por Leonardo Vinhas
Quem já esteve em algum show da banda Francisco, El Hombre sabe que é impossível ficar indiferente à música quando apresentada em um palco. A presença vivaz dos cinco integrantes do grupo – os irmãos Mateo e Sebastián Piracés-Ugarte (respectivamente, violão e guitarra), Juliana Strassacapa (percussão), Andrei Martinez-Kozyreff (guitarra) e Rafael Gomes (baixo) –, as canções de forte apelo rítmico, as letras diretas: tudo colabora para que a banda polarize as reações dos ouvintes, em um clássico “ame ou odeie”.
“Soltasbruxa”, o primeiro e recém-lançado álbum do grupo, pode ser um instrumento a potencializar essa polarização. Nos dois EPs anteriores, “Nudez” (2013) e “La Pachanga!” (2015), as letras ainda careciam de força, presas que estavam a clichês de conversa de fim de noite em hostel. O som, por sua vez, tinha uma “latinidade” mais interessante conceitualmente do que na prática. Nesse novo disco, porém, não há espaço para a inocência, seja musical ou textual. A banda assume, em letras e acordes, a identidade forjada em suas longas e imprevisíveis turnês.
O melhor exemplo está em “Bolso Nada”, que não podia ser mais explícita em seu desprezo a certo deputado líder da onda neoconservadora nacional: “Esse cara tá com nada / sabe pouco do que diz / Muito bla bla bla que queima quem podia ser feliz / Desrespeito é o que prega então é o que colherá/ Esse cara escroto”. A participação de Liniker e Os Caramelows na gravação só sublinha as intenções do grupo, e o groove abrasileirado ajuda a fincar o pé da mensagem em terras nacionais.
Outras faixas avançam nessa trilha, ainda que com roupagens diferentes. “Calor da Rua”, primeiro single do disco, traz uma batucada grave, quase fúnebre, e vocais de chamada-e-resposta; “Não Vou Descansar” tem palmas e ligação direta com a música nordestina; “Tá com Dólar, Tá com Deus” é quase uma marcha carnavalesca misturada com partido alto, com a participação dos gaúchos Apanhador Só; “Triste, Louca ou Má”, com vocalize de Salma Jô (Carne Doce), é uma delicada canção ao violão, e golpeia forte pelo empoderamento feminino. Apenas “Primavera” guarda algum parentesco com os EPs antecessores, mas a receita aparece aqui mais ajustada e agradável.
De Campinas, a base da banda, o mexicano Mateo Piracés-Ugarte falou por telefone com o Scream & Yell sem mostrar nenhum sotaque de seu país de origem (“Saí do México muito pequeno, só de vez em quando que dou umas deslizadas”). Na conversa, ficou patente sua segurança no material novo e na proposta que a Francisco, el Hombre assumiu para si, em termos artísticos e pessoais. Pode não ser agradável ou mesmo aceitável para todos, mas é, para banda, uma decisão clara e muito bem fundamentada, como se vê a seguir.
“La Pachanga!” era um disco difuso, que mal dialogava com a identidade da banda no palco. Já “Soltasbruxa” corresponde muito mais ao som que a banda mostra nos palcos, além de ser muito melhor produzido…
Essa mudança é exatamente o que a gente estava tentando fazer. O “La Pachanga!” é de uma época em que a gente tocava pela América Latina onde dava para tocar: em rua, em hostel, onde dava. Quando a gente foi para palcos, esse som já não nos representava mais. Sempre nos falaram que tinha essa distância entre o “La Pachanga” e o nosso show, e no show havia cada vez mais momentos de improvisação em cima do palco. Na hora em que a gente parou para criar esse disco – que foi em dezembro do ano passado – sentamos, conversamos muito e uma hora deixamos de conversar e falamos: “Vamos jogar todas as ideias fora e vamos começar o CD como se fosse um show”. E nisso, muitas canções foram criadas em menos de 10 minutos. “Bolso Nada”, “Triste, Louca ou Má”, “Tá com Dólar, Tá com Deus”, “Calor da Rua”, essas canções foram surgindo muito rápido. Se a gente queria que o disco fosse parecido com o show, tínhamos que trazer essa improvisação livre pro disco, sabe?
Também é um disco que está bem menos “internacional” na sonoridade. Tem coisas de candomblé, até um pouco de partido alto, muitos ritmos folclóricos do Brasil – ou seja, uma identidade não só brasileira, mas fortemente percussiva.
