Entrevista: Sentidor

por Bruno Lisboa

João Carvalho é um dos músicos mais prolíficos, versáteis e interessantes do cenário mineiro atual. Em seu vasto currículo constam as funções de jornalista, produtor, compositor e guitarrista da banda El Toro Fuerte. Como se não bastasse tantas atividades, Carvalho dedica seu tempo e criatividade a uma extensa carreira solo e, desde 2012, sob o codinome Sentidor, aposta numa sonoridade ligada a música eletrônica com ares experimentais.

Após o celebrado e ensolarado “Dilúvio” (2015), o Sentidor lançou em 2016 o álbum duplo “Memoro Fantomo_Rio Preto”, trabalho no qual segue sua sonoridade habitual, porém com ares mais introspectivos e alinhados a imagens. Este trabalho (liberado gratuitamente no Bandcamp do artista) exibe canções (dentre elas a suíte “Rio Preto”, dividida em cinco partes) e marca o início da parceria de João Carvalho com o coletivo Geração Perdida de Minas Gerais.

Na entrevista abaixo, João fala sobre o método de criação do novo disco do Sentidor (“Foi um processo muito intenso”), suas influências (“Tenho sido muito influenciado pela noção de uma arte multimídia, de política participativa, de artistas experimentais”), a entrada para o coletivo (“Acho que está todo mundo meio fora da zona de conforto, e isso é uma coisa muito bonita pra acontecer”), a interferência do cotidiano em seu método de composição e muito mais.

Em “Memoro Fantomo_Rio Preto” você coloca o seu experimentalismo habitual numa ótica instrumental alinhada a imagem. Como foi o processo de criação deste trabalho?
Foi um processo muito intenso, e até pouco tempo atrás eu não tinha nem certeza de que ia se tornar um álbum. Como digo em alguns dos textos do disco, as canções foram compostas nos últimos 8 meses, e todas elas são uma espécie de transmutação de um processo depressivo. Foi algo em dada medida muito inconsciente, no sentido de que não foi um esforço intencional. Eu costumava chegar em casa depois das noites mais pesadas, me sentava em frente ao computador e começava a compor as paisagens sonoras que se tornaram as músicas do álbum. Hoje percebo que foi um processo meio de musicoterapia, de meditação transcendental (risos). Um amigo jornalista me disse uma vez (e sempre repito isso) que os discos do Sentidor soavam como se fossem um scanner sonoro do meu cérebro, retratos do que acontecia na minha cabeça em momentos específicos, com todo o caos e desordem característicos de um cérebro encarando uma crise depressiva. Essa ideia do registro, de uma arte que é ao mesmo tempo incrivelmente abstrata e também documental, acabou por me fazer querer transformar o álbum numa experiência um pouco mais abrangente do que música. Tenho sido muito influenciado pela noção de uma arte multimídia, de política participativa, de artistas experimentais como a Holly Herndon e o Tim Hecker. É aí que entram as fotos e os textos. São dois hobbies meus que sempre tiveram um papel importante na criação da minha música, e resolvi transformar eles em partes ativas da obra final. Aliás, a ideia é justamente que não exista uma obra final, e que as pessoas possam vivenciar esse disco da mesma forma processual e incompleta que eu vivenciei.

