoto. E eu gravei com esse povo todo, só não com o Altemar que já tinha morrido. Eu trouxe o Sílvio Caldas pra cantar aqui no Theatro José de Alencar, só nós dois. Não sou sambista, mas essa música pintou, eu estava com o Martinho e ele gostou e nós gravamos. Só que na época a gravadora RCA Victor estava lançando um disco novo do Martinho da Vila e ficou com medo dessa nossa música estourar. Eles talvez não tivessem uma boa música na época e, quando viram a empolgação do Martinho com aquilo, suspenderam e impediram que eu gravasse essa música com o Martinho da Vila. E eu fiquei muito frustrado porque a música era muito boa. Era ‘Batuquê de Praia’ e ‘Cantos do Rio’. Eu e o Zico éramos muito amigos, como somos até hoje, e eu botei a música pra tocar na casa dele. E o Zico adorou essa música. Eu disse, ‘então vamos pro estúdio’. ‘Eu?’, ele perguntou. ‘É, você, você mesmo’. E ele entrou no estúdio e isso foi um grande sucesso aqui, principalmente no carnaval de Paracurú. Só depois que entendi que eles não quiseram lançar aquela música (com o Martinho) porque talvez não tivessem uma música tão bala.
Um artista como você sabe que as suas músicas tiveram importância, tiveram participação na vida das pessoas. Assim como você falou que este cinema teve uma participação forte na sua vida, a sua música tem participação na vida das pessoas. Teve gente que casou, descasou ouvindo as suas músicas. Teve gente que conquistou o amor da sua vida e teve gente que perdeu o amor da sua vida. O que é que significa pra você saber que aquilo que você compôs tem essa importância tão grande na vida de outras pessoas?
Minha música viajou muito na vida das pessoas porque eu tive grandes parceiros. E aí vou contar desde Fausto Nilo, Brandão, Petrúcio Maia e Belchior aqui no Ceará. Chegando ao Rio de Janeiro… Abel Silva, Ferreira Gullar, aí, pô, eu vou viajar. E vai pegar os piauienses, desde o primeiro sucesso grande que eu fiz, “Revelação”, com o Clodo, Climério, produzi disco dele. Quando digo que sou viajado, que sou um cara aberto, isso favoreceu porque tive oportunidade de gravar com grandes poetas, como o Francisco Carvalho. Esses poetas deram uma dimensão enorme para a minha música. Os poetas que musiquei, Cecília Meireles, Florbela Espanca. E realmente isso atingiu muitas pessoas. Foi a minha música, mas foi a poesia das pessoas que entraram. Eu já ouvi de tudo, de casamento… Ano passado fui fazer um show em Vitória e tinha uma mesa toda especial para um casal que se casou por causa das minhas músicas, se separou e estavam há 10 anos separados, mas estavam voltando o casamento, trazendo filhos e netos pra me ver em Vitória. Você não faz ideia do que isso?. Nomes… Preciso fazer o cadastro de quantos ‘Fagner’ existem nesse país. Se fizerem um levantamento de ‘Fagner’, é impressionante. A gente tem hoje um jogador que é famoso e que deve estar entrando aí na seleção brasileira e que realmente foi (por minha causa)… Eu já ouvi tudo quanto é de depoimento de gente que se casou. Mas ouvi um antes de ontem, na Serra da Piedade. Cheguei pra fazer um show, participar de um grande evento na Serra da Piedade, um lugar muito alto, muito milagroso, um lugar que te dá uma energia. O programa estava muito mal organizado, uma logística impossível, mas fui ali, não era nem pra estar, mas era uma preparação para a vinda do Papa [segundo o jornal Estado de Minas, o Papa Francisco foi convidado para inaugurar em outubro de 2017 o Museu Maria Regina Mundi, a ser construído no alto da Serra da Piedade, em Caeté, na Grande BH], e uma homenagem ao Fernando Brant… Eu sabia que estava numa roubada, mas fui e aquilo me deu tanto trabalho… não sou mais aquele atleta de futebol. Não é só o evento, estar ali, eu sabia que eu ia cantar a “Oração de São Francisco”… Fui de manhã, passei o som e depois voltei à tarde. E quando cheguei estava um bochicho – o povo mineiro me ama mais que o cearense. Não tenho a menor dúvida disso, porque aquilo não é amor, aquilo é uma divindade. Aqui no Ceará já é uma obrigação gostar de mim de alguma forma porque eu sou conterrâneo, mas o que o povo mineiro faz comigo, os artistas mineiros tem ciúme. Fico com vergonha daquele carinho daquele povo quando estou do lado de artistas. Sou um santo pra eles. E eu estava lá às duas horas da tarde e uma senhora, uma moça bonita, loira, chegou perto de mim e falou (e é um lugar lindo, de carmelitas, é um lugar santo): “Poxa, você veio de manhã e eu queria te falar um negócio e não te falei porque você estava muito assediado, mas posso te falar agora?”