A banda tinha começado viajando pro Chile, pra Argentina e pro Uruguai, e só depois começamos a viajar muito pelo Nordeste do Brasil. Antes, tínhamos muito forte a ideia que estávamos “trazendo a América Latina para o Brasil”, cantando em espanhol, trazendo ritmos de além da fronteira… Mas depois de viajarmos muito pelo Brasil, desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte, percebemos que o Brasil é a América Latina, saca? A divisão é só política, de fronteira. Isso mudou muito [para nos]. Isso trouxe bastante o elemento percussivo. A gente veio pesquisando, cada um no seu interesse, esse universo, e trouxe, por exemplo o caxixi. Também tivemos muito contato com o coco, o jongo, o maracatu. Teve shows em que nós tocamos juntos com um grupo inteiro de maracatu! E isso foi definindo muito. Teve ainda a coisa da língua: começar a cantar em espanhol foi de certa maneira uma resistência à postura de cantar em inglês, que era muito forte uns anos atrás e ainda existe por aí. Pensamos: “Não vamos fazer isso, vamos cantar em espanhol, cantar o que é nosso”. Só que aí, no Nordeste mesmo, estávamos tocando em uma vila de pescadores bem pequenininha, no meio de uma reserva indígena, e começamos com várias músicas em português. Quando tocamos a primeira em espanhol, eles falaram pra gente: “Legal, agora canta de novo em português porque a gente não está entendendo” (risos). Começamos a pensar: onde a gente está tocando? Para quem? E o espanhol é longínquo para a maior parte do nosso público.
A viagem é elemento fortíssimo na identidade de vocês. O público de vocês se apegou muito a esse dado, e atribui a vocês tanto essa vida estradeira como também um estilo muito mais despojado, com condições financeiras mais restritas. Lembro de produtores de shows que comentaram entre si, em um festival, que “Francisco, el Hombre é possivelmente a única banda que fala dessa vida alternativa que a vive de verdade, em vez de voltar para a casa dos pais depois do show” (risos).
Foi tudo bem orgânico, porque já éramos amigos há anos, muitos haviam morado juntos em momentos diferentes. Quando a gente começou, largamos absolutamente tudo à exceção do carro, e tínhamos a ideia de chegar ao Chile com ele. Fazíamos nossas “turnês-guerrilha”, e se já tínhamos um estilo de vida um pouco diferente, por conta da criação de cada um de nós, essas turnês aprofundaram isso. A partir de certo momento, tivemos que dividir tudo o tempo todo, morando dentro de um carro, dormindo poucas horas e procurando espaços de show para sobreviver. Isso nos uniu muito, nos fortaleceu. Falam desse nosso estilo de vida, mas eu não consigo ver muito bem o que é, porque estou totalmente submerso nele. Acho que é apenas uma questão de respeitar o próximo e entender que a liberdade de um não termina quando começa a liberdade de outro, e sim que a liberdade de um começa quando começa a liberdade do outro.
Já que você citou essa turnê, tem um episódio que sei que é desagradável lembrar, mas acho importante falarmos, que foi o roubo que vocês sofreram em Mendoza (Argentina)…
(rindo) Não, tranquilo, não tenho nenhum problema em falar disso. Perdemos muito de material, mas ganhamos muito de imaterial.
Então conta essa história em detalhes, por favor.
A gente estava numa perifa em Mendoza e fomos abordados por caras armados. Levaram tudo, deixaram a gente só com a roupa do corpo em um lugar que a gente não conhecia. Só que a gente se virou, né? O ser humano tem uma capacidade incrível de fazer as coisas darem certo. Uma pessoa ofereceu a casa para dormirmos, e deitamos no chão; no dia seguinte, fomos à televisão e às rádios para causar um barulho… E decidimos continuar com a turnê, porque o pessoal que estava acompanhando a gente, além de terem se compadecido da nossa perda, nos incentivou a seguir. Pensamos: se tem gente nos esperando no Chile para nos ver tocar, e saímos para ir até o Chile, então vamos chegar no Chile! Teve apoio de todo jeito: de dinheiro, de material, de apoio, e inclusive de muita gente que nem conhecia a gente. Rolou uma campanha online para captar dinheiro, e gente do Brasil, do Chile, do Uruguai, México, Estados Unidos, Argentina, todo mundo ajudou, nem que fosse um pouquinho. E com isso a gente conseguiu se reestruturar um pouquinho, porque a perda foi de mais de 80 mil reais numa paulada só.
Foi a casa de vocês, não? Afinal, era onde vocês estavam morando.
Sim, foi tudo. A gente arranjou um lugar para dormir, como eu te disse, e estávamos sob impacto. Meu irmão tinha levado uma pancada forte na cara, estava tudo… (não conclui). Decidimos dormir e só pensar no que fazer no dia seguinte. Quando acordamos, um de nós falou: “Eu nem tenho para onde voltar. Não tenho casa, não tenho instrumento para tocar e ganhar dinheiro, não tem CD para vender, não tem camiseta da banda…” A partir disso, se construiu uma história, uma epopeia que nos levou a viajar pelo continente, a tocar para 40 mil pessoas num show, a ganhar um violão dos Los Nocheros, a maior banda de folclore da argentina; da gente chegar até o Chile e ficar parado durante horas, com a mesma roupa do assalto (que usamos por sete dias, porque não tínhamos outras), na fronteira, passando um puta frio… Só que a gente conseguiu se virar. Por isso digo que ganhamos muito de imaterial.
