por Ismael Machado
Uma das primeiras coisas que vêm à cabeça quando se assiste a “Menino 23” é uma piada de mau gosto. Ou gesto de vingança. É mais ou menos assim: “Alguém deveria trazer amarrado o Ali Kamel e colocá-lo para assistir a umas três sessões seguidas do filme. Depois, com ele ajoelhado no milho, no canto da sala, ficar repetindo ‘entendeu o que é racismo?”.
Contextualizando. Um par de anos atrás o todo poderoso chefão do jornalismo da TV Globo cometeu um livro chamado “Não Somos Racistas” (2006). O livro, que teve apenas uma edição (ainda bem), virou a principal lembrança quando surgiram os ataques racistas à apresentadora do tempo no Jornal Nacional, Maria Júlia, a Maju.
Pois é lembrança similar a que ocorre quando se depara com a história de “Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil” (2016), que chegou esta semana aos cinemas. O documentário, gestado desde 2011, é uma realização da Giros Produtora e mostra uma daquelas aberrações que só o Brasil parece conseguir produzir. Antes do advento da Segunda Guerra Mundial, com o país sob as mãos de Getúlio Vargas, crianças negras eram levadas de orfanatos no Rio de Janeiro para fazendas no interior de São Paulo. E eram mantidas como escravas. Perdiam os nomes, tornando-se apenas números.
Seus ‘benfeitores’ eram membros de uma família padrão da elite brasileira. Fazendeiros, com presença política intensa e ramificações no mundo da indústria e do comércio. O sobrenome sólido, Rocha Miranda, não deixa dúvidas. É um retrato da elite brasileira.
É uma história que começou a vir à tona por acaso. “Menino 23” se baseia na tese de doutorado “Educação, Autoritarismo e Eugenia: Exploração do Trabalho e Violência à Infância no Brasil (1930-1945)”, defendida em 2011 por Sidnei Aguilar, na Unicamp, e premiada pela Capes. Ao ministrar uma aula, ele ouviu de uma aluna sobre um tijolo com a suástica nazista numa propriedade da família. A partir daí um mundo oculto, embora já insinuado no Brasil da era Vargas se descortina. O Brasil que flertou com teorias fascistas e com a eugenia se mostrava inteiro ao pesquisador. E ao lançar luz sobre esse passado, o que se vê é a sombra do Brasil de hoje.
O Menino 23 do título do filme é Argemiro Santos. A equipe de filmagem encontrou um homem amargurado, revoltado, seco. Alguém que sem pai e mãe, vê a infância sequestrada. Alguém a quem foi negada toda a possibilidade de sonho. Um escravo dos tempos modernos, no momento em que o Brasil insinuava-se justamente como um país prenunciando uma industrialização, ainda que tardia.
Com as primeiras gravações e depoimentos, outro personagem é descoberto. Aloísio Silva. Aloísio conseguiu fugir da fazenda onde era escravizado, foi menino de rua e depois se alistou para defender o País numa guerra contra a supremacia branca hitlerista, numa interessante volta do destino.
E no meio do caminho do documentário, a presença de Dois, um personagem ambíguo, que é criado dentro da casa grande e não na senzala. Misto de personagem de Tarantino em “Django Livre” com Xica da Silva e da canção “Morro Velho”, de Milton Nascimento, Dois se descortina como mais um retrato da sutil violência de classes que move a sociedade brasileira. O negro falsamente tratado como branco e que branco se considera.
Dirigido por Belisário Franca, “Menino 23” possui um tratamento fílmico que consegue dar conta de uma história pesada, densa, a partir de pequenas sutilezas. Isso é plenamente alcançado graças à fotografia de Thiago Lima, que aposta em detalhes com sensibilidade.
O que “Menino 23” causa ao final é mais uma das tantas certezas a respeito do país que vivemos. Há filmes que parecem chegar na hora certa para possibilitar discussões e entendimentos sobre a sociedade que mantemos. Em tempos de polarizações, com a direita conservadora, fundamentalista, racista e homofóbica crescendo a passos largos, é bom que tenhamos um filme que, ao olhar para o passado, ajuda a iluminar nosso presente e alerta para o futuro.
Alguém compre um ingresso para Ali Kamel e Arnaldo Jabour, por favor.
– Ismael Machado é jornalista, escritor e roteirista. Lançou o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui