por Leonardo Vinhas
“O Escaravelho do Diabo” foi publicado originalmente como uma narrativa em série na revista O Cruzeiro em 1955, mas foi a partir de sua republicação como livro, em 1972, que começou a conquistar uma legião de fãs. Na verdade, a obra de Lúcia Machado de Almeida tornou-se um dos maiores sucessos da literatura infanto-juvenil brasileira: está em sua 27ª edição e é o segundo título mais vendido da Série Vagalume, coleção de livros publicada pela Editora Ática cujas vendas somam quase 8 milhões de exemplares. O livro ficou gravado na memória de várias gerações de jovens leitores que, até então, não estavam acostumados ao termo serial killer, e que sentiam verdadeiro terror diante da gratuidade dos crimes de um psicopata dedicado a matar ruivos na pequena cidade interiorana de Vale das Flores.
Adaptado para o cinema pelos roteiristas Melanie Dimantas e Ronaldo Santos com direção de Carlo Milani (cujo currículo inclui os programas Big Brother Brasil e The Voice Brasil, além de algumas novelas e episódios de Tomara que Caia e Malhação), “O Escaravelho do Diabo” em celuloide só assusta quem espera por um bom filme, que respeite a obra original e a inteligência do espectador. Sua estreia no cinema, nesta quinta-feira, 14/04, exibe resultados inversamente proporcionais às suas boas intenções.
É possível entender que um entusiasta do livro se incomode com várias alterações feitas na narrativa: a cidade onde a trama se desenrola é a fictícia Vale das Flores, e não a paulista Vista Alegre; a pensão de Cora O’Shea foi excluída da trama; a personagem Verônica, antes uma órfã, passa a integrar a família de uma das vítimas, entre outras mudanças. Porém, são adequações que podem ser entendidas como necessárias para fazer as 128 páginas do livro caberem em uma hora e meia de filme. O problema está na realização cinematográfica mesmo.
A “troca” de protagonistas já é um entrave –Alberto, no original literário um jovem estudante de medicina, agora é um adolescente gordinho e quase infantil; seu irmão Hugo, a primeira vítima do serial killer, é o garotão da vez. O objetivo, claro, é criar empatia com o espectador mais jovem, e até poderia funcionar, se houvesse um roteiro consistente, uma direção de atores digna e uma direção geral que não funcionasse escorada apenas em clichês. Como você já deve ter deduzido, nenhum dos três deu as caras.
“Não seria possível começar um filme infanto-juvenil com o assassinato de um garoto de 12 anos no primeiro ato”, disse o diretor Carlo Milani na coletiva de lançamento do filme. A preocupação com a classificação indicativa era grande, por isso a mudança substancial no protagonista e a inserção de elementos contemporâneos (celulares, pesquisas na internet) para tentar “atualizar” a obra. Só que tudo é feito de forma caricata: dá para acreditar que as habilidades detetivescas de um garoto de 12 anos se desenvolvem porque ele assiste muito CSI? Uma animação simulando um videogame, usada para “ilustrar” um sonho de Alberto, chega a ser especialmente constrangedora.
Outra inserção forçada à modernidade são as menções a assuntos do dia a dia escolar, verdadeiros hits de reuniões pedagógicas, como bullying e déficit de atenção. O primeiro é “jogado” na trama como o causador das motivações do criminoso, e vem de forma tão descuidada que acaba não sendo crível. O DDA, por sua vez, é apresentado cansativamente na introdução do personagem Alberto e depois é completamente ignorado. Ah, sim: durante essa introdução de Alberto, o filme simplesmente “se esquece” da trama: nada acontece para que o mote seja percebido pelo espectador que não leu o livro.
Outras inconsistências vão se somando: o fato de os pacotes com os escaravelhos, a “senha” que anuncia quem vai ser morto, serem mandados pelo correio e nenhum policial se lembrar de checar os envios postais; a escolha de cada inseto para identificar a forma como a vítima vai ser morta também se perde depois da segunda morte; a capacidade do assassino em planejar os crimes até mesmo levando em conta os imprevistos… Para não falar da mãe de Alberto e Hugo, que é crucial para o primeiro no começo do filme e depois aparece menos que adulto nos desenhos do Peanuts.
Boa parte dos diálogos originais não é aproveitada. Com um elenco que acumula desacertos, isso rende um resultado desastroso. No papel de Alberto, Thiago Rosseti não tem o carisma necessário para estar à frente do filme, e sua relação com o delegado Pimentel (um subaproveitado Marcos Caruso) não se desenvolve. Bruna Cavalieri, como o “interesse romântico” de Alberto, atua em modo “peça de teatro do colégio”. A Lourenço Mutarelli coube o papel do psicopata, e ele o faz com grunhidos e uma narração em off incompreensível. As exceções ficam para Jonas Bloch (padre Afonso), Bruce Gomlevsky (um jornalista que cobre os crimes) e Selma Egrei (como a esposa de Pimentel), que fazem o que podem com o pouco que lhes foi dado.
Carlo Milani cozinha essa receita desandada com mão pesada, abusando de clichês narrativos e visuais, como se não confiasse que o espectador não é capaz, por exemplo, de entender que Raquel é a paixonite de Alberto se não mostrá-la com o cabelo esvoaçante em câmera lenta. Ou que ele precisasse de uma recapitulação dos crimes no final, caso não tenha ficado claro que o assassino confesso foi o autor dos crimes. Nesse panorama, não é de se surpreender que nem a trilha sonora original de BID funcione.
Pode até ser que, com todos esses problemas, “O Escaravelho do Diabo” encontre receptividade no público, considerando que o cinema brasileiro tem tido nos filmes de Roberto Santucci (“Até que a Sorte os Separe”, “Loucas pra Casar”, “Um Suburbano Sortudo”, essas coisas) algumas das maiores bilheterias da sua história. Porém, é desalentador que um livro tão coeso e cativante tenha virado um filme tão aguado e sem carisma.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.