por Leonardo Vinhas
A Nação Zumbi é uma das mais importantes formações da música brasileira dos últimos 20 anos. A afirmação categórica e, como tal, passível de questionamento se justifica com a própria história da banda: com Chico Science ainda nesse plano de existência, a Nação lançou dois discos – “Da Lama ao Caos” (1994) e “Afrociberdelia” (1996) – que levaram a sua geração e algumas gerações seguintes a olhar para as próprias referências nacionais como se olhassem para as internacionais, e então usar isso para fazer a música mais verdadeira possível. Já no póstumo “CSNZ” (1998), a banda deu mostras de que seguiria outro caminho, diferente daquele que vinha se desenhando com Chico Sciene. A psicodelia ficou mais evidente, as letras menos pernambucanas, mas a sonoridade manteve a força percussiva, a imprevisibilidade da guitarra de Lúcio Maia e o diálogo com a música do mundo. E já são agora 25 anos de carreira, contagem iniciada desde que as bandas Loustal e Lamento Negro se juntaram para dar origem a Chico Science & Nação Zumbi.
A festa está sendo comemorada com vários shows, entre eles uma turnê apresentando “Afrociberdelia” na íntegra, já que esse disco – possivelmente o mais importante da discografia da banda e terceiro melhor disco dos anos 90 em votação do Scream & Yell; “Da Lama ao Caos” foi o quarto – completa seu 20º aniversário. Mas a festa teve seus dissabores: Gilmar Bola 8, percussionista que foi um dos fundadores da banda, alegou ter sido expulso injustamente, e que os demais integrantes não o teriam comunicado a respeito, deixando a tarefa para a empresária do grupo, Ana Almeida. Na sequência, abriu processo contra os ex-companheiros acusando divisão injusta dos lucros da banda. Da sua parte, a Nação Zumbi respondeu, em comunicado oficial, que as razões para a saída de Bola 8 seriam “má conduta, desrespeito e falta de profissionalismo”, sem especificar atitudes, e até Lula Louise, filha de Chico Science, veio a público falar em favor da Nação.
Inicialmente um octeto, hoje a Nação é um quinteto: Lúcio Maia, Jorge Du Peixe (voz), Dengue (baixo), Toca Ogan (percussão) e Pupillo (bateria) – os tamboristas Tom Rocha e Gustavo Da Lua são músicos contratados. As mudanças de formação foram um dos tópicos da conversa que o Scream & Yell travou com Lúcio Maia alguns minutos antes da apresentação da banda no 20º Festival Cultura Inglesa, repassando brevemente esses 25 anos e já olhando para o presente (a iminente apresentação com os Young Gods no aniversário de 50 anos do Festival de Montreux na Suíça, precedida de alguns shows com os suíços aqui no Brasil) e para o futuro (o próximo álbum, ainda sem título). Uma breve nota: para dialogar com a proposta do festival, patrocinado por um curso de idiomas, a Nação Zumbi tocou versões de “China Girl”, de Bowie/Iggy; “Tomorrow Never Knows”, dos Beatles; “A Message to You, Rudy”, do The Specials; e “Time of The Season”, do The Zombies,
Como surgiu o convite para fazer esse show com o Young Gods? Partiu da curadoria do festival de Montreux ou de algum de vocês?
Partiu do próprio Young Gods. Eu creio que o pessoal do consulado suíço conversou sobre esse projeto com eles, e daí o Franz [Treichler] fez uma pesquisa e se inteirou da gente. Ele entrou em contato conosco e tudo acabou rolando. Só que a gente teve um encontro em 1996 num festival no interior da Bélgica. A Nação foi tocar com o Chico e os Young Gods tocaram em outro palco. Depois do nosso show, fomos assistir os caras, que tinham um hit que tocava muito na MTV, “Kissing The Sun”, que é uma grande música. Vimos o show e conversamos rapidamente com o Franz no backstage, logo depois. A gente nem sabia que ele era brasileiro, ficou naquela situação (risos), mas fomos e dissemos a ele que tínhamos achado o show muito massa. Corta. Aí vamos para esse encontro, que era um projeto do governo suíço, e que fluiu muito rápido, muito fácil, porque temos o mesmo conceito sobre música.
E está funcionando bem o show, artisticamente? Porque, pelo pouco que vi no YouTube, os arranjos têm pendido muito para o lado da Nação. Tem ficado muito Nação e pouco Young Gods.
