Entrevista: Projeto Ccoma (2016)

por Leonardo Vinhas

Já se passaram três anos desde que “Peregrino”, terceiro álbum do duo gaúcho Projeto Ccoma, ganhou o Prêmio da Música Brasileira de Melhor Álbum Eletrônico. Nesse longo intervalo, Luciano Balen e Beto Scopel alternaram uma pequena, mas relevante, agenda de shows com seus trabalhos como produtores culturais – Balen é o principal nome à frente do Festival Brasileiro de Música de Rua, e Scopel capitaneia o circuito de shows Tum Tum Instrumental ao lado da esposa Juliana Pandolfo. Tanta atividade intensa e diversificada não passaria incólume pela música que eles criam juntos, mas a verdade é que mesmo com esse background não era possível antecipar o seria seu quarto disco.

“Subtropical Temperado”, o quarto disco dos caxienses, lançado pelo selo Natura Musical (download gratuito aqui), vem com forte (fortíssima!) influência da disco, do funk e da MPB setentistas. É praticamente uma recuperação da memória afetiva musical dos dois integrantes e compositores, deixando em segundo (ou mesmo terceiro) plano as fontes inspiracionais da eletrônica europeia norteavam os discos anteriores, especialmente os dois primeiros.

Outra mudança notável é o uso constante da voz, ajudando a definir um formato canção que era apenas ocasional em “Peregrino” e quase ausente em “Das Ccoma Project” (2009) e “Incoming Jazz” (2010). A cantora Etiene Nadine é responsável por boa parte dessas vozes, e a ela soma-se o músico Rafael De Boni, conhecido na Serra Gaúcha por seu trabalho com música folclórica. No Ccoma, De Boni assume o baixo, e essa formação em quarteto já aparece no primeiro single do disco, uma dançante recriação de “Aprendendo a Jogar”, canção de Guilherme Arantes famosa na interpretação de Elis Regina.

Porém, essa formação é apenas para este momento. Em entrevista ao Scream & Yell, que ouviu o disco com exclusividade antes de seu lançamento, Luciano Balen reafirma a condição de duo do Projeto Ccoma, essencial para dar a liberdade que eles próprios ambicionam. Dentro dessa liberdade, exploraram as sonoridades setentistas com os elementos modernos e até com a música industrial (um ralador de queijo “feito pela Tramontina, aqui na Serra Gaúcha”, como diz Balen, foi usado no disco, bem como os ruídos da Fábrica 2, da Maesa, que será desativada em alguns meses).

Balen explica ainda a mudança da sonoridade e comenta sobre a importância de se ter o apoio de um selo com estrutura sólida por trás de um lançamento, e aproveitou para lembrar que a ética de trabalho duro, comum às falas e à tradição de sua região natal, se estendem para sua abordagem artística.

O Ccoma sempre tratou a voz como um instrumento. Não era instrumental, mas recorria mais a samplers de voz ou vocalistas convidados. Agora há uma cantora na banda. Acredito que isso signifique uma mudança grande na forma de pensar os arranjos e mesmo na maneira de encarar a composição.
Bom, essa é a primeira entrevista que estou dando sobre o disco, então deixa eu ver… (pausa) Ela canta quatro faixas no disco: “Aprendendo a Jogar”, “Mira-Me”, “Quase um Profeta” e “Aço-Pessoa”. As músicas dela são sempre canções mesmo. Inclusive na primeira do disco, que é “Subtropical”, a voz já entra com 10, 15 segundos. Isso foi de propósito! Na primeira versão, a voz só entrava lá no final. Mas colocamos logo ali para mostrar que a gente não é mais instrumental. Então sim, ter a voz impacta diretamente. Mas tem faixas que eu canto, “Subtropical e Hecha la Laey Hecha la Trampa”; tem “Latino-América (Máquina Latino-Americana de Ritmos”), na qual o Beto brinca com samples da voz dele mesmo; tem “Tudo é Nada”, em ele canta; “O Casamento de Doralícia”, que é um clássico instrumental da música gaúcha, dos irmãos Bertussi; e tem “Peleia”, que é dedicada ao Temer (risos): “fajuto, reaça, estafermo”… “Estafermo” é aquele boneco de ventríloquo, então a música é para ele, né? Tem todas as ofensas que um gaúcho falaria para uma pessoa.

Certo, mas na questão da formação da banda, que agora tem o Rafael De Boni, também…
Não, é assim: a gente assumiu que o Ccoma é um duo eletrônico gaúcho que tem nesse disco o De Boni tocando baixo e acordeão e a Etiene cantando quatro faixas e fazendo backing nas outras. Nós também assumimos outros papeis: o Beto está tocando teclados, além do trompete, e eu estou mais como baterista mesmo. Essa é a formação da turnê também, mas daqui a dois ou três anos a gente não sabe o que vai ser. Para agora, o show está bem diferente do que era na época do “Peregrino”, quando era mais introspectivo e com alguns momentos para dançar. Agora, o show é totalmente dançante.

