por João Paulo Barreto
Em uma ótima matéria sobre o lançamento de “Morning”, segundo disco autoral da Eric Assmar Trio, o jornalista e crítico musical do jornal A Tarde, Chico Castro Jr, salientou o fato de que seria um equívoco dizer que talento se herda de modo genético. Basta lembrar-se de caras como Julian Lennon ou Edinho, filho do Pelé. Nessa curiosa observação, entretanto, Chico afirma que a exceção que confirma a regra está no jovem Eric Assmar, filho do exímio guitarrista e pioneiro bluesman de Salvador, Álvaro Assmar. Chico foi na mosca.
Lançando seu segundo disco autoral aos 28 anos de idade, Eric alcançou uma maturidade artística que nos faz querer imaginar (com certa empolgação) o que o tempo o permitirá construir em termos musicais nos próximos 30 anos, intervalo exato que o separa de seu pai. Com 58 anos, Álvaro Assmar é um dos pilares do blues no Brasil e maior representante do estilo na Bahia. Seguindo uma carreira acadêmica em paralelo à de cantor e compositor, o guitarrista Eric Assmar também é etnomusicólogo, tendo concluído um mestrado no campo da pesquisa do blues no seu estado de origem. Além disso, já engrenou um doutorado na área da educação musical voltada para o blues.
Além do seu power trio, Eric costuma tocar em diversas bandas de Salvador, com destaque para a Mojo Blues Band, na qual toca junto a seu pai, e, com atividade frequente na noite soteropolitana com o trio, Eric também acompanha a Cavern Beatles, grupo cover dos rapazes de Liverpool e que foi fundado em 2008 junto a Ted Simões, Estevam Dantas e Rafael Zumaeta. Neste papo, o vencedor do Prêmio Caymmi de Música, edição 2015, fala sobre seu processo de composição; das dificuldades iniciais para criar as músicas do seu primeiro disco, de 2012; do modo como a crueza e a dificuldade na criação do álbum de estreia cederam lugar a uma fluidez e maior planejamento para o álbum seguinte, “Morning”, além de abordar suas influências no blues e sua face acadêmica.
Sem se considerar um artista, mas, sim, um operário da música, Eric não se deslumbra com nenhum tipo de glamourização. “Viso construir uma carreira. Tendo muito a refletir a respeito e digo isso às pessoas ao meu redor. Não olho para mim mesmo como um artista. Olho para mim como um trabalhador, como um operário da música”, pontua o guitarrista. De fato, pensar no que o Eric Assmar Trio ainda poderá construir em termos música para o futuro é algo deveras empolgante. Confira o papo.
Eu queria começar o papo falando um pouco do álbum de estreia da Eric Assmar Trio, o disco de 2012. Trata-se de um trabalho em que, comparando ao “Morning”, é perceptível uma roupagem mais crua. Fale um pouco dessa experiência.
No disco de estreia teve aquela coisa de ter sido o primeirão, sabe? Minha primeira experiência como compositor pensando em um contexto de álbum. Penso num disco como uma unidade, principalmente por conta das referências que tive desde sempre ouvindo música. Tenho uma tendência de pensar em um álbum não como um catado de canções juntas ao acaso, mas que haja algum tipo de comunicação interna entre elas. Algum tipo de harmonia interna que faça sentido para elas estarem ali, juntas, no mesmo material. Para o primeiro, eu tinha algumas composições da época da minha adolescência, quando comecei a escrever (nota: Eric lançou o disco de estreia do trio aos 25 anos). Eram apenas umas anotações, eu ainda não tinha começado a pensar em fazer músicas para um contexto de álbum. Quando me submeti a isso, foi um processo que deu trabalho. Demorou para as músicas saírem. E demorou para eu conseguir dar forma a elas. Eu queria que fossem músicas em que eu conseguisse ter uma realidade de um power trio na gravação. Era esse o conceito que eu tinha em mente. O que eu quero dizer com isso? Gravação ao vivo, mesmo, sabe? Direto do estúdio. Sem qualquer coisa adicional. Sem o overdub, que é como eles chamam quando você vai gravar uma guitarra base e depois coloca outra guitarra por cima, outra melodia, outro solo. Aqui, se você vai solar, a base está lá, nua. Só o baixo e a batera. Até mesmo quando você ouve o primeiro disco, dá para perceber algumas imperfeições, com a guitarra meio fora de tempo e isso é de propósito. A gente o deixou respirar da maneira mais orgânica possível. Cresci ouvindo esse tipo de coisa, sabe? Eu estava ouvindo um disco do Johnny Winter dos anos 1970, chamado “Still, Alive and Well”. Ele é um cara que escutei muito. E uma parte deste disco é gravada desse jeito. É um power trio. O primeiro álbum dele, também. Existem alguns blues gravados assim, com um power trio no estúdio, ao vivo, mesmo. No solo, ele vai lá, grava, erra uma nota, continua, e por ai vai. Não tá nem aí. Existe a cultura da valorização de uma performance mais orgânica, vamos dizer assim.
Com o power trio, podemos dizer o Johnny Winter seria uma das inspirações?
Sim, ele e a Grand Funk Railroad, que, apesar de ter funk no nome, é um grupo de rock bem cru dos anos 1970. Outra banda de power trio que me influenciou muito é a Gov´t Mule. São caras que fizeram parte do Allman Brothers e se juntaram para formar esse grupo nos anos 1990, atuando como um power trio entre 1995 e 2000. Até que o baixista faleceu em 2000 ou 2001, não me lembro exatamente (nota: Allen Wood, que morreu em agosto de 2000 aos 45 anos) e, desde então, eles funcionam como um quarteto com outros integrantes. Mas todos eles remontam à coisa do power trio. Da crueza no som. Pensei também nessa coisa das bandas grunge dos anos 1990. Por incrível que pareça, gosto bastante. Gosto muito de Pearl Jam. Outro que gosto muito, mas que a galera mais grunge tende a não gostar, é o Silverchair. Gosto muito dos primeiros discos deles, com os caras novinhos ainda e em uma estrutura de power trio. Penso justamente nessa coisa. Um grupo que vem dessa cultura do blues, do rock and roll. Se você pensar no grunge como um comportamento, de como improvisar de um jeito mais agressivo, um jeito mais rude, vamos dizer assim, então, para mim, tudo isso desembocou nesse primeiro disco. E, claro, não posso esquecer do Cream como uma grande influência.
