por Leonardo Vinhas
Quando uma banda é batizada com o título de um dos filmes mais violentos e intensos de Martin Scorsese já é um indício que o som não vai ser uma audição suave. Sabendo que as influências iniciais da banda estão principalmente no pós-punk, com suas guitarras graves e percussão tribal, o indício vira certeza. Pois os uruguaios Buenos Muchachos – nome espanhol para o “Goodfellas”, ou “Os Bons Companheiros” por esses lados – não são banda de ganhar o ouvinte na primeira audição. Mas responda honestamente: fã de música é o tipo de pessoa que desiste na primeira audição?
A persistência recompensa. A música dos Buenos Muchachos é densa, mas não impenetrável. Não nega a herança de Joy Division, Killing Joke e outros, mas ao mesmo tempo é inegavelmente uruguaia, evocando imagens e sensações que se avistam tanto no horizonte cinza de Montevidéu como no verde estático das paisagens rurais. Pode até mesmo ter aspirações pop, como já provou o sucesso que a canção “He Never Wants to See You (Once Again)” – tirada de “Amanecer Búho”, álbum mais premiado e único disco de ouro da banda em seus 25 anos de carreira, completados neste 2016.
Em 2015, a banda lançou “Nidal”, seu sétimo álbum. Diferente do antecessor, o duplo “Se Pule la Colmena” (2011), esse traz mais silêncios que garantem frescor às canções, além de maior concisão cancioneira. “Bella y el Bestia”, por exemplo, é quase uma balada, com a voz rouca e rugosa de Pedro Dalton se sobrepondo à delicadeza instrumental, que tem ecos tanto de Vini Reilly como do Sonic Youth. Já “Se Hizo Bosque ese Desierto” é tão bucólica quanto seu título sugere. Claro, ruídos e dissonâncias não foram embora (ouça “Sloane” e “Si Barre”, por exemplo), mas o clima já não é mais apenas de tempestade ou desolação.
Em plano igual estão as letras. Sempre um destaque da banda, a poética de Pedro Dalton – também escritor, desenhista, ator bissexto e pintor de paredes (!) – retrata o mundo interno de seus personagens (ou dele próprio) com pungência e afeto, sem jamais escapar para os extremos do desprezo ou da condescendência. Todas as figuras são humanas, mesmo aquelas – como transexuais e prostitutas – que a “gente comum” insiste em desumanizar. Dalton e o baterista José Nozar (vulgo “Negro”) conversaram por Skype com o Scream & Yell para apresentar o que está por trás das histórias e sons de “Nidal”, comentar os três shows em solo brasileiro em 2015 e falar sobre a “não-celebração” do jubileu de prata da banda.
Montevidéu é uma cidade com prédios antigos, dias fechados, é muito maior que qualquer outra cidade do resto do Uruguai – então fica aquela percepção de que é uma cidade onde as pessoas se fecham em seus apartamentos, ao contrário da vida em casas no interior. E a música do Buenos Muchachos é densa, muito introspectiva. O quanto Montevidéu influencia a banda?
Pedro: Acredito que impacta total e diretamente, não só nas letras, mas também na música. Na primeira vez em que fomos para Buenos Aires, em 2004, ficamos um mês inteiro por lá. Era agosto. Em uma entrevista, o repórter nos perguntou exatamente isso: se Montevidéu fazia alguma diferença para nós enquanto compositores, e já ali eu respondi que a música do Buenos Muchachos jamais teria existido se fôssemos originários de Buenos Aires. Ali [na capital argentina] não se pode meditar. Não tem um espaço gigante para você andar e deixar seus pensamentos se estenderem, como as ramblas (nota: longas calçadas que acompanham a orla marítima). Todos sempre estão nos carros, nos ônibus, e se estão nas ruas, estão apressados. Montevidéu, além das ramblas, tem as praças, os parques. São muitos lugares para introspecção
José: A música representa o lugar onde ela se gerou. E veja, ela também pode marcar uma transformação. Você pode mudar de vida através da música, e se você parar para pensar, aqui em Montevidéu não há quase mais nada que possa permitir uma grande mudança. As coisas aqui seguem a mesma rotina, seguem sua mesmice. Então a música pode fazer você olhar sua vida por outro viés e te encorajar a promover uma transformação.
Pedro: Por um lado eu acredito nisso também. Buenos Muchachos tem um lado bastante uruguaio. No cenário pós-ditadura em que nós da banda nos formamos musicalmente, havia esse som “oitentoso”, muito particular do período. Nós investigávamos outros estilos musicais, claro, mas esse era o som que ouvíamos. Só que as bandas dessa época no Uruguai tinham um som muito ruim, porque os técnicos de estúdio eram um pessoal que gravava jingles, não estava habituado a referências. Não havia uma cultura rock, ao contrário da Argentina, que já nos anos 1970 tinha Charly García, Luis Alberto Spinetta, gente que já tinha ajudado a criar uma cultura rock. Então ouvíamos o som desse período de uma maneira muito particular, que talvez só existisse por aqui.
Interessante você falar nisso, porque algum tempo atrás entrevistei o Tússi DeMatteis, do La Hermana Menor (nota: banda da qual Nozar também faz parte), e ele me disse que antes o rock uruguaio era tipicamente uruguaio, haviam elementos que tornavam as bandas claramente pertencentes ao país, uma singularidade muito marcante. Só que, ainda segundo ele, de uns anos para cá isso vem mudando, as bandas cada vez mais se parecem com o som dos EUA ou da Inglaterra. Vocês concordam com a visão dele?