Eles têm uma dificuldade maior porque são uma banda altamente mecânica. É bateria, o Franz canta, toca uma guita, mas é pouca coisa. Mas tudo vem da base do teclado, que são os samplers de baixo, bateria, sintetizadores. Então quando começamos a tocar, ele não conseguia encontrar espaço no nosso som para aquela gritaria dele, talvez por isso tenha ficado um pouco com essa característica. Também porque para nós era mais fácil absorver a música deles do que o contrário. Mas acho que a fusão ficou muito espontânea. Não foi uma coisa que tivemos muito trabalho para fazer. Nós ensaiamos cinco dias, e os dois últimos ficamos mais batendo papo, trocando ideia, fazendo outras coisas… Para nós, sempre é importante fazer essa troca de figurinhas com outras bandas que a gente admira, lógico. Porque dessa forma funciona. Porque quando é uma coisa forçada, meio que planejada para ver o que acontece, geralmente não acontece (risos).
Então como você olha hoje para aquele Split feito com o mundo livre s/a, no qual uma banda tocava o repertório da outra?
Ah, legal, cara! Isso foi uma ideia muito bacana que o Rafael Ramos, da Deck Discos, teve. Nação e mundo livre têm uma história juntos, apesar de o mundo livre já ter dez anos quando a Nação começou (risos). Mas a gente saiu pra aparecer pro Brasil ao mesmo tempo. Temos uma história juntos. Basicamente aquele disco foi mais uma intervenção de outras coisas que ainda virão.
Artisticamente acho um disco bem diferente dos dois lados. Não só pelo fato de as bandas já serem diferentes entre si, mas também porque assumir o repertório um do outro parece ter levado a uma mudança na dinâmica habitual de cada um.
Na real, o mundo livre teve uma vantagem, que foi mais tempo para fazer. A gente teve dois dias, e os caras tiveram meses (risos). Por isso os arranjos dele ficaram mais elaborados que os nossos. Mas a gente fez de coração, e fez de um jeito que a gente sabia que ia representar, sabe? Queríamos ter tido tempo para ensaiar com a banda, mas foi um período em que estávamos (Lúcio, Dengue e Pupillo) acabando a turnê da Marisa [Monte], e com a cabeça no disco que lançamos com a Nação em 2014. Quando surgiu a proposta, era o tempo muito curto, mesmo, mas a proposta era bacana e a gente topou.
De uns anos para cá, a Nação vem espaçando o tempo entre um disco e outro…
… o que é natural, né?
…mas eu venho notando que, desde o “Fome de Tudo” (2007), a coisa vem vindo mais pop. A Nação nunca foi hermética, claro, mas o “Futura” era um disco duro, mais psicodélico, e esses três últimos – se contarmos o Split com o mundo livre s/a – estão mais cancioneiros. Isso vem de onde? De uma intenção clara, de uma busca mais comercial, da própria maturidade da banda?
Olha, a gente nunca seguiu tendência de mercado, porque a gente não toca em rádio, não aparece na TV, cara (risos). O mercado da gente é nossos shows, nossos discos. A gente faz, lança, as pessoas se identificam e aí vai. Mas acho que o amadurecimento, depois de 25 anos, nos deu uma maleabilidade na hora de compor, que é muito prático e vantajoso para a gente. Então esse último foi um disco de canções que saiu daquele jeito, mas isso não quer dizer que o próximo vai ser igual. Inclusive tenho quase certeza que não vai, porque ele tá muito diferente, muito pesado. Eu acho que a gente precisa até botar um pouco mais de calma, porque está muito agressivo (risos). Mas vai ser bom também. Vai ser Nação Zumbi do mesmo jeito. Se ele vai ser uma coisa mercadologicamente viável, isso eu não tenho ideia.
Aliás, me parece que a Nação faz parte de um grupo restrito de artistas no Brasil que têm um público fiel, tem um circuito de shows que permite que a banda se mantenha, e com isso consegue ter uma certa liberdade criativa dentro de uma realidade sustentável.
“Uma certa”, não. Eu diria uma total liberdade criativa, porque a gente pode fazer o que a gente quiser hoje. Pode até fazer um disco de sertanejo se quiser, entendeu? (risos) Porque a gente não tem que provar mais nada pra ninguém. A gente já provou pros nossos fãs, pra imprensa, todo mundo, que a banda é viável, é possível. Porque já rolou assim, não sei se uma crítica, um comentário…
Uma má vontade?
Talvez uma má vontade, sim. Tipo querer explanar essa questão de “será que vai durar?”. E estamos aqui há 25 anos.
Brasileiro adora um fracasso, né?
Adora, cara.
Parece que só o fracasso dignifica.
Parece que quando você cria uma coisa bacana, está fazendo mal aos outros. Parece que os outros se sentem mal com isso. Mas ó, véio, meu corpo é fechado (risos). Não ligo para isso não.
Vocês todos fizeram projetos paralelos. Alguns solo, outros com alguns de vocês tomando parte em bandas, como a banda da Marisa Monte e o Almaz, com Seu Jorge, ou o Dengue e Pupillo no 3na Massa. E veio aquela coisa de “será que a Nação acabou?”. Como se jornalista só tivesse um emprego! (risos) Porém, me pergunto como é conseguir se organizar de maneira prática a acomodar todos esses projetos. Alguns são muito demandantes, e a Nação Zumbi por si só já tem um tamanho considerável.