E como se deu a mudança para o “Morning”?
É curioso que, ao ouvir o primeiro disco hoje, reconheço a importância dele para meu amadurecimento como músico. Foi importante que eu o tivesse feito do jeito que fiz. Mas no palco, ao vivo, você acaba descobrindo a maneira de tocar. E o segundo eu queria que fosse um pouco menos cru. Queria que ele fosse mais pensado como um disco de estúdio, que tivesse um pouco mais desse cuidado. Foi exatamente o que eu pensei para o “Morning”. E ele acaba tendo uma coisa mais pop que, eu diria, vem um pouco da soul music. Escuto muito Stevie Wonder, Robert Cray, que é um cara do blues, mas com uma veia soul. O Steve Ray Vaugh também. Ele é um guitarrista referência. Todo cara que nasceu depois de 1980 e gosta de blues passou pelo Vaugh. Buddy Guy seria outro. Quando ele se mete a fazer algo mais soul, não tem pra ninguém.
Você citou o Cream e com a sua relação com o blues, isso acabou me remetendo àquela gravação que a banda do Clapton fez da música do Skip James, “I’m So Glad”. Recentemente, revi a série de documentários produzida por Martin Scorsese, “The Blues”, e lá existe um episódio que aborda bem a história do Skip James.
Isso. Se não me engano é o dirigido pelo Wim Wenders, né? “The Soul of a Man”. O Skip James, que tinha esse nome por nunca ficar no mesmo lugar muito tempo, ficou sumido muito tempo e foi redescoberto em meados dos anos 1960. O documentário aborda isso muito bem.
Exatamente. Eu queria aproveitar essa deixa para abordar sua experiência acadêmica, como pesquisador do blues. Nos extras do documentário “Feel Like Going Home”, Scorsese fala sobre a importância do blues ser mantido vivo pelos jovens que conhecem o movimento musical, desde a África até o delta do Mississippi. Ele afirma que quando os jovens se interessam pela história do blues, há uma importante apropriação, essencial para que não haja uma canibalização da cultura, que a tornaria descartável e decadente. Como um dos representantes de uma nova geração autoral, como alguém que estuda o blues de modo acadêmico, qual sua opinião sobre essa necessidade?
Aí entra o Eric Assmar etnomusicólogo. Fiz um mestrado na área da musicologia e essas são discussões que, nesse campo, estão sempre vivas. É justamente a coisa de você olhar para culturas, para lugares que não gozam de um local hegemônico de poder. Olhar de uma maneira humanista. Não canibalizando, sem exercer um poder de apropriação desigual sobre aquilo. É você reconhecer o lugar de onde aquilo vem e reconhecer o local de prestigio daqueles mestres. O blues é um tipo de canção de tradição popular. Veio de povos negros escravizados. Um período terrível de escravidão no sul dos Estados Unidos. É um tipo de música que possui uma trajetória de muito sofrimento. Com as migrações para os centros, o blues passou a ser, também, um tipo de canção urbana. Mas o importante é você reconhecer essas tradições, reconhecer de onde vieram os grandes mestres. Assim como toda cultura, O blues é dinâmico. Ele está sempre em mutação. As pessoas estão sempre reelaborando aquela identidade. Eu mesmo, o blues que eu faço é totalmente diluído em outras referências mais recentes, mais próximas a mim. Até o local onde as faço também, Salvador. Eu, inclusive, sou um cara branco, vivo em um bairro de classe média. Venho de outro contexto. A música já teve essa migração, no meu caso. Mas acho que é muito importante você reconhecer de onde vem aquela musica e porque que ela é diferente. Sem deixar de lado a tradição e sem deixar de reconhecer e chamar a atenção para ela. Acho que até dentro desse repertório do blues, do cancioneiro, e do que se costuma praticar de blues nos dias de hoje, o discurso da tradição é muito forte. Em qualquer local do mundo aonde você vai, mais importante do que as novas composições que são feitas, o que é mais forte são as interpretações do standards, das canções clássicas. São canções de Robert Johnson, de Son House, canções de Howlin’ Wolf, de Willie Dixon que pavimentaram esse legado da tradição do blues. Esse discurso ainda é muito forte. Eu, falando pessoalmente, tenho essa consciência. Na verdade, não chamo nem de blues o que faço. É uma coisa que já está tão diluída em outras referências, mas, enfim, tenho a referência do blues e não deixo de reconhecer. Acho importante essa fala do Scorsese nesse sentido. Do contrario, você utiliza aquela música de uma maneira predatória, como subsidio para chegar onde você quer sem dar o devido crédito, o devido reconhecimento a quem de fato pavimentou uma estrada que, sem essas pessoas, hoje não existiria.
Você poderia falar um pouco sobre sua experiência como etnomusicólogo? Em que consistiu a sua pesquisa de mestrado e qual o tema de sua tese de doutorado?