O “Peregrino” tinha uma ponte entre os ritmos da América Latina e a eletrônica europeia. Esse agora, o “Subtropical Temperado”, é o disco mais brasileiro do Ccoma. Escuto Marcos Valle, Robson Jorge, Azymuth, as produções do Nelson Motta, muita coisa nessa linha influenciando o disco. Se o trajeto do Ccoma em discos e na carreira é uma linha evolutiva, você diria que esse momento agora, de maior maturidade, força vocês a olhar mais para o próprio país do que para fora?
(suspira, depois ri) É, acho que a gente está cumprindo nosso objetivo maior – o meu, pelo menos, desde que eu ouvi aos 14 anos “Persiana Americana” [dos argentinos Soda Stereo] na rádio – que é o de dar as mãos para América Latina. A música é uma ferramenta, mas esse é o objetivo maior. É uma das minhas missões de vida: chegar ao final e ver o Brasil mais ligado aos seus vizinhos, de mãos dadas, trabalhando juntos. Inclusive essa mensagem de chamar o Sul do país de “subtropical” não tem a ver só com o clima. Temos um desejo muito grande de que o Rio Grande do Sul seja um lugar mais leve. Não só que esquentasse um pouquinho, que o tal do aquecimento global chegasse um pouco por aqui (risos) – mas é claro que o clima influencia o humor e o comportamento, as pessoas ficam mais fechadas, mais dentro de casa. Porém, o “subtropical” é porque é submundo mesmo: a gente está abaixo de tudo. E o meu desejo com esse disco é que a gente dê uma tropicalizada e deixe o Rio Grande do Sul mais leve. Exceto Kleyton & Kledir e Elis Regina, ninguém no Sul dialogou com o Brasil e foi para o país todo. E ambos estão no nosso disco – talvez Kleyton & Kledir não se escute diretamente, mas está. Mas exceto esses artistas que citei, a música do Rio Grande do Sul sempre foi muito fechada. Mesmo as bandas de rock que tiveram projeção nacional – Nenhum de Nós, Engenheiros do Hawaii – eram fechadas no Rio Grande do Sul. A música deles era essencialmente gaúcha. Já com o Kleyton & Kledir e com a Elis Regina, não. O gaúcho era um elemento da música deles, mas eles eram mais brasileiros que gaúchos, e de alguma forma a gente tem isso também.

E como começou esse diálogo do Ccoma com a música brasileira?
Os discos dos quais estamos falando nessa conversa são discos que a minha mãe, já falecida, ouvia. São discos que estavam sempre na minha casa. E eu e o Beto fizemos muita pesquisa para esse disco: a gente se reunia para conversar, tomar café, ficar ouvindo música até meio-dia, discutindo o caminho que cada canção deveria tomar. A “Aço-Pessoa” é diretamente influenciada por Donna Summer, por exemplo.

Vocês dois são caras na faixa dos 40 anos, então é curioso que são coisas não da juventude de vocês, mas da infância. Por isso minha pergunta se a maturidade não faz vocês olharem mais para a raiz. Tem um elemento de resgate das primeiras memórias musicais, e que me parece não ter vindo só da pesquisa, mas também de um fundo emocional, que deu a vocês mais confiança para fazer algo menos cerebral que os discos anteriores.
Eu nunca tinha pensado nesses termos, mas olha… Esse disco parte de uma provocação que o Patrick (Torquato, DJ pernambucano] me fez, dizendo que “vocês do Sul não sabem fazer música feliz”. Eu falei pra ele: “como é que a gente vai fazer música feliz com um tempo assim? Com esse frio?” (risos) Mas de certa forma, pesquisamos e encontramos coisas na música do Rio Grande do Sul que são dançantes. Então, se você olhar, não é um disco alegre, mas é um disco dançante.

Ou seja: o Patrick estava certo (risos).
Ah, ele é dançante, só não é “arerê” (risos).

No fim, o álbum tem um texto político muito forte. É um disco para dançar em tempos de crise…
(gargalha) Vou anotar essa! “Dance em tempos de crise…”

(risos) Mas falando sério, fora as canções mais óbvias, como “Hecha la Ley, Hecha la Trampa”, tem declarações políticas claras. A própria “Aprendendo a Jogar” adquire esse caráter no momento atual.
Sim!