Quanto ao show em Cuba: foi um convite que vocês receberam, ou foi uma turnê viabilizada por financiamento coletivo?
Fomos convidados, mas teríamos que financiar tudo, porque Cuba não tem dinheiro. E aproveitamos para documentar essa turnê. Sempre documentamos todas as nossas turnês, mas sempre acontecia alguma coisa. A gente é assaltado faz tempo (risos), fomos assaltados três ou quatro vezes, então dessa vez teríamos que documentar a coisa de qualquer jeito. Felizmente deu tudo certo, o material tá bem massa.
Vamos voltar um pouco ao começo da entrevista. Esse encontro que vocês tiveram com a realidade brasileira, tanto para o som como para o idioma, parece ter impactado nas letras também. É um disco abertamente político, assume posturas claras. Isso traz algum tipo de problema para vocês?
Eu acho que a gente já estava num nicho de público onde há pessoas com movimentação política, que fomentam um debate. E dado que não só no Brasil, mas na América Latina inteira existe uma onda de conservadorismo, eu sinto falta de usar o poder do palco, o poder do microfone, para levar esse debate um pouquinho mais longe. Até agora só senti pessoas muito contentes que a gente finalmente levou isso pro nosso material, está até no material de divulgação. Tudo no disco, e na turnê em Cuba também, se baseou no pensamento de “e se a gente morrer amanhã?”, “e se a banda acabar amanhã?”. Fizemos um disco muito mais urgente, fez uma documentação de nossa turnê, por isso. Esse conservadorismo está deixando as contradições sociais do continente muito mais evidentes. Então a gente, pensando nesse, “e se acabar amanhã?”, quis plantar uma semente para pensar mais nisso. Claro que em algumas coisas, especialmente “Bolso Nada”, tem os haters, tem quem vai nos atacar. Mas quem coloca a cara a tapa sabe que vai receber tapa, né? Então vamos indo. Penso muito que, se tem gente caindo em cima, é porque estamos fazendo algo certo.
O disco tem convidados que parecem ter sido pensados diretamente para as canções nas quais eles participam. Você já contou aqui que não foi o caso, porque compuseram espontaneamente. Porém, eles se adequaram muito bem, “Tá com Dólar, Tá com Deus” poderia perfeitamente estar em um disco do Apanhador Só com vocês como convidados, por exemplo. Então queria saber o quanto esses parceiros colaboraram diretamente na feitura das canções.
Isso foi bem orgânico, não sei dizer de onde partiu. A gente era próximo do Liniker, do Apanhador Só, da galera do Carne Doce. Com o Liniker, ele calhou de estar fisicamente por perto quando a gente estava no estúdio, a gente chamou e ele gravou. Com o Apanhador Só, é algo que a gente já vinha falando, sobre o tema da canção, e quando deu a oportunidade trouxemos eles também. Foi bem assim, convidamos amigos que estavam ao nosso redor.
Existem artistas como Perota Chingó, Onda Vaga, Pascuala Ilabaca e muitos outros que, em som, discurso e atitude, pregam abertamente a integração latino-americana pela música. Vocês que viajaram por tantos lugares diferentes, chegam a notar uma integração real acontecendo? Afinal, tantas bandas de lugares distintos trazendo o mesmo elemento não pode ser coincidência.
Sim! Acho que está se abrindo uma rota, e não sei se a gente teve participação em abrir essa rota, mas está unindo cada vez mais a galera daqui [do continente]. Eu sinto que essa rota está crescendo muito. O louco é que quando se conversa com todas essas bandas, e outras tantas, elas têm a vontade de ir mais para a América Latina, mas também de se identificar mais com o que é daqui. Você vai para o Chile e pensa: “o que eu estou representando?” Uma banda brasileira tocar um indie americano no Chile é meio “ah, né?”. Por que isso está tocando ali? Quando você fica com alguma coisa do Brasil e vai para outro país, leva essa integração. Parece que tá mudando o sonho, até. Antes o sonho era ir para os Estados Unidos, mas agora tem gente que já pensa aqui, na Hispanoamérica. Pensa em olhar para a fronteira com o Uruguai, para a fronteira com a Colômbia, olhar para o lado e pensar nos caminhos a tocar. Isso faz qualquer cena se fortificar.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Rodrigo Gianesi / Divulgação.