Entrevista: Criolo

por Marcos Paulino

Há uma década, Criolo era Criolo Doido. Fazia 18 anos que apostava numa carreira como rapper, sem sucesso. Mas continuava na luta. Tinha dado início à Rinha dos MC’s, um mix de batalhas de freestyle, shows, exposições de grafite e fotografias. E lançava seu primeiro álbum de estúdio, “Ainda Há Tempo”. “Mercúrio nos rios, diesel nos mares, o solo estéril, é já fizeram sua parte”, ele cantava em “Chuva Ácida”; “São Paulo é uma farsa, ação desesperada, não investiram na educação, huh, agora paga”, diz a letra de “Tô Pra Vê”. Era 2006.

“Ainda Há Tempo” foi bem recebido, mas não trouxe grande reconhecimento, que só viria em 2011, quando, já apenas como Criolo, disponibilizou seu segundo trabalho, “Nó na Orelha”, gratuitamente na internet. Misturando rap com MPB, funk, soul e blues, conseguiu chamar a atenção da crítica, inclusive estrangeira. Ganhou elogios de gente como Caetano Veloso e Milton Nascimento, participou de programas da Rede Globo e foi um dos campeões de indicações ao Video Music Brasil 2011 da MTV. Assim sua carreira deslanchou.

Vieram “Convoque Sua Buda”, de 2014, reafirmando o poder de sua voz, e “Viva Tim Maia!”, o disco e a turnê divididos com Ivete Sangalo. Mas Criolo seguia achando que “Ainda Há Tempo” merecia mais uma chance. Deste modo, para comemorar os 10 anos de seu lançamento, ele e seu fiel escudeiro Daniel Ganjaman juntaram produtores e parceiros, como Nave, Sala 70, Papatinho, Tropkillaz e Marcelo Cabral, e regravaram 8 das 22 faixas do disco, disponível gratuitamente para download. Abaixo, ele relembra a época e fala do sucesso de “Nó na Orelha” em papo com o Mundo Plug, parceiro do Scream & Yell.

Quando você compôs “Ainda Há tempo”, o rap vivia um mau momento, e seu amigo Sabotage morrera três anos antes. Como você se lembra do cenário daquela época?
Lembro todos os dias da minha vida. Era carinho, amor, por RZO, por Sabotage, Consciência Humana, Sistema Negro e tantos grupos de rap daquela época, que foram verdadeiros professores pra mim. Junto a isso, o sonho de fazer um disco. Uma dificuldade muito grande, uma pobreza muito grande, passando muita necessidade em casa, mas nunca me distanciando do sonho.

Como você se sentia, sabendo que tinha um material com muito potencial, que era apreciado por muita gente, mas que não tinha um resultado comercial?
Mas isso não é problema. O rap te dá ambiente pra você viver tantas histórias dentro da música, o hip hop lhe oferece um ambiente positivo tão grande, que o nosso sonho era fazer um disco porque era um sonho. Não tinha uma ligação com algo comercial. Esse é o sentimento que carrego comigo até hoje, a possibilidade de dividir sons, a necessidade de se expressar e de desabafar. É isso que move a gente. Foi um disco feito depois de quase 18 anos de caminhada. Era um pequeno recorte de uma série de histórias que vêm desde 1987.

Em 2011, quando lançou “Nó Na Orelha”, você disse que seria sua última tentativa na música, que pensava em parar. E foi justamente esse trabalho que projetou sua carreira. Como foi viver essa mudança tão brusca?
Foi uma coisa muito louca que aconteceu na minha vida. Com mais de 20 anos de carreira, reuni os amigos, fiz uma apresentação, fizemos um DVD, que era meio que uma celebração e um muito obrigado, até logo. A vida era muito dura. Eu e o Dan Dan fazíamos a rinha dos MC’s e terminávamos o evento cada um com R$ 30, R$ 20. Era o dinheiro de tomar um lanche, uma vitamina, um pão na chapa, um pão de queijo e voltar pra casa. Era um muito obrigado a todos os ensinamentos que o rap me deu, a toda boa energia, a todos os amigos, a tudo o que a gente viveu. Eu não iria conseguir mais protagonizar palcos. Aí um grupo de amigos se juntou pra fazer um documento de músicas que eu tinha, já que eu iria parar de cantar. No meio desse caminho, nasceu o “Nó na Orelha”. Inacreditável. Um registro que seria pra mim e pra minha família acabou virando o “Nó na Orelha”.