Além do Holly Herdon e do Tim Hecker, no release você também cita o Sigur Rós como influências do álbum. De que maneira cada um destes artistas colaborou para a composição do disco?
Holly Herndon, Tim Hecker e Sigur Rós são três artistas que transitam de alguma forma entre o eletrônico e o experimental. Além de serem músicos que eu ouvia quase que diariamente durante o processo de composição – e acho que isso fica bem explícito em algumas músicas – me interessou muito a ligação política que o som deles estabelece. Recentemente o Sigur Rós lançou uma iniciativa-disco-happening em que eles transmitiram 24 horas de música ambiente generativa criada ao vivo, numa espécie de manifesto pela desaceleração da vida cotidiana. O último disco da Holly Herndon – que abriu a turnê do Radiohead na Europa recentemente – aborda temas como o neo-futurismo e discute tecnologias open-source como forma de construção política, auto gestão e empoderamento dos artistas independentes. O último disco do Tim Hecker é uma provocação do choque entre a cultura clássica e a pop, e levanta questões interessantíssimas sobre a indústria cultural, a apropriação e a capacidade de subversão das tecnologias. São todas temáticas que estão presentes no processo de feitura do “Memoro Fantomo_Rio Preto”. Além da questão mais presente da depressão, me foquei bastante durante o processo de composição em transformar o disco numa obra aberta, uma espécie de não-música mais fluida, que permitisse a participação do ouvinte na construção dos significados e nos símbolos que formam o disco. Tudo isso aconteceu em boa parte por inspiração desses artistas acima, além de que são exemplos de “vanguarda” musical que me mostraram que não tinha problema em pirar um pouco mais nas minhas composições.

A turnê do novo disco iniciou-se em São Paulo. Como foi receptividade do novo material? E como o mesmo se alinha ao vivo aos trabalhos anteriores?
Inesperadamente boa (risos). Essa turnê e até mesmo a data de lançamento do disco, foi tudo feito meio em cima da hora. Eu fico muito tempo guardando material, e quando me dou conta já não aguento mais esperar, daí sai tudo meio desorganizadamente. No sábado fiz a primeira apresentação completa do Sentidor, na Luthieria do Gustavo Athayde, do Bike, em São Paulo. Fiquei muito nervoso, até porque o outro show era do Jonathan Tadeu, que não é exatamente o mesmo estilo de som do Sentidor, apesar de estarmos sempre juntos. Mas a verdade é que a recepção foi maravilhosa, e acho que pode ter sido o melhor show do Sentidor que já toquei. O clima intimista era exatamente o necessário, e conversando com as pessoas depois do show, deu pra perceber que elas foram tocadas com a intensidade que eu sonhava. Foi uma coisa muito bonita, mesmo. Os shows do Sentidor costumam ser assim. Geralmente não ficam muito cheios, mas as pessoas que se tocam com o som ficam emocionadas MESMO. Quanto ao futuro, admito que ainda não preparei todos os detalhes do show. Essa ida a São Paulo serviu como teste, pra decidir se o formato estava funcionando ou não. O que posso dizer é que tenho a intenção de viajar pelo país com esse disco, e que as apresentações do “Memoro Fantomo_Rio Preto” devem investir muito mais na elaboração do concerto ao vivo como sendo uma obra nova, diferente do disco. Tenho trabalhado alguns elementos de performance, e pretendo costurar uma obra visual específica para os shows, assim como fiz no “Notícias do Nosso Mundo”.

Como se dera a sua entrada para o coletivo Geração Perdida? Qual a importância deles para a sua nova guinada?
A entrada pra Geração perdida é uma coisa curiosa porque, em alguma medida, não foi realmente uma novidade. Conheço os meninos desde mais ou menos uns dois anos atrás, e desde então toco como músico de apoio do Jonathan Tadeu. Produzi o disco do Fernando Motta, que também foi lançado pela Geração. O que quero dizer é que sempre fomos amigos e sempre estivemos tocando juntos… Então foi algo natural, e em alguma medida, era só uma questão de tempo (risos). Aqui em Belo Horizonte, acho que a Geração Perdida sempre foi o grupo que me pareceu mais aberto, conceitualmente, socialmente e tudo mais. Era o único trampo da cidade que eu conseguia imaginar aceitando as viagens do Sentidor. O Jonathan já tinha até me feito o convite anteriormente, mas na época eu estava envolvido com uma label do Peru. Eventualmente o contato acabou não dando certo e por fim resolvi aceitar o convite pra Geração. Estou muito orgulhoso e ansioso por essa parceria, porque acho que é algo novo pra todos os envolvidos. Se não me engano, é o primeiro disco instrumental do selo, acho que nunca tinham se envolvido com algo assim tão experimental (risos). Do meu lado, também é a primeira vez que lanço um disco por um selo, e é muito interessante também essa mistura de público que está rolando, inevitavelmente. Acho que está todo mundo meio fora da zona de conforto, e isso é uma coisa muito bonita pra acontecer.