. Eu disse: “Pode”. “Pois não, meu filho nasceu com seis meses, nasceu prematuro, teve muita dificuldade, mas botei ele num lugar ouvindo sua música. E ele sobreviveu”. Quer um negócio melhor do que esse? Olhei prum lado e tinha alguém que estava comigo. “Caramba, não te falei que essa viagem não ia ser à toa”. A moça perguntou: “Você pode bater uma foto?” Eu digo: “Não, quero fazer um vídeo. Como é o nome dele?” Ela falou: “Mateus”. A mulher chorando… Eu falei: “Ô, Mateus, que mãe guerreira. Poxa, quero mandar um abraço e fiquei muito feliz de ter participado da sua vida, de ter sido importante pra você”. Ganhei o dia. Foi minha música, foram meus poetas que eu escolhi, foram as pessoas que deram sensibilidade. Eu nunca gravei nada por gravar, por imediatismo. Sim, me criei ouvindo rádio e sei o que pode tocar. Isso eu não tenho nenhuma dúvida. Converso com qualquer disk jóquei, com qualquer programador, com qualquer diretor. Tanto que, pelas gravadoras que passei, nenhum diretor inventou de dizer o que é que eu ia tocar, o que eu ia gravar. Nasci com isso, de música. Eu escutava aqui o Machado, as Dez Melhores, eu escutava rádio direto. Domingo vinha As Dez Melhores… Sou ouvidor de Moacyr Franco, de Taiguara, de tudo, minha vida foi rádio, meu pai foi cantor. Pô, sou do ramo. O rádio, a audição está dentro, não vou conversar com um cara porque ele é dono de uma rádio… Uma vez entrou um diretor na Sony, ele entrou lá porque chegou vendendo gravata. E foi pro meu estúdio ver uma gravação minha e eu botei ele pra fora porque ele só dava opinião errada. “Você é diretor da Sony, mas você não sabe nada de música. Não vem encher o meu saco”. Eu nasci com a música no peito. Então vou com isso até o fim porque tenho origem nisso. Eu entrei em gravadora muito cedo. Aprendi com os melhores profissionais. Meu professor foi Menescal. Os primeiros estúdios, os primeiros técnicos… Tenho que ter aprendido alguma coisa. E às vezes sobra um pouco de falta de humildade pra dizer: “Porra, não enche o saco. Disso aí eu entendo”. (Nota: houve uma polêmica sobre o show de Fagner na Serra da Piedade. O jornal mineiro O Tempo publicou uma matéria afirmando que Fagner derrubou/teria deixado cair um violão que emprestara de um músico local. O cantor Ednardo também publicou nas redes sociais uma nota diretamente endereçada ao “camarada de estrada” sobre o ocorrido, “puxando-lhe as orelhas” virtualmente. Falando ao jornal O Povo, dias depois, Fagner reconheceu que se exaltara e pediu o contato do dono do violão para se retratar“).
Acredito que a maioria de nós começou a escutar suas músicas em LPs, depois passou pra CDs, hoje é possível ouvir em streaming. Todo esse panorama de música, de gravadoras, de distribuição de música mudou bastante. Eu queria saber qual a sua opinião, qual a sua visão sobre isso?
Cara, e se eu te disser que eu não acompanho isso? Eu juro. Sei que o meu contrato com a Sony, ele não visa essas novas ferramentas. Então a gente ainda tem que conversar lá porque sou um cara totalmente por fora. Tenho o Jones que me fala, que me mostra. Pra quem não conhece, o Jones é um dos caras que trabalha há 20 anos comigo, é meu anjo da guarda. Ele cuida dessas coisas porque eu sou um cara totalmente por fora. Tenho um computador no Rio de Janeiro que eu nunca abri. Aprendi esse negócio de “zap” (Whatsapp) e de passar email. E para por aí. Se eu fizer um disco e as pessoas vierem com uma ideia de modernidade, acho que vou contratar a filha do João [um dos donos da Arte Produções e responsável pelos shows no São Luiz], que disse que sabe tudo das coisas, porque eu não estou por dentro. Mas acho que o que está rolando pros outros está rolando pra mim. Tem um ditado nosso aqui que diz que o bom cabrito não berra. Eu brigo quando mando ligar pra Sony e falar que estou precisando do disco meu com o Luiz Gonzaga e eles dizem que está fora de catálogo. Acho sacanagem e me irrito. Tenho um catálogo extraordinário e gosto da peça, do CD, mando buscar. Sei de gente que compra por essas ferramentas, mas realmente eu estou por fora.