Foi esse trabalho que levou seu som ao conhecimento de grandes nomes da música brasileira. Como foi conseguir o reconhecimento de gente como Caetano Veloso e Milton Nascimento?
Foi uma surpresa muito grande, muito positiva, celebro isso. Jamais imaginei que Milton e Caetano se tornassem ouvintes do som. E que depois de um tempo a gente seria amigo, colega, que iria se ver, se abraçar, falar, conversar de coisas da vida. Imagina que você amanhece o dia e tem uma mensagem do Milton Nascimento, “como é que você tá moleque, dá um salve aqui”. Aí você liga pro cara, ou vai na casa dele e dá um abraço. Meu pai do céu! Tem horas em que você esquece, está ali no dia a dia, no corre, mas de repente: “Caramba, é o Milton Nascimento! Parem as máquinas!”. Mas na beleza, na simplicidade dessas pessoas deixarem tudo mais leve, mais tranquilo. A solidariedade desses caras é espetacular. E a gente vai vivendo a vida.

O que mudou na sua vida antes e depois do “Nó na Orelha”?
Olha, vou lhe falar. A perna já não estica mais. Dos 30 pros 40, a gente acha que não tem um salto, mas tem. Colágeno, colágeno! É o tal do colágeno! É bom a gente brincar com isso, deixar mais leve, mas o assunto é bem sério. Hoje com 40, percebo que tenho muito mais coisas pra aprender do que achava quando tinha 30. E isso é maravilhoso, você dá valor às coisas, às pessoas, às conquistas, às derrotas, tudo tem um sabor diferente.

Como foi a escolha dos produtores e intérpretes que participariam do novo “Ainda Há Tempo”?
Tudo muito tranquilo. Foi ideia do Ganja, que é diretor musical. É um grupo de jovens que a gente já admirava, meninos de grande talento. Foi muito natural.

Quando a primeira versão de “Ainda Há Tempo” foi lançada, o Brasil vivia um momento bem mais tranquilo que o atual. Você acredita que, mesmo assim, as mensagens das músicas continuam atuais?
Porque são canções que falam de esperança, de fé no nosso povo, na nossa boa energia. São músicas que relatam uma crueza dos fatos, que falam da verdade que acontece no Brasil que muita gente ignora que existe. A vontade seria de que não fosse tão atual assim, porque o disco fala de muita coisa errada que a gente já enxergava lá atrás e que quem é de quebrada sabe como é. Então talvez seja atual por isso, porque tem coisas que teriam toda a capacidade de mudar pra melhor e ainda não mudaram.

Você fez uma recente turnê pela Inglaterra e já teve a oportunidade de ir outras vezes ao exterior. Te angustia ver como muitas coisas funcionam lá fora e aqui não?
Não vamos nos enganar, as desigualdades sociais acontecem em qualquer lugar do mundo. Talvez não financeiramente, mas na questão emocional, na questão de racismo, da diferença de castas. Não vamos achar que a terra do outro é melhor do que a nossa. Temos uma tendência de diminuir nosso povo, nossa terra. Nosso povo é maravilhoso, cheio de luz, cheio de brilho. O que acontece de diferente talvez é a concepção de construção social.

Musicalmente falando, o que a convivência com outras culturas pode agregar ao seu trabalho?
Vou ser bem sincero. Nessa convivência com tantas culturas, tantas energias, tanta música, tantas ideias e olhares tão diferentes de mundo, só me fortalece uma coisa: como foi bom ter o seu Cleon e dona Vilani, meus pais, na minha vida. Viver esse paradoxo da desgraça, de crescer num barraco, com todo tipo de sofrimento que você possa imaginar, e ter um povo tão lindo do teu lado, te dando amor e carinho, só fortaleceu a ideia de que quem esteve ao meu lado nos meus primeiros anos de vida fez toda a diferença.

Vai ser possível juntar a galera toda que participou do novo disco para os shows da turnê? Como será o novo show?
O show ao vivo está acontecendo com o DJ Dan Dan, que é patrimônio do hip hop do Brasil, e o DJ Marco, que é uma pessoa maravilhosa, um grande DJ e um grande pensador nosso. A direção musical é do Daniel (Ganjaman) e a direção de arte do Alexandre Orion. A gente brinca que são 120 anos de hip hop em cima do palco. E tem também essa coisa do jovem poder ver um show old school, que já rolava quando ele nem era nascido. Manter esse escambo cultural é muito bom.

Marcos Paulino é editor do caderno Plug (www.mundoplug.com), da Gazeta de Limeira.

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