Isso é a parte mais difícil. A questão criativa é que mais dá prazer e é a mais simples. Porque quando a gente se senta para trabalhar em casa ou com alguém, as coisas fluem. Agora conciliar esses momentos é a coisa mais difícil, porque a Nação é a nossa prioridade, é onde todos nos sentimos mais plenos. A história da banda e a das nossas vidas se fundem, então não dá para separar mais, diferente de um projeto paralelo ou um disco solo. É bem complicado, porque quando um vai lançar um projeto paralelo, tem que bloquear data, aí o outro não tem projeto paralelo… Para não causar problemas, a gente tenta entrar em acordo comum e trabalhar com um único empresário, porque assim a gente consegue tocar tudo pra frente.
Já que você falou da organização interna, vamos falar de um assunto chato, que foi a saída do Gilmar, e que movimentou bastante a imprensa pernambucana, principalmente. Teve umas coisas pesadas dos dois lados…
Dos dois lados, não. De um lado só. A gente deu uma única declaração a respeito.
E como está essa situação hoje?
Do mesmo jeito (risos). Não mudou nada (risos). Cara, isso foi uma coisa interna e ele que quis tornar pública. Se quiser, pergunta para ele. Ele vai contar a versão dele, que é aquela que todo mundo já sabe. Não tenho nada a declarar a respeito dele, não.
Eu tenho uma curiosidade pessoal de saber o que aconteceu com o Gira (tamborista que foi um dos fundadores da Nação Zumbi, e que deixou a banda em 2000). Não se falou quase nada sobre a saída dele da banda.
Gira teve um problema de saúde sério, entrou numa depressão muito profunda e não conseguiu sair. Foi muito forte. Ele parou com tudo, não só com a música. Não conseguiu mais trabalhar, se relacionar com o mundo. A gente fez de tudo para ajudar, cara. Ele era um excelente percussionista, foi o melhor tambor man da banda até hoje, sem dúvida nenhuma. Ele acrescentava absurdamente nessa hora, e a gente se sentiu muito mal por ele não ter conseguido voltar a ser aquela pessoa que ele era. A gente tinha um apreço muito grande por ele e pela família dele. A gente só fica sabendo de umas notícias por fora, que a gente nem sabe se são verdadeiras.
Vocês já fizeram turnês revisitando o “Da Lama ao Caos” na íntegra, agora estão fazendo o mesmo com o “Afrociberdelia”. Se fosse para escolher um disco pós-Chico para ser reapresentado hoje, qual seria?
É pessoal. Cada um vai dar uma versão diferente. Eu acho que seria o “Nação Zumbi” de 2002, que foi o primeiro disco que a gente fez pela Trama. Aquele foi um momento muito bom pra mim, em tudo. Havia anos que a gente queria trabalhar com o [produtor] Scott Hard e a gente não tinha condições de trazê-lo, não tinha grana. Quando a gente entrou na Trama, e impôs essa condição: “OK, a gente faz um disco com vocês, mas a gente quer trabalhar com o Scott Hard”. E o João Marcello Bôscolli (presidente da Trama) disse: “Negócio fechado!” A gente trouxe o cara, ele mixou o disco, a gente ficou feliz pra caralho! Escuto o disco hoje e é um dos que mais me sinto orgulhoso de ter feito. Lógico que tenho orgulho de todos, mas esse disco em particular tem uma riqueza espiritual que… Porque assim, o “Rádio S.Amb.A” foi um disco pós-Chico. A gente não teve exposição nenhuma com esse disco, a distribuição não existiu. Porém, “Quando a Maré Encher” estourou por causa da Cássia [Eller, que gravou a faixa, original da banda Eddie, em seu “Acústico MTV”], projetou a gente mais pra frente. Quando chegou nesse disco de 2002, aí sim, a gente estava com um repertório cabuloso, com estrutura, divulgação, a banda estava coesa, a gente estava se amando mais do que nunca, rolando uma força interna muito boa… Olha, nenhum artista escuta seus próprios discos, a não ser o Jorge Ben Jor, que só escuta a ele mesmo…
E o Alceu Valença (risos).
E o Alceu. Eu procuro não ouvir muito minhas coisas, mas eu escuto esse disco sempre que eu lembro. Pena que não tenho em vinil.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Leia também:
– Lucio Maia (2014): “Minha relação é com música, eu gosto de me diversificar” (leia aqui)
Pra mim é o melhor disco deles, até hj n entendi pq aquela papagaiada no final, tantos remixes… coisa da gravadora?
Sim. Jorge Davidson é o pai da criança.