No meu mestrado, fiz uma pesquisa sobre a trajetória do blues na cidade de Salvador. Foi uma pesquisa em que conversei com 13 pessoas da cena do blues daqui. Entre músicos, fãs, produtores, desde os anos 1980 pra cá, que é quando se tem notícias de pessoas efetivamente fazendo blues na cidade, nomeando a si próprios como bandas de blues. A partir dessas entrevistas, procurei identificar falas, sonoridades e peculiaridades discursivas do blues praticado aqui. No que ele difere do blues feito em Chicago nos anos 1930, por exemplo. Por que ele é diferente? O que mudou? O que tem de peculiar? E nisso entram diversas questões. Entram os repertórios, entram as pessoas que participam, a relação do público local com isso, a relação do blues com a mídia local, com a indústria cultural e a dinâmica que a gente tem já nos tempos contemporâneos. As casas de show locais, por exemplo, aquela coisa da cena musical, mesmo. Essa pesquisa gerou uma dissertação a respeito da prática do blues aqui em Salvador. Já no doutorado, estou dentro do campo da educação musical. É uma pesquisa sobre a prática e ensino da guitarra blues. É uma pesquisa que está começando agora, mas o mote básico dela, o mote principal, é pensar de que maneira o entendimento das questões culturais identitárias podem refletir no ensino e na aprendizagem do instrumento, tanto na guitarra quanto no blues. E isso de que maneira a pessoa pode entender o estudo do instrumento para alem das notas. É justamente esse pensamento. Entender de onde é que vem, entender quem é você, o que você está fazendo, o que você fez com aquela música, quais são as referências, isso dentro do local onde você vive. E ter o entendimento cultural do próprio fazer musical.
E isso sem canibalizar a cultura, como disse Scorsese.
Exato. E entender que a prática musical não é só bater uma paleta contra as cordas. É importante o entendimento de que ela muda a depender do contexto em que você se situa.
Voltando a falar do seu novo álbum, em um dos shows você fala sobre a influência do Carlos Santana em sua música e, no “Morning”, você trouxe a faixa “Paradise Highway” nessa pegada semelhante a dele.
Exato. Naquela identidade de blues/rock, mas sem o set de percussão que o Santana usa. A ideia era pensar naquela identidade, naquela coisa latina, de escalas, menor harmônica e trazendo isso para o power trio. A influência, claro, veio de Santana. A letra de “Paradise Highway” fala daquele lugar onde você esquece de tudo e fica curtindo com pessoas que valem a pena para você. E a referência ao Santana na faixa veio por conta de uma coisa que gosto, mesmo. Uma afinidade musical que tenho com a sua estética. Outro grupo nessa linha é o Los Lonely Boys. Ele é formado por três irmãos texanos que fazem um blues com um pé também nessa coisa latina do Santana. Eles se dizem uma banda “Texicana”, aquela coisa TexMex, bem na fronteira entre os dois países. E eles cantam uma parte em inglês, uma parte em espanhol. Fazem muitas harmonias vocais, daí também essa referencia de usar essas harmonias no “Morning”. Devo muito isso ao Los Lonely Boys. E, aliás, é uma coisa dentro do universo bluseiro. Essa coisa do power trio com Fender. Você sente o cheiro da música do Carlos Santana (risos). Em “Paradise Highway” a gente contou a participação do Jelber (Oliveira, conceituado e experiente tecladista de Salvador) com seu órgão Hammond.
Pois é. No show de lançamento no teatro do IRDEB (Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia) era perceptível uma relação intensa do Jelber com o órgão Hammond. Ele parecia em um transe tocando aquele órgão. Como surgiu o convite para ele tocar no disco?
Jelber foi um menino com a gente. Ele se soltou, ficou bem feliz desde o inicio. Desde que o chamei para gravar o disco conosco, ele veio com um sorrisão de orelha a orelha, amarradão, super a fim de fazer. E, na gravação, de primeira ele matou. As duas músicas que ele participa e que você escuta no disco são ambas de primeiro take (Nota: Jelber também toca em “Time is Mine”). Ele é fantástico. É um produtor musical que está sempre trabalhando com muitas pessoas da cena musical daqui da cidade. O convite para o álbum pintou pela amizade que eu já tinha com ele. Tocamos blues há alguns anos e era uma pessoa que eu olhava e pensava: ”esse é o cara”. E esse ano nós participamos juntos de um projeto do Prêmio Brasken. A entrega do prêmio contou com uma peça teatral que tinha uma banda de rock no palco e ele me chamou para tocar guitarra no espetáculo. Estivemos juntos ali e estreitamos o contato. Acabei o convidando para tocar no show de lançamento do “Morning”, também. E foi aquele absurdo de performance. Ele é um tecladista freelancer e toca vários tipos de músicas diferentes, mas tem um entendimento fantástico de blues. Caiu como uma luva para o power trio.
Você tocou no SXSW – South by Southwest Festival, em Austin, no Texas em 2009. Como foi essa experiência?
Cara, foi massa! O South by Southwest é um dos festivais de música independente mais conceituados do mundo. Acontece sempre no mês de março e envolve música, cinema, rodadas de negócios na área cultural, sendo também um festival voltado para o encontro de produtores. O conceito dele na parte musical é de você ter várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, ocupando as casas de show da cidade. Austin já chegou a ser reconhecida como a capital da música ao vivo. Na ocasião em que estive lá, eram várias coisas acontecendo ao mesmo tempo e em palcos de diferentes portes. Você tinha desde um show surpresa do Metallica no Stubb’s (popular casa de show de Austin), um show de Ben Harper no centro de convenções e teve o show de Vandex (ex-vocalista da Úteros em Fúria) que eu acompanhei como guitarrista, além de outras bandas brasileiras. Na ocasião, rolou inclusive um show de Gary Clark Jr., que hoje em dia já é reconhecido no mundo todo, mas que na época ainda começava. E isso tudo acontecendo ao mesmo tempo, na mesma cidade. E foi uma experiência foda. Muito legal. Pude ver muita coisa boa, tocar e trocar figurinha com muita gente bacana.
E isso tudo antes de você começar a compor qualquer coisa do primeiro álbum?
Exato. Nessa época, em 2009, eu não tinha nada pensado ainda para o primeiro álbum. Serviu como um aprendizado, mas, ainda assim, é aquela situação que tudo vai agregando. Os anos vão se passando e a gente nunca é o mesmo. A gente sempre se ressignifica.
A produção dos seus dois discos conta com a presença de seu pai, o bluesman Álvaro Assmar. Como é a experiência de trabalhar com ele?