Em paralelo ao Sentidor, você pé produtor e co-coordena as ações da El Toro Fuerte, entre outras atividades. Como conciliar tantos trabalhos?
Eu me faço essa pergunta quase todos os dias (risos). Além da música, sou estudante de jornalismo e fazia estágio também. No início desse ano acabei surtando, justamente por conta dessa carga excessiva, e daí decidi repensar a minha vida, minhas prioridades e coisas do tipo. Foi meio por conta desse momento que decidi trancar a faculdade, largar o estágio e arriscar minhas fichas com a música. Desde então tenho me dedicado quase que completamente a trabalhar com som, compor, fazer as turnês que a gente sempre teve vontade de fazer, e produzir discos. Estou começando a trabalhar com dois novos artistas (que prefiro não revelar ainda) e tudo indica que posso ter feito a escolha certa investindo em música. É algo que me deixa realizado de uma forma que o jornalismo nunca conseguiu, e a gente está num momento de ver as iniciativas crescerem e darem frutos, então é algo que me deixa bem animado. O fato do Sentidor ser um trabalho solo também facilita a divisão de tempo com a Toro. Meu ritmo de produção é bem rápido, então acabo produzindo muita coisa nos intervalos em que não estou trabalhando com a banda. Inclusive, se tudo der certo, lanço ainda mais um disco esse ano, de outro projeto (risos).

Suas composições são marcadas pela pessoalidade. Como o cotidiano interfere no seu fazer musical?
Acho que os sons do Sentidor funcionam como uma forma de diário abstrato. As composições derivam diretamente de sonhos, experiências sensoriais ou espirituais, na maioria das vezes. Os clipes ao longo da discografia, assim como as fotografias e os textos que fazem parte do ultimo disco, são registros – novamente – quase documentais do meu cotidiano, alterados apenas pelas edições visuais “psicodélicas”, um tipo de transe da vida comum. É algo que acabei por aprender em algumas escolas de cinema independente. Jonas Mekas, Agnes Varda, Chris Marker sempre deram muita importância a essa arte da realidade, do cotidiano, algo em alguma medida afastado do espetáculo. Acho que acabei por absorver essas ideias num guia para os meus trabalhos. Nunca gostei de escrever diários, mas a minha produção musical acaba ocorrendo dessa forma: quase todos os dias escrevo algum trecho, alguma textura ou alguma ideia que eventualmente se transforma em algo mais complexo.

Poucos meses separam “Memoro Fantomo_Rio Preto” de “Dilúvio”. O primeiro soa mais introspectivo enquanto o segundo mais ensolarado. Ambos foram compostos na mesma época?
A questão é que, apesar de ter sido lançado em dezembro do ano passado, o “Dilúvio” (2015) é um disco que ficou bastante tempo no forno. Acho que ele é um disco um pouco menos maduro, tanto musical quanto conceitualmente, mas realmente é um trabalho mais ensolarado. Ele quase não versa sobre depressão, e tem uma ligação muito mais forte com temas como o amor e a espiritualidade/religiosidade. Acredito que ele foi composto cerca de um ano antes do “Memoro Fantomo _ Rio Preto”. Ainda assim, vejo uma ligação muito forte entre eles. Parece uma espécie de evolução natural, já que todas as temáticas do “Dilúvio” e até mesmo alguns dos seus timbres também estão ali no último disco. É um processo de evolução que acompanhou muito bem a minha evolução psíquica no mesmo intervalo de tempo.

