por Leonardo Vinhas
É perfeitamente possível que na memória musical de alguém, as obras de AC/DC, Charly García, Jaime Roos e chacarera ocupem o mesmo espaço. Que de alguma maneira essas influências se combinem para dar luz a algo coeso, envolvente e pop já é bem menos provável, mas o multiinstrumentista e compositor uruguaio Rodrigo Ortiz o conseguiu com seu álbum “Gallo”, lançado em 2015.
Ortiz tinha apenas um disco solo lançado (“Evolutando”, de 2000), mas já tocara com muitos músicos conhecidos de seu país além de ter trabalhado como profissional de som para cinema na Argentina. Embora competente, seu álbum de estreia não deixava antever o resultado que atingiría em “Gallo”, disco registrado em tranquilas e relaxadas sessões no estúdio que montou em sua casa, o Gallinero. Se os nomes do CD e do estúdio indicam uma obsessão galinácea, cabe acrescentar que a canção “Madre de Todo o Destino” ainda traz a participação de Nilsa, uma de suas galinhas de estimação, entregando um cacarejo que não faria feio em um registro de Hermeto Pascoal.
Contudo, “Gallo” vai além do exotismo de convidadas penosas. Musicalmente, ele se situa entre o blues, a música popular uruguaia e o rock argentino, com espaços para as mais variadas formas de folclore dos países mais ao sul do continente. Na sequência que abriga “Perdido”, Echarpatrás” e a faixa-título é possível enxergar um resumo adequado dessa combinação, com o groove blueseiro da primeira, a malemolência irónica da segunda e o peso climático da última. Mas o disco reserva mais bons momentos, como a já citada “Madre de Todo o Destino” (uma balada na qual a “voz” de Nilsa duela com violino), a murga roqueira e sincopada “Rio”, a delicadeza comovente de “Manifestarte” e as harmonias vocais “fiteras” (no sentido Fito Páez da coisa) de “Entrevero”.
Na entrevista a seguir, Ortiz repassa sua carreira musical, detalhando o caminho que o levou até o resultado conciso e acertado de “Gallo”, e conta bastidores da gravação que vão deliciar quem é apaixonado por experimentações de estúdio.
Quais são suas origens musicais? Onde começa a estrada que te levou ao “Gallo”?
Minhas origens remontam, penso eu, a uma situação “in utero” (risos). Minha mãe era professora de piano na cidade de Paysandú, no litoral do Uruguai, e exercia sua profissão em casa ainda durante suas gestações. Quer dizer, as horas de exercícios de piano para seus alunos de conservatório já eram parte da minha primeira aproximação à música. Por volta dos seis anos comecei a ter aulas de violão e a experimentar com esse instrumento. Era uma escola de Julio Siqueira, pai de Cecilia Siqueira, que hoje é integrante do duo de violões Siqueira-Lima. Passaram ainda professores como Osvaldo Sanguinett, César Viola, Esteban Klisich, Jorge Nocetti, e então me arrisquei em grupos, primeiro com meu irmão Mauricio, que é saxofonista e integra a banda No Te Va Gustar (nota: possivelmente a maior banda do pop uruguaio atualmente). Por volta dos 13 ou 14 anos, comecei a compor, de ouvido, ao piano. Foi natural e espontâneo. Mais tarde, fui morar em Montevidéu e formei um duo com Ana Prada (nota: famosa cantora folk uruguaia), que teve uma linda trajetória. No começo dos anos 90 toquei e compus para a banda Observadores de Árboles. Lá pelo final dos anos 90 paramos de tocar, eu comecei a brincar com um computador e a gravar na minha casa. Foi aí que saiu meu primeiro disco solo, “Evolutando”, em 2000, só de maneira virtual.
Admito que eu não tinha nem conhecimento da existência desse disco.