O “Morning” ele produziu comigo. E o primeiro também foi ele que produziu. Meu pai esteve comigo durante todo o tempo e, sem duvidas, sem o apoio e sem o know how dele não teria sido do jeito que foi. Vale lembrar que, assim como o de estreia, o “Morning” é um disco feito por um grupo pequeno de pessoas. Fomos eu, ele, Thiago (Brandão, bateria), Zuma (Rafael Zumaeta, baixo) e Márcio Portuga, que é o nosso técnico de gravação. Além do Luciano Peixoto que fez imagens do período de gravação. Esse grupo de pessoas eram as únicas que estavam no estúdio. A parte de mixagem e masterização fiz com eles. O Jelber veio e gravou depois. Gravei uns violões adicionais, umas coisinhas de percussão, meia-lua, nada demais, já que não sou percussionista. O que gravei adicionalmente depois foram os violões nas duas primeiras músicas, o Hammond de Jelber, e as partes de vozes, os backing volcal.
Quando você cita a sua dissertação de mestrado na pesquisa do blues aqui na Bahia, é impossível não falar de Álvaro Assmar e sua trajetória de na música.
Sim, é verdade. Na dissertação, eu falei da Cabo de Guerra, banda que ele teve nos anos 1980, da Blues Anônimo, o outro grupo em que ele tocou na época e que foi a primeira banda a usar o nome blues aqui em Salvador. Falei do bar Atelier (famoso reduto bluseiro em Salvador), da Talking Blues, grupos do começo dos anos 1990 que tocaram por aqui. Tentei traçar essa trajetória de posse dos relatos das outras pessoas. É uma história contada com os relatos delas. Na pesquisa, existem parágrafos imensos só com falas dessas pessoas. As falas transcritas e colocadas na pesquisa. Claro que tudo passa pela sua lente, pela sua análise, que é você que está escrevendo, mas eu tentei não ser canibal, não ser violento com as falas das pessoas.
Eu queria abordar essa ideia relacionada com a composição. Ouvindo seu primeiro disco, vi que você teve um equilíbrio de 11 músicas, sendo cinco em português, quatro em inglês e duas instrumentais. Já no “Morning”, há uma quase predominância de musicas em inglês. Essa sua escolha de lançar quase todas em inglês surgiu como? Foi um desafio na composição? Uma escolha pessoal ou foi algo que simplesmente surgiu?
Na verdade, não foi uma escolha. Foi o que surgiu. O primeiro disco deu mais trabalho. Briguei mais com as músicas. Fui e voltei nas ideias, sabe? A parte de conceber as músicas foi algo mais demorado. No segundo, em um espaço de três meses, todas elas apareceram. Mais ou menos em meados de 2015, entre maio e julho, usando um equipamento de gravação caseiro, uma placa de áudio, fui dando forma a tudo e levava para o estúdio. Na ocasião, fui realizando os ensaios com Zuma e Thiago Brandão. Levava as músicas e ia explicando (gesticula): “A ideia é essa, essa e essa, vamos lá, vamos fazer”, e a gente foi costurando, foi dando forma às canções. Foi tudo muito rápido. Surpreendentemente rápido. E as letras, se eu fosse compondo alguma coisa, pegava o violão, fazia uma parte instrumental primeiro seguindo algum esboço, alguma fagulha que surgia. Às vezes era uma melodia de voz que eu tentava musicar. E a fonética chamava palavras e temas em inglês. Aí fui deixando ela falar. Foi tudo bem orgânico.
E com a faixa “Aqui”, única canção em português no disco?
Pois é. A única música onde isso não aconteceu foi “Aqui”. Nesse caso, o texto em português já foi aparecendo de cara. E “Aqui” é uma espécie de diálogo interno com “O Que Virá”, do primeiro disco. Penso na canção “Aqui” como uma “O Que Virá” observada de 2016. Foi o meu pensamento para fazer assim. E foi uma melodia que saiu de modo bem espontâneo, super orgânica. A letra saiu super rápida, também. E a diferença no processo de composição é que no segundo disco deixei a coisa fluir (pausa reflexiva). Não que no primeiro eu tivesse segurado, mas não sei o porquê. Em “Morning”, elas saíram desse jeito rápido. “Ah, mas é tudo em inglês, as pessoas não entendem” (imitando a voz). Sim, mas foi assim que veio para mim (risos). Vamos lá.
De fato, há certa resistência do público para músicas cantadas em inglês por músicos brasileiros.
Existem correntes de pensamento. Existem pessoas que recriminam o fato de você cantar em inglês. Ano passado, aqui em Salvador, teve um projeto chamado Invasão Cultural. Eu e meu pai fizemos um show acústico que já vínhamos realizando há um tempo. E a ideia do projeto era de ocupar espaços públicos, praças, em um dia de domingo aqui em Salvador. E o nosso show foi escalonado para ser em um domingo na orla nova de Itapoã. Domingão, fim de tarde e a gente tocando lá, aquele clima que você conhece. O pessoal saindo da praia, passantes, gente que estava indo para algum lugar. E lembro que havia um cara meio que curtindo o som, nos observando. Ele estava na rua por acaso e, pela maneira como falou conosco, provavelmente não tinha um hábito de ouvir ou proximidade com o blues. Aí ele falou (imitando um sotaque carregado) “Essas porra vem pra cá ficar tocando música em inglês, rapaz” (risos). Foi engraçado. O cara ficou destilando um discurso nacionalista desse jeito, rejeitando a referência estrangeira. Comecei a dar risada. Claro que isso é uma caricatura de uma coisa que acontece. As pessoas, ainda mais na música independente daqui, no cenário de Salvador, tendem a valorizar algo que dialogue de uma maneira mais palpável com a Bahia, com elementos culturais do estado. Sobretudo nas políticas públicas, de editais. Percebo isso. Existem editais que destacam isso nas diretrizes de julgamento.
E para você é mais fácil compor em inglês ou em português?