Você um dos artistas mais inquietos da atualidade em Minas Gerais, estado que, aliás, vive um grande momento artístico. Como você vê o cenário atual?
Poxa, muito obrigado pelo elogio! (risos). Mas sim, tenho uma relação dupla com Belo Horizonte. Talvez seja assim com todas as cidades natais. Acho que, se formos pensar nos últimos 10 anos, a cidade está fervilhando. A cena rap conquistou um espaço merecido depois de anos de briga com a prefeitura e os órgãos públicos. A música independente, em alguma medida, obteve reconhecimento inédito nos últimos anos. O que, de forma alguma, me impede de considerar o cenário musical mineiro um dos mais conservadores com os quais já tive contato. Um amigo me disse outra vez que a cena política (e também a artística) da cidade abre pouquíssimo espaço para discordância, conflito, debate. É uma das maiores críticas que eu teria pra fazer sobre o cenário hoje. É triste porque mesmo os movimentos alternativos acabam por encarnar uma espécie de hegemonia, às vezes, e é um bocado difícil lidar com essas situações. As pessoas acabam por cair em alguns lugares comuns, no vício de depender de acessórias de imprensa, de recorrer sempre aos mesmos espaços, dos mesmos esquemas e dos mesmos festivais. Tenho orgulho de dizer que a cidade já absorveu o funk e outros movimentos culturais marginalizados em alguma medida, mas essa absorção é muitas vezes rasa e pouco politizada. As construções sociais se cristalizam aqui com uma velocidade absurda, e por mais que isso seja bom no sentido de construção de grupos que se identificam, esse processo também torna a chegada de novos artistas um pouco difícil. O mesmo acontece com a evolução dos próprios estilos musicais, eu acho. Demorei um bom tempo até encontrar “a minha galera”. É essa a cena com a qual tenho me identificado mais, recentemente: a Geração Perdida e outros selos mais voltados pra música experimental (Seminal Records sempre manda algumas paradas por aqui, o Henrique Iwao por exemplo). Amo demais também a Família de Rua, Roger Deff, Douglas Din, Barbara Sweet e outros artistas do tipo. Um dos meus maiores sonhos hoje é produzir um disco de algum rapper daqui. É um pessoal que tem começado a explorar novos espaços, novos formatos e até mesmo novos estilos musicais. Acho que a questão é essa: a abertura estilística – e por que não social – da cidade ainda é um bocado questionável (risos). E o problema é que, às vezes, a defesa de um certo sucesso da cena acaba por silenciar críticas tremendamente válidas. No mais, apesar dos pesares, tenho me sentido cada vez mais à vontade na cidade. O processo acontece aos poucos, mas temos visto os nossos projetos sendo mais respeitados e considerados, e mesmo mais xingados e criticados! No final das contas, é só um processo natural de dialética. A gente tem que empurrar os limites mesmo, arrumar confusão, reclamar e criticar até não poder mais. Isso não quer dizer que eu odeie a minha cidade ou os artistas dela, mas é a partir desses processos às vezes desconfortáveis que as coisas avançam.

Quais são seus os planos futuros?
Acredito que o mais breve vai ser a divulgação do disco. Tenho uma turnê marcada pro Nordeste com o Jonathan Tadeu, e ainda nem realizei o show de lançamento aqui em Belo Horizonte mesmo. Fiz uma parceria com o Coelho Radioactivo, de Portugal, que deve sair numa coletânea de lá em algum momento em breve. E não consigo, já estou produzindo mais material inédito pro Sentidor (risos). Pretendo gravar mais alguns projetos e lançar outros discos ainda esse ano, mas ainda é cedo pra dar mais detalhes. No mais, tenho os compromissos com a El Toro Fuerte e devo começar a produzir dois discos de artistas mineiros ainda nesse ano. Agora que comecei a pagar minhas contas com músicas, tenho trabalhado com trilhas sonoras, gravações e coisas do tipo.

– Bruno Lisboa (@brunorplisboa) é redator/colunista do Pigner e do O Poder do Resumão

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