E não é um contrassenso lançar um disco tão político sob um selo corporativo?
Não. A Natura tem um posicionamento dos seus valores muito claros, não só com a questão da natureza, mas também procurando fazer pelas regiões do Brasil a mesma integração que nós buscamos com a América Latina. E ela já lançou discos muito importantes: Ney Matogrosso, Elza Soares, Zé Manoel…

Aproveitando que você citou isso: realmente, a Natura Musical tem colocado nas ruas alguns dos discos mais interessantes da música brasileira recente. Porém, não são poucos os discos – não só entre os do catálogo do selo, o problema é geral – que passam praticamente batido. Se tanto, são discutidos em uma publicação ou outra, e depois desaparecem, sem espaço midiático, sem se converter em mais oportunidades de shows para os artistas. O que me leva a duas perguntas: a primeira é o quanto muda para vocês, que sempre se autogeriram, ter um selo grande por trás; e a segunda é: quem é esse cara que consome música hoje no Brasil? Por que ele ignora tantas coisas que são produzidas no país?
Para a primeira pergunta, digo que muda, sim. Principalmente para nós, que somos do interior do Rio Grande do Sul, de uma cidade que quer se inserir no Brasil sem fazer música para entretenimento – porque não queremos trazer o espetáculo “Frozen”, da Disney, para Caxias, não queremos colocar um show do Guns ‘N’ Roses aqui, nada disso. Dialogamos com música latino-americana, música brasileira como a da Elza Soares. E antes de responder a segunda pergunta, é preciso falar sobre o faça-você-mesmo. Tenho a impressão que muito músico no Brasil pega o dinheiro do patrocínio mas, por não estar habituado ao faça-você-mesmo, fica parado esperando que algo venha até ele. “Ah, porque estou falando com meu produtor…”, aquele papo. Cara, que produtor o quê! A produção executiva do Ccoma é minha e do Beto. O projeto da Natura, fui eu quem inscrevi. Temos o Robinson Cabral fazendo a parte contábil, o resto é trabalho nosso. Então, salvo se for um cara de muito talento, fenomenal, nada vai acontecer se o artista não botar a mão na massa. E mesmo o cara de muito talento: pega o Zé Manoel, um cara completo, toca piano, compõe bem demais, e pessoalmente um sujeito com muita luz. Mesmo com esse talento não teve grande repercussão. O disco dele é difícil, acho que só daqui a uns 30 anos alguém vai se dar conta e ver o discaço que é, vai ser uma coisa tipo o Di Melo. De qualquer maneira, o artista tem que pegar o dinheiro e usá-lo bem. O artista tem que se fazer. Eu e o Beto pegamos o que seria o nosso dinheiro, o nosso pagamento, e reinvestimos no próprio Ccoma. O artista não pode achar que só tocando as pessoas vão prestar atenção nele. E me parece que há um pouco de preguiça de alguns. “Ah, ganhei Natura, agora vou acontecer”. Não é assim! Não sei se o cara fumou muita maconha, ou se acha que é um baita artista.. Hoje em dia, não tem gravadora fazendo filtro, o cara ruim e o cara bom têm a mesma visibilidade, e tem mais chances de aparecer o cara que acorda cedo e rala para ver sua música acontecer.

E nesse cenário, como fica o consumidor?
Acho que estamos em um momento de virada. O sertanejo parece ter chegado no seu limite, a televisão cada vez mais perde força. A minha geração foi a geração Rock In Rio, que viu aquilo na TV, escutou o rock na rádio, e começou a fazer sua música – nessa época, com nítida influência roqueira, é só ver Lobão, Barão… Os Paralamas felizmente se mantiveram latinos (risos). Tenho a impressão que temos uma chance grande de aumentar nosso público. Não só nós, mas todos que fazem uma música artística, com a provocação política, com a provocação da poesia… To dando todas as explicações aqui, mas eu queria que as pessoas entendessem que “subtropical” não está falando só do clima. É do “sub”. Submundo, subterfúgio, suborno… Tudo que começa com “sub”. Tá tudo ali.

Sabemos que o país agora está rumando para uma polarização. Prefiro não dizer que “está polarizado” porque os extremos de ambos os lados ganham mais repercussão, mas me parece haver muita gente ponderada por aí. De qualquer forma, a polêmica com o filme “Aquarius” mostra o nível de estreiteza mental que estamos vivendo. Você acredita que a música tem potencial de fazer uma integração também nesse tecido social, reduzindo um pouco esse caos, ao menos esse desconforto, que estamos vivendo?
(hesita) Não estou conseguindo ver muita esperança para isso nesse momento. Não vejo esperança de termos um país mais humano. Acho que a música não vai fazer essa ponte. Acho, porém, que podemos tocar algumas pessoas.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell

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