Acho que no blues e no rock, é muito mais fácil se escrever em inglês. A língua inglesa é menos rica em possibilidades do que a portuguesa. O inglês tem menos sinônimos. Quantas possibilidades você tem de dizer a mesma coisa em português, comparado com o inglês? Pode ser que eu esteja errado, precisaria da opinião de alguém da área, alguém das letras para me dizer. Mas acho que no português você consegue dizer a mesma coisa, semanticamente falando, de diversas maneiras. Diferente do inglês. No idioma inglês, um “I love you” pode não soar banal ou idiota. Já no português, às vezes um “Eu te amo” pode soar bem banal. Então, acho mais difícil você dizer uma coisa no português que exerça comunicação e que não soe tão idiota. Já no inglês, você pode dizer algo que pode até ser assim, mas por conta do jargão e do legado de canções que já se tem na música pop, canções que vêem do inglês, do blues e do rock, não soam como canções banais. Soa menos idiota, vamos dizer assim (risos). A estética das músicas foi concebida nesse idioma. O blues veio primeiro em inglês, o rock veio primeiro em inglês. Acaba sendo mais fácil. Claro que você apela para os clichês. Na minha pesquisa, eu estava lendo um livro de um cara chamado Christopher Small, “Music, Society and Education”. Tem um capitulo em que ele fala da trajetória do blues dentro dos Estados Unidos. Ele define o blues como uma canção que se aproxima do popular desde sua gênese até pela questão lírica, de texto. Existem os clichês que a tornam uma musica fácil de ser dita, fácil de ser cantada. (em voz carregada) “I woke up this morning I found my baby” (risos). Você tem os jargões dentro do blues, sabe? E isso meio que o aproxima das pessoas comuns, segundo o Christopher Small. E concordo que existem esses clichês. O cara pode fazer uma composição que é um catálogo de clichês, mas, claro, o ideal é que se espere que ele possa fazer algo que tenha a ver com a sua expressão, sem apelar para clichês. Mas, para mim, é bem mais difícil escrever blues em português (risos).
Você citou diversas referências no cenário internacional. E do Brasil?
Olha, no rock nacional, gosto muito das músicas do Cazuza cantadas pelo Frejat. Gosto do Frejat como compositor, também, mas as interpretações dele para as musicas do Barão Vermelho na fase Cazuza me agradam muito. Gosto muito dele como cantor. Além dele, o texto de André Christovam, um grande bluesman brasileiro. De blues em português, o disco que ele gravou, o “Mandinga”, possui um texto bem contundente. De letristas da canção popular, admiro muito o Belchior, cujas letras são bem faca na carne, sabe? Algo bem no estilo Neil Young, de quem gosto muito e é uma coisa bem direta, que exerce uma comunicação sem complicar demais e, ao mesmo, tempo não é banal. Claro que é impossível não citar Gil, Caetano, Chico, esses caras são monstros. Mas, para citar as inspirações para meu trabalho, tento me identificar com coisas mais diretas, vamos dizer assim.
Nos dois álbuns do Eric Assmar Trio, encontramos três canções instrumentais: “Abre Aspas” e “Hanna” no primeiro, e “Sun Goes Down” no segundo. Como foi a escolha dessas músicas nos discos e a opção por variar um pouco do blues instrumental já convencional?
“Hanna” era uma canção que eu já tinha. Havia escrito para minha cadela, Hanna, que já morreu. Era só um violão resonator com aquele slide e não tinha melodia ou uma forma pronta para ela. Eu só fiz adaptar a forma. Meu pai gravou um violão de base, gravei com o ressonator e demos forma a ela. Era uma canção que eu já tinha na gaveta desde 2006. Acabei dizendo que não, mas essa era uma que eu já tinha, sim. Havia me esquecido. Já com “Abre Aspas”, o pensamento foi: vou fazer o uma introdução para “Sangue no Olho” (nota: a enérgica canção que vem logo em seguida no disco). É uma música instrumental, com um riff que havia me ocorrido. Pensei que seria interessante fazer isso aqui e a transformar em uma música para que, nos shows, eu tocasse uma antes da outra. No show de lançamento, inclusive, ele começou com “Abre Aspas” e “Sangue no Olho”. Ele começou com aquela coisa de introdução de música. Pensei em uma introdução instrumental e que tivesse o power trio descendo a mão para, daí, entrar a “Sangue no Olho”, que já era com letra. O pensamento foi justamente esse.
E “Sun Goes Down”? Já foi pensada como algo de encerramento, mesmo?
No “Morning”, ensaiei e compus as 10 primeiras músicas. Esse é o núcleo do power trio. Para a 11ª, “Sun Goes Down”, usei um lap steel que foi feito por Jorge Marinho, luthier daqui de Salvador. Ele fez a partir do corpo de um violão velho, meio abandonado. Era uma coisa meio improvisada. Você olha para o acabamento e vê que era um violão meio tosco. Não é o acabamento de um lap steel convencional. Ele foi feito a partir do corpo de um violão, com captadores enrolados pelo próprio Marinho, mas gosto do som daquele negócio. O som dele é fantástico! Foi uma coisa que apareceu um corpo de violão lá, ele fez um ajuste e, pronto. “Ah, Eric, tome aí pra você de presente”. E jogou em minha mão (risos). E pensei: “Porra, preciso fazer uma arte com isso, bicho”. Nunca pude fazer uma musica com lap steel assim, para usar em shows, é uma coisa que gosto de fazer. Gosto muito do Ben Harper. É um artista que admiro bastante. Tanto suas ideias, a maneira como ele se posiciona na carreira, tanto seus textos e composições, para mim é um cara fenomenal. Sou muito fã dele. E é um cara que exala energia boa. Você olha para Ben Harper tocando e não tem como não ficar feliz, bicho (risos). O vi tocar em Austin, em 2009, e a energia era essa. Você o ver tocar e dá vontade de sorrir (risos). Tem um disco dele chamado “Lifeline”, de 2007. A última faixa se chama justamente “Lifeline”. Uma faixa cantada e ele com o lapsteel. E aquilo é de uma calma, de uma paz de espírito. Pensei: “Rapaz, eu poderia encerrar o disco com algum tema desse tipo.” O detalhe era que eu queria um tema que não fosse previamente composto. E foi isso. Solta o rec, liga o lap e vamos gravar. Foi assim que gravei. Aqui mesmo nesse quarto, com esse sisteminha aqui (aponta para o computador na mesa em frente) e “Sun Goes Down” acabou sendo composta na gravação. Claro, fiz um take, pensei um pouco, “isso aqui pode ser de outra forma”, e foi indo. Registrei e já ficou. “Sun Goes Down” foi uma música composta no momento da gravação. No inicio, meio de improviso, mas depois eu criei um temazinho e fui desenvolvendo dentro desse tema. Tudo criado aqui na hora. Foi feito para ser uma coisa livre, mesmo. Algo meio etéreo. Sem a amarra de uma forma, sem a amarra de um ritmo constante. Justamente para que a pessoa entre na viagem e se acalme antes do disco acabar.