Pois é. Para “ajudar”, era uma época em que a internet não tinha nem a velocidade nem as características que tem hoje. Lembra daqueles ruídos que o modem fazia ao se conectar? Weeerrrrrggegegeeerrrrpiiiipiiiiiiii… (risos). Era essa época. Para baixar cada faixa levava um tempão… Mesmo assim, nunca foi editado fisicamente. Não foi uma ideia muito boa (risos). Não montei uma banda para tocar, ficou por isso mesmo. Então fui morar em Buenos Aires, e ali fiquei por oito anos. Ainda que eu continuasse compondo, me dediquei a estudar sonorização e trabalhei com som para cinema: pós-produção, som direto etc. Mas nesse meio-tempo algumas composições minhas foram gravadas por bandas de amigos . Por exemplo, o pessoal do La Triple Nelson, que gravou “Extraño”, que acabou em três discos deles: um de estúdio, um ao vivo e outro com a Filarmônica de Montevidéu. Mas eles gravaram outras minhas em outros discos – no último, “La Sed”, tem uma chamada “Contenido Cero”.
E então…
E então voltei para o Uruguai. Faz três anos. Apresentei ao Fondo Nacional de la Música um projeto para gravar un disco, e recebi o apoio deles. Com o impulso emocional por ter voltado ao país, e o financeiro do Fondo, nasceu “Gallo”. Respondida a questão? (risos)
Falemos, então, das gravações. O encarte do disco aponta um período longo. Foram sessões intermitentes ou de fato passaram tantos meses trabalhando o disco?
Eu já vinha gravando demos e trabalhando nelas, de modo que mais da metade das canções já estavam bem resolvidas quando recebi o apoio [financeiro]. Como não tenho uma banda, toco todos os instrumentos para gerar a ideia. Pablo Rey cuidou da produção artística nessas demos e nas faixas que faltavam, me ajudou a descartar alguns temas, a organizar as ideias e colocar os pés no chão, a por tudo no papel e não perder o conceito principal. Quando tudo estava pronto nesse aspecto, foi uma semana para gravar as baterias e instrumentos de percussão – muitas das quais acabaram sendo aproveitadas das próprias demos. Garrafas, paus, latas foram sendo agregados, ou mesmo substituíram o que já tinha sido feito. E o resto foi gravado intermitentemente, mesmo. Os instrumentos de coras – guitarras criollas, baixos, bandoneón, baixo acústico, harpa paraguaia etc – foram também usados de forma tentativa, e embora algumas faixas tivessem nascido com o som de um determinado instrumento em mente, os resultados de cada teste chegou a modificar completamente algumas canções. E houve os convidados. Cada um passou uma tarde inteira no estúdio – que é na minha casa mesmo, montei um pequeno estúdio ali, que batizei de “El Gallinero” (risos). Isso ajudou para que as sessões com os convidados fossem muito relaxadas, divertidas e harmoniosas.
As influências são identificáveis, mas não “setorizadas”. Não dá para dizer em nenhuma canção: “isso é rock”, ou “isso é murga”. A mistura é bem orgânica, inclusive nas estruturas – que combinam influências mais acadêmicas com musica más intuitiva. Foi reflexo desse processo de gravação, ou é consequência das suas influências?
As influências se integram naturalmente nas composições. Há sensações e emoções que se transmitem melhor com determinados ritmos. E aí vem desde meu primeiro cassete, que foi “Who Made Who”, do AC/DC, até o rock argentino da década de 90 – que era o que tocava na rádio e nos bares de Paysandú. Depois vem o candombe e a música popular do Uruguai, quando fui morar em Montevidéu. E pela proximidade e influencia, a música do Brasil também. O estudo de violão me levou à bossa nova. Meu período argentino me permitiu trazer ares de chacarera, zamba, bagualas. Com o tempo, as coisas que eu queria dizer foram se apoiando nisso tudo que a vida se encarregou de misturar. É tudo intuitivo. E emocional.
O trabalho percussivo do disco me chamou atenção. Você disse que muito já vinha das demos, mas o encarte mostra a constante participação dos músicos Javier Sopra Viera y Santiago Acosta. Quanto eles contribuíram para essa identidade percussiva?
