por Marcelo Costa
Exatamente uma semana atrás, uma pessoa me procurou nas redes sociais perguntando-me se eu conhecia alguém que tivesse interesse em um “Paêbiru” original Rozemblit. “Em estado novo e autografado pelos dois músicos”, avisou. Imaginei a cacetada do preço de uma raridade dessas e, antes mesmo de perguntar, ele falou: “R$ 6 mil” (no Mercado Livre há outro sendo vendido por R$ 11 mil!!!!). Um disco duplo de vinil. Se alguém se interessar, manda e-mail que coloco em contato, pois ficarei humildemente com a minha edição pirata lançada pelo selo inglês Mr. Bongo (20 libras).
“Nas Paredes da Pedra Encantada”, documentário dirigido pelo jornalista Cristiano Bastos ao lado do Leonardo Bomfim Pedrosa conta a história deste álbum de Lula Côrtes e Zé Ramalho que está sendo vendido entre R$ 6 mil e R$ 11 mil tanto quanto pirateado por selos ingleses interessados em toda a mística que gira em torno de um disco único na história da música brasileira e mundial. Lançado em 2011 no festival de documentários musicais InEdit com lançamento em DVD pela Monstro Discos em 2014, “Nas Paredes da Pedra Encantada” agora pode ser assistido na web.
Um road movie que viaja pelas lendas do mítico “Paêbirú ”, álbum lançando em 1975 por Lula Côrtes e Zé Ramalho, “Nas Paredes da Pedra Encantada” flagra Lula Côrtes voltando a Ingá, recanto do agreste paraibano envolto no misticismo de uma pedra talhada com signos pré-milenares. Entre as lembranças de Lula e as histórias de figuras diversas da cena udigrudi nordestina (Lailson, Alceu Valença, Kátia Mezel) o filme investiga não só a riqueza musical de “Paêbirú”, mas também o imaginário do interior da Paraíba e o momento psicodélico dos anos 70 na ponte entre Recife e João Pessoa.
Você pode assistir “Nas Paredes da Pedra Encantada” logo abaixo, na integra. Para marcar esse lançamento na web, o Scream & Yell conversou com Cristiano Bastos, que produziu e bancou o filme do próprio bolso, para saber como surgiu a ideia de fazer um filme sobre “Paêbirú”, quais as dificuldades enfrentadas no processo de feitura do documentário e, ao inverso, os momentos especiais que ficaram desta aventura psicodélica de produção punk. Leia o papo, ouça o disco e assista ao filme (na ordem que você quiser, caro leitor). Inquieto em algum canto de um mundo paralelo, Lula Côrtes sorri.
Como surgiu a ideia de um filme sobre o disco “Paêbirú”, de Lula Côrtes & Zé Ramalho”?
Em certo dia de junho de 2008, telefonei para o jornalista Fernando Rosa, criador do pioneiro site Senhor F (e um dos maiores especialistas da cena musical independente brasileira) para pedir a ele uma dica de “ordem musical”. Residindo em Brasília, à época eu ocupava o cargo de assessor de imprensa do Bolsa Família, emprego por conta do qual, periodicamente, fazia viagens aos mais distantes recônditos do país na caça de histórias a respeito de como o programa de transferência de renda do governo federal mudara a vida de muitos brasileiros. Naquele mês, a viagem para a qual eu me programara tinha como destino a multicultural Recife, onde eu apuraria uma reportagem a respeito daquela que fora chamada um dia “Brasília Teimosa” (a miseravelmente vergonhosa vila erguida em palafitas às margens litorâneas da cidade). Desde sempre inquieto, a verdade é que, nos diversos empregos por mim ocupados em ministérios (Educação, Desenvolvimento Social e Agrário), nunca consegui contentar-me cumprindo somente uma atividade profissional. Paralelamente a esses trabalhos, eu também fazia reportagens – sobre arte, cultura e música – para revistas como a Aplauso, de Porto Alegre, e iniciava, naqueles tempos, uma trajetória de anos escrevendo para a edição brasileira da revista Rolling Stone (o meu primeiro trabalho para a revista, meses antes, havia sido um perfil sobre o músico João Donato, um dos gênios criadores da bossa nova). Ao telefonar para o Fernando, eu buscava uma “luz”, na forma de alguma dica, que, na capital pernambucana, pudesse me render uma segunda reportagem. Foi quando ele me disse a palavra mágica (de origem tupi-guarani): “Paêbirú”. Eu, que até então mal ouvira falar sobre o lendário disco gravado pelo recifense Lula Côrtes e pelo paraibano Zé Ramalho, nos estúdios da Fábrica de Discos Rozenblit, em 1974, sentia ali, na outra extremidade da linha telefônica, acender em meu ser a verdadeira “chama da curiosidade” – não só jornalística, mas mística – que permeia a tão subterrânea quanto fantástica história deste álbum. Uma história que envolve desde a inspiração para sua feitura até sua gravação e a posterior perda de toda a tiragem de LPs que fora levada água abaixo pela cheia que, em 1975, submergira Recife. Chama que, a partir de tal instante, me arderia (continua ardendo!) ao longo dos anos. Primeiramente, escrevendo a reportagem “Agreste Psicodélico”, publicada na edição de setembro de 2008 da Rolling Stone (leia aqui), momento em que, pela primeira vez, em mais de 35 anos, o assunto finalmente ganharia detalhes pormenorizados sobre a confecção do LP duplo batizado por aquela turma de jovens aventureiros como “Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol”. Fora essa a centelha que me incendiaria a ideia de seguir além da reportagem escrita e a também fazer – por minha conta e risco – um documentário longa-metragem a respeito. Ao apurar a reportagem, vi logo de cara que o assunto ainda rendia muito pano pra manga. De corpo & alma, arrebatei-me como nunca tinha sido arrebatado na vida, por tal história. E continuo arrebatado.