Ainda nesse viés das relações internas que as faixas possuem, em algumas canções do primeiro álbum, como “Senhor”, “In My Own Way” e “Lonesome Walker” senti que as letras trazem uma carga dramática mais pesada, entristecida. O primeiro disco trazia uma impressão mais introspectiva dos seus personagens em suas canções. O personagem de “Lonesome Walker” me lembrou um pouco o de “Off He Goes”, do Pearl Jam, por exemplo. O segundo, não. Ele é mais leve, mais otimista, também. Apesar de possuir canções como “Time is Mine”, cujo peso da letra impressiona, trata-se inegavelmente de um disco mais otimista. Você credita a que essa mudança de tom entre as duas obras? Passagem do tempo? Amadurecimento?
Sim, com toda certeza. São momentos diferentes também. Acho que vivo um momento mais pleno das coisas, Mais leve, vamos dizer assim. Não vou dizer que seja um momento no qual a gente saiba mais o que quer, mas um momento em que somos menos ignorantes, vamos dizer assim. O tempo vai passando, a gente continua ignorante, mas, um pouco menos, né? (risos). Acho que tem mais a ver com isso. E, claro, há um diálogo com a parte musical. A questão do power trio, da crueza do primeiro álbum, aquela coisa que comentei antes. Penso naquilo e acho que a dramaticidade das letras tem a ver com a maneira como ele foi gravado, com a sonoridade, com a capa em preto e branco, o concreto no projeto gráfico. A foto da capa foi tirada em uma construção. As internas têm um pouco disso. De pedras, paredes, tudo em preto e branco. Ele parece que não tem cores. O segundo é mais colorido e isso meio que reflete em seu resultado, apesar de ter canções como Time is Mine, que possui uma carga dramática mais acentuada. Agora, o Morning não é dramaticidade o tempo todo, essa coisa mais dark como o primeiro é. O primeiro trazia esse momento mais duro, vamos dizer assim. Eram temas mais duros, também.
Refletia algum momento especifico de sua vida?
Acho que o primeiro tem a ver com… (pausa) Alguns personagens ali refletem alguns pensamentos meus. Questões que permearam a minha vida e olhares externos meus sobre outras coisas. Não necessariamente coisas minhas. Hoje, olho para o primeiro disco e, só para citar de exemplo novamente, a canção “Aqui” que está no “Morning” e a “O Que Virá”, que está no primeiro. “Aqui” já é meio que um pensamento do tipo: “mas não era bem assim, isso mudou. Mas você pode olhar também dessa forma”, sabe? As coisas não precisam ser tão preto no branco dentro de uma situação X na qual você olha para aquilo de dentro. Quando os anos passam e você exerce a capacidade de olhar de fora, às vezes algumas outras coisas aparecem para você. E é mais ou menos por aí. “Morning” eu acho que é um disco um pouco mais leve. Tem alguns temas meio duros, meio incômodos, também, mas tratados sob uma outra ótica, um pouco mais otimista e até bem humorada, também. Faixas como “Would you Love Me”, por exemplo. É uma letra que fala de um questionamento… (pausa). Gosto de deixar margem para quem quiser olhar e interpretar. E não pense necessariamente que é uma coisa direta de uma pessoa. Mas ela trata de um tema que questiona alguma coisa. Um suposto interesse fugaz e mesquinho em uma coisa ou em uma pessoa. Só que em uma música que é um funkzão todo alegre. Então, acaba havendo essa quebra.
Em relação a músicas alegres do disco, a que me veio à mente agora foi “Don´t Ever Lie” por conta de sua pegada mais rápida, mais enérgica.
Mesmo? “Don´t Ever Lie” é um jargão do blues. A letra dela fala mais daquele clichê conjugal do blues. Tem uma pegada enérgica. É a chamada levada shuffle invertido. Eu nunca tinha feito uma musica com essa levada e acabou que foi ela que veio primeiro (imita a introdução de “Don´t Ever Lie”). Eu fazia improvisos nos últimos shows do trio, antes de compor a musica. Abria às vezes os shows com essa levada, pois queria uma musica com algo do tipo e não tinha. Aí parei e pensei: “Peraê, deixa eu pensar em um texto, deixa eu fazer uma coisa legal aqui” (risos). Aí surgiu “Don´t Ever Lie”.
Curiosamente, consigo ver esse paralelo entre as faixas “Senhor” e “Time is Mine”, do “Morning”. Ambas se complementam naquele estado de catarse que elas oferecem. Do que trata a letra de “Senhor”?