De fato, a na maioria dos casos a ideia rítmica era parte das demos. Foi todo um trabalho de despojar-se dos ritmos estruturais e trabalhar a ideia rítmica a partir do que sugeria a canção. O conceito que guiei foi o de agregar à canção com os elementos de percussão e não montar a faixa a partir de um ritmo pré-estabelecido. Não sei se isso se entende tão bem mas… Bem, depois os músicos deram “vida” a essas ideias, enriquecendo-as e potenciando-as. Em todos os casos a ideia era gerar um “bloco” e colocar a bateria no mesmo nível dos elementos de percussão, e não mais forte. Mas no fim, muito do que está ali é resultado da busca sonora que aconteceu durante o registro das demos: por não contar com uma variedade de instrumentos, procurei o resultado desejado com o que eu tinha à mão. Eu uso uma lixa de parede, por exemplo…
Isso aparece não somente na percussão mas em todo o disco: o uso de instrumentos incomuns. Tudo foi aparecendo no estúdio?
Em relação a outros instrumentos, tudo partiu da base da guitarra criolla, que é a origem das canções. Os instrumentos menos originais já estavam na minha cabeça quando compus, era questão de experimentar para ver se funcionariam de verdade. Foi o caso do didgeridoo que minha amiga Agustina Mosca gravou em Paris e depois me mandou. Ou da harpa paraguaia, do bandoneón… Nada foi gravado na demo. Nem a galinha! (risos)
Bem, é importantíssimo perguntar: como aconteceu a participação da Nilsa? Ela se portou bem (risos)
Nilsa era uma das galinhas que tínhamos por pedido da minha filha mais nova. Eu estava editando um violino que Agustina Shreider tinha gravado para “Madre de Todo Destino” quando, fora de casa, a galinha se pôs a cantar depois de ter botado seu ovo. O cacarejo de sempre. Nesse momento [o cacarejo] entrou perfeitamente no ritmo e tonalidade da música, e além disso ele caía muito bem para o ar de chacarera. Foi um achado, uma casualidade, ou causalidade assombrosa e maravilhosa. Estava no tempo e na tonalidade. Então tirei um microfone do estúdio, levei para o galinheiro (que fica ao lado, daí o nome), e esperei pelo próximo ovo. Gravei o cacarejo do começo ao fim. Aos poucos a intensidade vai diminuindo e coloquei-o desse jeito na canção. Não editei quase nada. Só no final eu copiei o cacarejo do começo, que é mais enérgico. Lamentavelmente ela morreu um tempo depois. Mas ficou imortalizada (risos).
A participação da Nilsa me fez pensar no brasileiro Hermeto Pascoal. Conhece o trabalho dele?
Sim, eu já conhecia o trabalho dele com animais no estúdio. Uma maravilha. A diferença é que Hermeto provavelmente pensa nisso antes (risos). O meu foi fortuito (pausa). Casual. Se tivesse cantado – cacarejado – enquanto eu trabalhava em outra canção eu talvez não tivesse reparado nela.
Como você vai divulgar o disco no Uruguai? Vai ter banda dessa vez? (risos)
Sim, está formada a banda. Dois percussionistas, dois guitarristas e um baixo. Essa é base, mas podemos somar convidados. Temos shows para o verão e estamos preparando a apresentação do disco para o meio do ano em algum espaço a definir de Montevidéu, chamando a maioria dos que participaram da gravação. Estamos armando também uma série de shows no interior: Paysandú , Salto, Artigas. São lugares onde o disco vem tendo uma repercussão muito boa, com difusão nas rádios.
Isso é uma boa surpresa, pois é uma obra praticamente independente – no sentido de ser desvinculada da rota mais comercial, mesmo com algumas canções de tons pop. OK, tem o apoio do Fondo, mas o trabalho é mais autoral e ousado.
É uma produção independente, sim. Felizmente rádios nacionais como FM del Sur e M24 FM se dedicam a difundir música local. Aos poucos o material vai sendo ouvido, vários programas estão se interessando e me convidam para falar sobre o trabalho e apresentá-lo aos ouvintes. Minha ideia é continuar contactando pessoas que se envolvam com gestão e produção para armar projetos destinados a buscar canais de desenvolvimento nos fundos de cultura, como contatos para festivais regionais ou de fusão na América Latina.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.