Cinema: Tudo sobre Vincent

por Leonardo Vinhas

Se você lê a síntese “filme francês independente cheio de paisagens bucólicas sobre cidadão com superpoderes” e não tem a sensação de que estará diante de algo com uma boa dose de esquisitice, das duas uma: ou você é uma pessoa de mente muito aberta, ou a sua cabeça é tão imprecisa quanto à do diretor, roteirista e protagonista da película, Thomas Salvador.

Misturar “cinema de autor” e a recente tendência dos filmes modernos de super-heróis parece uma ideia contraditória, mas Salvador quase consegue precisar os elementos da equação em vários momentos de “Tudo sobre Vincent” (2014, com estreia agendada para 02/06 no Brasil). O problema, como bem definiu um companheiro de sessão, é que Vincent é “um super-herói sem charme”, e essa é uma ausência que faz falta para o resultado final.

Assim como Bruce Banner, o alter ego do Hulk, Vincent vive como um nômade, procurando comunidades pequenas e cercadas por água para viver a vida mais anônima possível. Explica-se: em contato com a água, ele fica até 100 vezes mais capaz, física e intelectualmente, que um ser humano comum. Assim, estar molhado é uma experiência ao mesmo tempo transcendental e tranquilizadora, de modo que ele prefere vivê-la sozinho, sustentando-se graças a trabalhos que não envolvam exposição pública desnecessária nem de suas habilidades particulares.

Logo de cara, Vincent encontra uma pequena e agradável cidadezinha, e ali se estabelece numa pequena firma de construção civil. Aos poucos, vamos conhecendo detalhes de sua rotina, e nesse primeiro ato ficam evidentes os maiores méritos do filme: a escolha de locações apaixonantes (a maioria delas de Gorges du Verdon), tratadas com uma fotografia muito particular, e a narrativa quase 100% imagética, dispensando as palavras e tratando as cenas como os quadros de uma HQ, de modo que aquilo que se vê basta para compreender a trama principal.

O segundo ato vem com a aparição de Lucie (a serelepemente sensual Vimala Pons), uma jovem local por quem Vincent se apaixona e é correspondido. Vincent vai saindo do seu casulo para trazer Lucie para dentro de sua intimidade, e aí seus poderes adquirem um caráter de curiosidade da relação a dois. Lucie incorpora a “esquisitice” à sua vida naturalmente, e o arredio Vincent começa a querer fincar raízes no vilarejo – até, claro, que acontece uma merda que irá forçá-lo a mudar radicalmente sua vida. É quando vem o terceiro ato, e o aspecto super-heróico domina a projeção, com perseguições, saltos espetaculares e até uma dispensável saída “deus ex machina”.

Apesar dessa estrutura tradicional (e até caretinha), nunca fica claro se o filme é uma homenagem ao universo super-heróico, uma elegia da simplicidade frugal ou um exercício de vaidade de Salvador. O título nacional equivocado também não ajuda: sacanagem o nomear a obra de “Tudo sobre Vincent” se ela termina sem que saibamos muito mais sobre ele. O que fica claro é que, em momento algum, Vincent quer usar seus poderes para algo maior do que fazer bem a si mesmo. Sequer passa por sua cabeça adotar a atitude metida a samaritana, mas ao mesmo tempo vigilante e intrometida, dos heróis da Marvel e da DC. Nem mesmo lucrar com sua habilidade é cogitado: Vincent quer apenas manter-se perto da água e viver sem ser incomodado.

A falta de empatia com o personagem (ou sua ausência de charme) e a expansão do terceiro ato para além da duração recomendável são os principais obstáculos para que “Tudo sobre Vincent” seja um pequeno grande filme. As cenas em que “o herói que não é herói” usa seus poderes são simples e muito bem filmadas, porém as citações a filmes da Marvel (incluindo a “cena do beijo” do primeiro “Homem-Aranha”) podem tanto agradar como irritar – vai da boa vontade e do nível de “fanboyzice” do espectador. Poderia ser uma divertida e simpática obra sobre aceitar seus limites e viver menos de acordo com as expectativas alheias, e mais consonante com a vontade interior. Bastava apenas um pouquinho menos de espetáculo no final. Mas como todo filme de superseres tem sua continuação, quem sabe fica para uma próxima…

Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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