Não sei se necessariamente elas se complementam, mas concordo com você. Dentro desse contexto do todo, elas ocupam um lugar parecido no âmbito da dramaticidade em cada respectivo disco. “Senhor” é meio que uma observação minha sobre uma pessoa ou uma entidade em que colocam uma expectativa nela. Alguém que pode ser um líder político, pode ser um líder religioso, ou pode ser uma pessoa comum, como você, que em um dado momento as pessoas colocam em um pedestal, esperam de você uma coisa que no fundo você não se sente capaz de oferecer. Você só se sente como mais uma pessoa comum. A moral da história seria por ai, em meu entendimento. Não superestimar as pessoas. Por exemplo, um líder político é uma pessoa que exerce uma influência sobre uma sociedade, há pessoas que o apóiam, há pessoas que o criticam, mas no fundo é uma pessoa que acorda de manhã, que escova os dentes, que come, como todo mundo. Uma pessoa que é humana no sentido mais palpável. E, no fundo, uma expectativa merece ter cuidado para que não seja um peso muito além que você põe nas costas de uma pessoa. Tem a ver com isso. O Senhor da canção seria o eu lírico gritando. Seria justamente essa pessoa gritando. Mas claro que, quem interpreta, desenha o que quer.
Um pedido de socorro?
Sim, bem por aí.
Tragicamente, a gente vê muitos ídolos passando por isso. Pedindo socorro em silêncio.
Ah, sim, vários. Michael Jackson, Robin Williams, Kurt Cobain, Amy Winehouse, só para citar alguns.
Exato. Existe esse modo da pessoa chegar a um nível tão grande de adoração a ponto de não conseguir lidar com isso. Hoje, estamos em uma época que com tanta fugacidade das redes sociais, você acaba dando muita importância a sua imagem e a que fazem de você. Um meio não muito saudável de se levar a vida.
Exatamente. Você cai na sua própria armadilha.
Como você encara isso na vida artística? Como você se vê neste momento em relação a identidade e a maturidade musical?
Viso construir uma carreira. Tendo muito a refletir a respeito e digo isso às pessoas ao meu redor. Não olho para mim mesmo como um artista. Olho para mim como um trabalhador, como um operário da música. Você me acompanha, sabe que tenho vários trabalhos, toco com muitas bandas. Cuido também da parte administrativa da minha carreira, faço doutorado, me ligo na pesquisa musical, respiro esse universo 24h por dia. Às vezes de uma forma burocrática, outras de uma forma mais artística. Às vezes mais acadêmica. Mas, enfim, gosto de estar envolvido, gosto de arregaçar as mangas, gosto de por a mão na massa. Sou um cara que se identifica muito com isso. Meu ideal de vida é continuar tendo uma sobrevivência digna, ter o respeito das pessoas que se aproximam e se interessam pela música. Uma admiração qualitativa, vamos dizer assim. De pessoas que gostam, que se identificam com aquele trabalho. Não porque acham seu cabelo bonito, sabe? Ou porque querem olhar no seu snapchat para ver onde você almoçou, ou para ver onde você está malhando, esse tipo de coisa. Mas isso passa justamente muito longe da minha realidade. Não faço uma música de massa.
Dá para viver dignamente de música tocando blues e rock em Salvador?
A música que faço é a de um segmento especifico, geralmente são pessoas que se interessam por aquilo, muitos guitarristas que tem o interesse pelo blues, pessoas já iniciadas pelo rock e no lugar que a gente mora, sabemos que isso é um nicho. Não é algo para se ter deslumbre. A música que faço é a música para um nicho. E pensando em mercado, 2016, com redes sociais, stream, dá pra viver muito dignamente de música sem que você precise tocar no Faustão, sem que você toque numa rádio para atingir milhões de pessoas. Busco isso. Fazer música para pessoas que se interessam. Claro, quero que minha música se expanda e encontre as pessoas. Quero que as pessoas tomem gosto por ela, faça essa ponte de diálogo, que comprem os discos, afinal, é um trabalho independente, a gente precisa disso para fazer a roda rodar. Mas é isso aí, cara. Acho que o principal é fazer a música que você faz e fazer com coração. Se você olha pra musica que faz e acredita nela, acho que alguém se identifica e você já colhe esses frutos. Já tem um pessoal que acompanha, claro que em uma proporção numérica modesta. Não estou lotando a Fonte Nova ou a Concha Acústica, mas é um pessoal que acompanha, que está sempre presente. Consigo gerir uma carreira. Vivo só de música desde a minha adolescência. Economicamente falando, consigo ter uma vida digna disso. Emocional e artisticamente, me sinto feliz por estar fazendo o que faço. Por ter conseguido materializar dois discos, por estar dando continuidade à minha carreira. Meu foco agora é poder expandir isso, estar em outros lugares, estar com novas pessoas e tocar, cara. Não importa em que local. O importante são as pessoas que estão nesse local. Quem consome, sabe? Quem consome não no sentido mercantil, mas no sentido de ouvir e se identificar. Criar uma sinergia com aquilo.
Ser fã de blues em Salvador é uma missão árdua. Você acaba tendo que procurar bastante para encontrar essa tribo. E acaba por existir uma relação de amizade entre os fãs que se esforçam para estar nos shows. E que estão sempre presentes, como você disse. Essa sinergia é sincera. O blues tem essa coisa.
Sim, é verdade. O rock and roll é mais contaminado pelo glamour. O blues é mais das pessoas comuns. O mesmo cara que está tocando é o cara que ligou para o dono daquela casa, para o produtor daquele festival para fechar. Que está ali conversando com ele, que vai receber com ele. Carrega o equipamento, que contrata o pessoal que vai operar som, que vai fazer isso, aquilo. Sou o faz tudo. O cara que bate escanteio e que corre para cabecear. Sou um ser humano como você. Como você que tem sua correria de jornalista, tenho a minha como músico e acho que, por ter me envolvido com todas essas etapas desde muito cedo, meio que tendo a não me identificar com a parte do artista que colhe os louros de ser um artista.
Neste novo disco, o baterista Thiago Brandão, que substituiu o Thiago Gomes, que tocou no primeiro, participa como backing vocal, algo que você não usava antes. E você continua a parceria com Rafael Zumaeta. Como é a unidade da banda?
