Entrevista: Cineamazônia Itinerante

por Ismael Machado

Uma das imagens mais antigas na memória de Jurandir Costa é digna de um filme do neo-realismo italiano ou do Cinema Novo. Uma pequena estrada de chão seco no árido agreste nordestino, ladeado pelo pai, que o acompanhava para dele se despedir. Ainda uma criança, Jurandir iria ser mais um entre tantos migrantes nordestinos, algo que nos dias de hoje é quase como uma sentença nazista.

Pouco mais de 20 anos depois, Jurandir Costa se tornou um documentarista respeitado e premiado internacionalmente, mesmo morando na capital rondoniense de Porto Velho. Lá, acabou por criar um festival de cinema cuja razão de ser é o meio ambiente, o Cineamazônia, que já foi FestcineAmazônia.

O festival já completou 13 anos e gerou, entre outras coisas, um filhote ainda melhor, o Cineamazônia Itinerante. A ideia é simples, mas repleta de aventura, idealismo e aptidão para a democracia cultural. Levar pequenas mostras de filmes (geralmente curtas) e apresentações de artistas como músicos e palhaços de circo para comunidades afastadas, distantes dos grandes centros, da Amazônia, Peru, Bolívia, Colômbia, África e até Portugal.

A itinerância iniciou em 2008 e se tornou uma espécie de ‘menina dos olhos’ de seu criador e da co-organizadora, Fernanda Kopanakis. Com mais de 55 mil km rodados, a mostra itinerante pretende ser reconhecida pelo Guiness, o livro dos recordes, como a que maior distância tem percorrido, seja por terra como por rios. Da fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia, Jurandir Costa respondeu às seguintes perguntas para o Scream & Yell.

Fale um pouco da tua trajetória como realizador de audiovisual.
Sou filho de agricultores, nasci no sertão em 1974 no auge da ditadura militar, numa casa sem energia elétrica no árido sertão do Cariri cearense. No nordeste me fascinavam os cinemas itinerantes e seus filmes de karatê, os miseráveis e encantadores circos e seus palhaços. Os repentistas. Me fascinava andar no escuro para ver TV na casa de amigos do meu pai. Migrei pra Amazônia, seguindo o caminho já trilhado décadas antes por meus tios, essa coisa da inquietação de buscar uma vida melhor, na minha adolescência tive experiências na área de comunicação, trabalhando com documentários e também numa precária TV pública. Voltei ao Nordeste e fiz um filme sobre um poeta que me emocionou muito quando eu era criança, Patativa do Assaré. Comecei a produzir documentários focados em temáticas amazônicas, esses filmes ganharam alguns importantes prêmios e percorreram vários festivais de cinema brasileiro e mostras no exterior como Áustria, Chile, Estados Unidos e Dinamarca. A partir dessa vivência da experiência adquirida com os festivais foi criado, em 2003, o Cineamazonia.

O que motivou a criação de uma itinerância de cinema?
O Cineamazonia foi criado nos moldes de outros festivais de cinema, com uma mostra competitiva, homenagens e também com o propósito de ser o único festival de cinema ambiental na Amazônia. A primeira experiência com itinerância surgiu a partir do resultado de levar cinema aos bairros da periferia de Porto Velho. Isso nos estimulou a olhar um pouco mais no entorno. O município é um dos maiores do Brasil, com distâncias comuns para quem vive na Amazônia. E um município tão grande acaba não estendendo ações culturais fora do perímetro urbano. A recepção foi maravilhosa, estimulando todos nós a voltarmos cada ano aos mesmos lugares. Disso surgiu a ideia de ir a outros lugares da Amazônia. Depois, descobrimos que a Amazônia não é uma só. São múltiplas. E com o apoio de órgãos como BNDES e Petrobrás, desenvolvemos essa ideia de nos aventurarmos pela Amazônia peruana, boliviana etc. Descobrimos o que nos une e o que nos separa. Tem sido uma experiência única.

Uma das coisas que talvez tenha ocorrido seja testemunhar mudanças nos locais por conta de fatores econômicos, políticos e sociais. Como tu avalias isso?
O Cineamazônia realiza um trabalho importante de documentação da memória desses espaços. Está fotografado e filmado para a posteridade o surgimento de núcleos urbanos, a morte de pequenas cidades. Tragédias ambientais. O relato das pessoas que vivenciam a tragédia dos deslocamentos urbanos, realidades inimagináveis, como por exemplo, a chegada da energia elétrica, asfalto, precárias estruturas em cidades construídas dentro de reservas ambientais, proibidas por lei. Do ponto de vista ambiental é uma tragédia, não há melhor palavra. Tudo construído na perspectiva do lucro imediato. Amazônia não é espaço para a ampliação da soja, para o cultivo da monocultura em larga escala, sem falar no avanço da pecuária. Esse é o nosso testemunho enquanto ao mesmo tempo vamos levando filmes, arte, cultura para essas comunidades, algo que cada vez mais, com esse novo governo, parece que será atacado e vilipendiado.

Como as pessoas reagem a essa iniciativa nas localidades?
As pessoas esperam o cinema chegar. É uma novidade renovada a cada ano. Lá vem o povo do cinema de novo. Uma vez por ano, a trupe do cinema também se renova. Fazemos amigos nesses caminhos e podemos, uma vez por ano, nos abraçar, falar da beleza e tragédia da vida. Uma vez, um velho de uma comunidade veio nos dar um presente no dia seguinte, pois disse que há uns 20 anos não ria. Não soltava uma gargalhada. Esse é um tipo de retorno que a gente nunca esquece.

A maioria das pessoas não tem noção do que é ser e estar na Amazônia. Como defines a importância do Cineamazônia nesse contexto?
A partir da Amazônia podemos ter uma pequena noção de Brasil, da América Latina. Somos vizinhos da Bolívia, do Peru, Colômbia, Venezuela. Quem vive na Amazônia não tem medo de lugar longe, temos a verdadeira noção de Brasil. Precisamos entender também que a maioria das pessoas que estão na Amazônia passaram pelos movimentos de migração, muitos em busca de riqueza, borracha, madeira, ouro, gado, no fundo o mito do Eldorado continua presente no imaginário. Acostumamos a enxergar o Brasil do tamanho que ele é. O Cineamazonia é um festival de cinema que traz pras comunidades filmes com a temática ambiental em sua maioria focadas na formação de um – utópico – olhar, com uma atenção toda especial nas crianças.

– Ismael Machado é repórter especial do Diário do Pará e está lançando o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui
– Fotos por Avener Prado / Cineamazonia 2016. Mais: www.facebook.com/Festcineamazonia

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