O processo foi complicado? Como foi realizar “Nas Paredes da Pedra Encantada”?
Sim, o processo foi muito complicado. Primeiro porque o filme foi feito inteiramente com recursos de meu próprio bolso; é um filme, pode-se afirmar, inteiramente “independente”. Para tanto, tive de investir toda minha poupança na época, meu carro, os limites de todos os cartões de crédito, sem falar no meu salário no governo federal (é bom frisar que eu não ocupava, naqueles dias, um cargo “CC”, os famigerados cargos de confiança) e, ainda, o meu emprego. Para conseguir realizar o filme, consegui, por sorte, juntar minhas férias com uma licença de trabalho, o que resultou em cerca de três meses afastado do emprego (tempo que levou as filmagens). Quando voltei à Brasília, é claro, fui despedido. Com toda a razão, mas nunca me arrependi. Caso eu não tivesse optado pela aventura, Lula Côrtes (que já sofria de um câncer na garganta, que o levaria ao falecimento um mês antes de o filme ficar pronto, nunca teria essa sua história contada da forma que foi). No meio do caminho, para participar do projeto, alistei o cineasta carioca, radicado em Porto Alegre, Leonardo Bomfim, com o qual divido a direção do filme. Ele acreditou na ideia e topou, no ato, embarcar nessa aventura. Ao longo de três meses, estabeleci-me entre Pernambuco (em Jaboatão de Guararapes vivi certa temporada no apartamento do próprio Lula Côrtes) e Paraíba, os dois estados nordestinos em torno dos quais a orbitam as histórias que conceitualmente inspiram o disco. É lá, no profundo sertão paraibano, no município de Ingá do Bacamarte, que está encravada o mítico monumento arqueológico conhecido pelo nome de “Pedra do Ingá”. “Nas Paredes da Pedra Encantada” é, sim, um documentário sobre um período “hippie” da história. Mas o ritmo envolvido em sua realização, sem sombra de dúvidas, foi literalmente “punk”. Sua referência cinematográfica fundamental é “Don’t Look Back”, de D.A Pennebaker, sobre Bob Dylan – a ideia da câmera observadora –, contudo, o espírito que o regeu do começo ao fim foi “The Great Rock-And-Roll Swindle”, o filme-epitáfio sobre os Sex Pistols. O documentário foi inteiramente rodado naquele ano de 2008, embora ficado parado três longos anos, após suas filmagens, por não havermos mais os recursos necessários para que fosse finalizado. Além de todo o investimento particular que fizera, bancando integralmente os custos de produção, eu ainda tinha, por fim, de arrumar o dinheiro necessário para liberar a trilha sonora do filme junto a Lula Côrtes. Ou seja, as músicas do disco “Paêbirú”. Isso fez com que, apesar de pronto, o doc, literalmente, permanecesse “parado” durante anos.
Quais os momentos da feitura do documentário que você sorri quando se lembra e que vão ficar guardados na memória?
Sorrio ao lembrar do largo sorriso de Lula Côrtes, que – apesar da grande instabilidade e do “estorvo” que sua doença lhe causava, às vezes impedindo-o de criar –, em momento algum, vi qualquer sinal de arrefecimento de sua pulsão de viver. Lula (lembrando que, além de músico, também era escritor, pintor, desenhista) fez arte até o último minuto de sua vida. Tive a oportunidade de conviver com ele dias a fio e, em razão disso, o privilégio único de lhe ver criar diariamente, de ouvir suas histórias e, especialmente, de aurir sua profunda e vasta cultura. Outra coisa que certamente me estampa um generoso sorriso no rosto, quando me ponho a rememorar a aventura que tive ao lado dele, nesses dias, foi levá-lo, muitos anos depois, à Pedra do Ingá – o monumento pré-histórico encravado no sertão da Paraíba que inspirou a concepção do álbum “Paêbirú” – e ouvi-lo destilar toda sua proficiência (mística, botânica, geográfica, cultural, musical etc) a respeito. Também me dá vontade de sorrir quando penso que todas as dificuldades que passei não foram em vão. Principalmente ao saber que pessoas ao redor do mundo encantam-se com o filme, dos Estados Unidos à Rússia. Que “Paêbirú” é uma obra de arte tão fascinante (tão brasileira em sua essência) que não há fronteiras culturais que possam detê-lo. E isso é impressionante. Vejam o filme.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Muito boa a entrevista mas achei que faltou ter perguntado qual a posição do Zé Ramalho em relação a esse documentário. Se ele participou, apoiou, boicotou, criticou …por um bom tempo ele renegou esse disco. Como estaria a relação dele com esse trabalho nos dias de hoje?