Se você fosse eleger os cinco discos mais importantes da sua carreira, quais seriam eles?
Vou tentar chutar e responder rápido. O primeiro, “Manera Fru Fru, Manera” (1973), porquê o primeiro é o disco que todo artista quer gravar. [pausa] Cinco? Acho que o “Orós” (1977), ele tem uma cena totalmente fora do que eu poderia fazer. É um disco em que cheguei nos Estados Unidos celebrado como grande músico, porquê eu estava de lado do Hermeto Pascoal. É um disco diferente da curva da minha carreira. O “Traduzir-se” (1981) foi o disco mais importante da minha vida, porquê é uma aventura fora do Brasil. É um maluco buscando sua identidade, de um pai libanês, de um som que não tinha nada a ver com aquilo. Tanto que, quando nós gravamos, a gravadora falou: “Esse disco não é pro Brasil”. E eu tinha ido pra Espanha lançar o disco “Fagner Canta em Español”, com meus sucessos daqui, mas abortei esse disco pra fazer um disco onde botei Mercedes Sosa, Juan Manuel Serrat, trabalhei com uma outra cultura. Essa foi a minha maior viagem. E eu espero poder ainda ter chance de fazer isso com a música libanesa, que é a música do meu pai. Eu venho treinando isso aí há uns três anos. Eu acho que o “Traduzir-se” foi o meu disco totalmente fora da curva. Isso fez com que eu fosse reconhecido. Fiquei dois anos como maior vendedor de discos da América Latina por um disco que a gravadora disse que não ia dar certo, entende? Esse disco fez a Mercedes Sosa voltar para o país dela. Um disco de amor, um disco de cultura. “Eu Canto – Quem Viver Chorará” (1978), que tem as canções “Revelação”, “Jura Secreta”… O próprio disco que tem “Borbulhas de Amor”, [“Pedras Que Cantam”, de 1991], que foi um disco com três, quatro sucessos… Enfim, são 40 discos, por aí, né? Mas acho que o “Traduzir-se” é um disco absolutamente fora da curva porque ele me tirou daqui do Brasil e eu fiz uma história na América Latina. Se hoje você vê algum artista brasileiro cantando com artista espanhol, quem inventou essa história fui eu. Você via Julio Iglesias brigando com o Roberto Carlos, quem queria ser o mais bonitinho da América Latina cantando música cafona, cantando música pra povão. Eu dei um tiro no pé. E acertei. Foi quando eu fiz um negócio misturando a América Latina, porquê o brasileiro sempre olhou pros Estados Unidos, sempre deu as costas pra América Latina. Eu fui buscar esse povo, por isso que eles entenderam a mensagem. Foi o disco mais importante. O Tim Maia ligava muito pra mim e dizia: “Fagner, sai desse país. Bota aquele colete que tu tem, bota um gumex no cabelo e vai cantar em espanhol. Sai dessa merda desse país”. Viajei essa América Latina inteira e senti a importância que as pessoas davam ao “Traduzir-se”… Não era coisa de brasileiro não, de bossa nova, era povão mesmo… cantar no meio de índio no Peru, na Bolívia, no Chile… Aí um dia, eu fui lançar esse disco em Miami, fiz Los Angeles, e um amigo meu chamado Laudir de Oliveira, que ainda está vivo e que tocou nove anos no Chicago, botou percussão na música americana, no pop americano, apareceu com dois empresários. Os caras queriam investir em mim: “Quero que você more em Miami e faça isso aí, more aqui e cante em espanhol. Quero que você seja um artista para brigar pelo mercado com Roberto Carlos e Julio Iglesias”. Eu falei: “Não, não quero isso aí”. Me lembrei do Tim Maia. Eu quero cantar no Brasil porquê é a minha língua. Eu quero ir pro meu Brasil. Abortei esse projeto. E abortei também um projeto no Japão. Eu fiz um disco no Japão com o Zico e quando foi na última vez o cara falou: “Vem fazer um contrato aqui”. Não. Meu desejo sempre foi cantar aqui mesmo.
– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. A foto que abre o texto é de Evaldo Gomes e a foto da coletiva de imprensa em Fortaleza é da Arte Produções (as duas são de divulgação).
Leia também:
– Nova geração grava tributo a Belchior. Ouça “Ainda Somos os Mesmos” (aqui)
Pô Scream, rolava um tributo ao Fagner hein?
Meu nome e Idolene.estou do lado de Dona Angelita.que tem muitas saudades de vc tambem sou sua fã se puder entre em contato comigo beijis..Idolene em Campinas 19.996201298..
Ótima entrevista!