A banda possui um contraponto interessante com Zuma e com o Thiago. Zuma é o melhor baixista com quem já toquei. Para o que faço, acho que não teria trabalho melhor. Nunca toquei tanto tempo com um baixista quanto o que toco com ele. Já são oito anos trabalhando juntos. Tenho uma identificação muito grande com o cara. Percebo a diferença quando toco com outros baixistas. Claro, é legal tocar com outras pessoas, mas o ideal de conforto, vamos dizer assim, é o Zuma justamente pela aproximação que temos. E o jeito dele plantadão, às vezes até fora do palco com sua postura apaziguadora de conflitos, sendo um cara mais centrado, um cara que me ajuda muito na parte de logística das coisas, das bandas que a gente tem. E Thiago, um cara proativo, que trabalha muito, arregaça as mangas. É um cara mais enérgico, que se envolve com a parte de composição, parte criativa, de dar sugestão de ideias. Eles se completam na banda. A personalidade de cada um faz com que essa engrenagem do trio role de uma maneira em que uma coisa favorece a outra. O elemento dos backing vocals, também. No caso, o primeiro disco foi gravado com o Thiago Gomes na bateria. Ele é um amigão, um irmão meu que mora em São Paulo e precisou se afastar do trio por conta da mudança de cidade. Após isso, nós chegamos a fazer com Fábio Brandão, outro amigo batera nosso. Aí o Thiago Brandão entrou na jogada com um elemento criativo que fez com que o trio ganhasse uma característica mais roqueira com ele. Por conta do seu próprio jeito de tocar, da própria escola dele. E ele inseriu esse elemento dos backing vocals, que era algo que eu já queria fazer baseado na herança da Grand Funk Railroad. E Thiago inseriu isso assim e casou bem. Os dois se equilibram do jeito que eles são. E eu um maluco no meio deles (risos).
Dentre mortos e feridos, todos se salvam bem.
(risos) Exatamente. É a frase que eu queria dizer.
O próprio Thiago Brandão e o Zuma tocam com você na Cavern Beatles, então, vocês já têm uma unidade que colabora bastante para um bom resultado.
Sim, exato. O Thiago já toca com o trio há três anos e entrou na Cavern mais recentemente, pouco mais de um ano. É até um fruto da aproximação da gente como trio, enfim. Brincando, vejo esses caras três, quatro vezes por semana. Tem vezes que um não quer nem olhar para a cara do outro. “Meu Deus do céu! Thiago e Zuma de novo!” (risos) E eles devem olhar pra mim e dizer a mesma coisa (risos). Mas, enfim, faz parte. É rotina. Pelo fato de a gente se produzir, de cuidar da parte burocrática, acho que isso dá muito trabalho e, às vezes, a rotina pode ser bem desgastante. Bem estressante, também. Mas no fundo, o saldo é positivo. Há um consenso interno de todos. De que a gente está ali porque tem uma coisa maior que a burocracia. A gente quer a música. A gente quer estar junto. A gente está satisfeito por tocarmos um com o outro. E isso fala mais alto.
E como você lida com a experiência de tocar cover dos Beatles e a necessidade de buscar identidade musical mais autoral?
Rapaz, o negócio é que gosto de tocar na Cavern Beatles. Me divirto! Às vezes as pessoas geram aquela dicotomia e vêm com um discurso de: “Ah, mas você tem o seu trabalho, por que você faz cover?” Existe esse tipo de pensamento, mas a minha resposta é muito simples e sem máscaras: eu gosto de fazer. Tão somente isso. “Ah, mas você faz vinte, vinte e cinco shows por mês”. Certo, nas três últimas semanas (essa entrevista foi feita em 23 de agosto) eu fiz vinte e cinco shows. É um ritmo surreal você pensar em fazer três shows em uma noite. Correndo para lá e pra cá. As pessoas dizem: “Mas rapaz, para que?” Simples: porque eu gosto. É algo que me exercita como cantor, como guitarrista, com o contato com o público, contato com banda. Acho que a figura que sou hoje tocando e cantando, seja com o trio, com a Cavern ou sozinho, a figura que sou no palco se deve muito à experiência de fazer shows em ritmo intenso. Desde bailes até shows com bandas de rock em lugares pequenos, até shows de blues com meu pai. São essas experiências heterogêneas que tenho de situações assim. Desde o cara que toca em banda de formatura e casamento até o cara que estava no festival de Londrina, no início de agosto. Então acho que fazer de tudo contribui para que eu seja a pessoa que sou hoje em dia. Não sei se é bom ou ruim, mas acho que desinibe. Tanto em perfil, oratória, de como se comunicar com as pessoas, de como dar uma ideia para que você se faça entender, quanto em postura no palco. De ser você mesmo com as pessoas sem estar vestindo um personagem, sabe?
Você acaba de lançar seu segundo disco autoral aos 28 anos de idade. É cedo para dizer qual o próximo passo?
Rapaz (pausa), timidamente, penso em um disco ao vivo. Com músicas inéditas e gravado ao vivo. Claro que com a inserção de uma ou outra dos dois discos já lançados, mas a sua maioria de inéditas já com a tamancada delas ao vivo, sabe? Em que eu experimente com platéia. Mas, enfim, não sei se é muito precoce ainda. Preciso saber primeiro o que vai aparecer de música para mim nesse meio tempo. Vez ou outra tem uma galera que me procura oferecendo música para gravar e tal, mas confesso que não sou muito simpático à ideia justamente por achar que um disco é uma oportunidade que você tem de ser você mesmo. De você verbalizar, expressar e soltar suas ideias. Não que seja um demérito gravar letras de outras pessoas ou regravar algo, nada disso. Mas, para esse trabalho com o trio, eu acho que faz mais sentindo que eu conte a minha própria história, sabe?
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Assina o blog Película Virtual e colabora para o jornal A Tarde.
Entrevista, que foi um verdadeiro raio-x! Parabéns João Paulo e Eric por tamanho talento e maturidade!
Aos 53 anos de idade e 29 anos de trabalho em uma concessionaria de energia elétrica, me senti envergonhado diante deste menino, o rapaz é incrível, parabéns Eric pelo seu talento, estudo, conhecimento e humildade.
Achei ótimo o titulo OPERARIO DA MUSICA……