José: Nos Buenos Muchachos somos muito particulares quanto à investigação do entorno. Somos muito de refletir o ambiente, o momento, isso tudo. E também acabamos convivendo com as bandas que têm essa mesma relação, então é como se estivéssemos mais próximos dos “assemelhados”. Logo, não vemos isso, mas talvez não sejamos as melhores pessoas para opinar. Capaz que Tússi tenha uma visão geral maior que a nossa – afinal, ele é crítico de cultura (do jornal La Diaria), e tem acesso a muito mais coisas que nós. Da nossa parte, estamos mais fechados para o nosso lado, então não vemos nada assim.
Ainda sobre o som da banda: é muito comum ver a música de vocês ser associada com adjetivos como “escuro”, “denso”, “sombrio”, “depressivo”. Mas existe muita luz nas composições da banda, em especial nesse último disco. “A Mi Manera”, “Sol Torquelado” e, principalmente, “Bella y El Bestia”, têm grande afeto por seus personagens, apontam para coisas muito bonitas. Eu quero saber se esse olhar tão próximo e afetuoso aos personagens é algo deliberado.
Pedro: Sim, um pouco. Esse foi o primeiro disco em muitos anos em que dividi as letras com Marcelo e com Topo. Havia uma alegria geral, um clima de encantamento, e isso nos levou a sair da escuridão. Eu gosto, sim, da melancolia, porque ela transporta a lugares mais íntimos e mais reflexivos do ser. “Bella y El Bestia” tem a ver com o ofício de prostituta, e eu queria ver mais o lado da mulher, olhar para essa mulher que trabalha com isso e que tem um parceiro que não a entende, mas que talvez se venda mais que ela. Mas enfim, também foi diferente o processo de composição. Antigamente eu escutava os temas e escrevia em cima deles. Agora foi mais o caso de sentarmos juntos para falar sobre o clima e a intenção das canções, e realmente compormos juntos.
“A Mi Manera” me chamou muito a atenção porque está dedicada a Michelle Suárez (advogada que foi a primeira transexual a obter um título universitário no Uruguai com o “novo” sexo, hoje senadora suplente pelo Partido Comunista). Parece que isso é bem o que vocês querem dizer com “estar sintonizados com seu entorno”. Parece que há personagens que interessam a vocês e que não interessam muito a outros.
Pedro Totalmente. Aí está a graça (risos). Olha, eu ganhei algumas opiniões escrotas aqui, tipo, “ah, isso foi pra gorda?”. “Como você está fazendo uma canção para defender isso?” Eu só tinha lido algumas entrevistas que ela deu: pensa que ela, aos 15, na escola, foi questionada, ironizada, insultada, mas mesmo assim se decidiu por viver sua identidade sexual. E estamos falando de outra época!
José: Ela vivia em um balneário (Atlántida, em Canelones) onde não tinha nada cultural. Imagina o que era viver esse dilema ali, uma cidade completamente vazia. E ela comentou com uma pessoa, de confiança, e logo a cidade toda estava sabendo, e a escarneceram por isso. Isso é muito estranho, cruel. Porque você olha para ela, e Michelle não quer emular a mulher. Não é uma caricatura, uma busca por ser a “garota modelo”. Ela se sente uma mulher, se vê como uma mulher, e não precisa se caricaturar.
Pedro: Pessoalmente, também vejo uma mulher ali, que trabalha, que é bem interessante, de uma honestidade tremenda. Fui tomar um café com ela depois, e ela é realmente uma pessoa encantadora.
Esses são temas que não consigo imaginar sendo tratados por músicos pop no Brasil hoje. Estamos vivendo uma onda de neoconservadorismo que se espalha em tudo, da política institucional ao dia a dia. E há quem diga que isso é uma realidade pertinente a toda América Latina – inclusive no Uruguai, ainda que em menor escala. Acreditam que a música possa ser uma maneira de levar as pessoas a questionarem essa situação?
Pedro: No Buenos Muchachos nunca pensamos em levar as pessoas para lado nenhum. Eu acho que sempre a música apontou para que não voltássemos para trás nas nossas vidas, mas isso veio de nós também. Não sei se seria uma coisa tão direta… Olha, não sei como responder isso.
José: A mim me parece que há demasiada pressão para que ninguém transcenda tanto o que é a norma… Esses “buracos” que permitem os outros a serem diferentes já estão bem tampados, e não sei se a música pode levar algo diferente para mudar isso. No Uruguai aprovam-se muitas leis que levam ao individualismo, à pressão social. Parece que temos uma falsa esperança, como se as leis nos permitissem sermos mais livres individualmente, mas na verdade acabam criando uma conformidade. Acredito que se a juventude não puder mudar essa situação por suas ações, tudo ficará como está. Mas essa juventude foi mal instruída… Isso é outra coisa: tem gente por aqui que não sabe quem foram os Beatles – isso para não falar outras coisas, vamos ficar só nesse aspecto quase anedótico. Parece que tem uma falha gigante na formação que poderia ajudar as pessoas mesmo a procurarem causar transformações. A música é um agente disso, mas não é o único, e sozinha não transformará nada.
Em 2015 vocês tocaram no Brasil e foram três shows bem diferentes: um no Sesc Pompeia, em São Paulo; outro no 4º Salão do Livro, em Guarulhos; e por fim como headliner da primeira noite do festival El Mapa de Todos, em Porto Alegre. Um show totalmente diferente do outro (eles riem). Dá para dar uma visão geral dessa experiência tão diversa?
José: O primeiro de todos foi o de São Paulo. O Sesc foi fantástico, ficamos realmente impactados com o tanto de pessoas que foram. Pensei que estariam alguns argentinos, por causa do idioma; e uns uruguaios; mas nunca imaginei que seria algo como foi, tanta gente, inclusive brasileiros, que foram para nos ver. São Paulo foi impactante: culturalmente, arquitetonicamente… E o lugar (a Choperia do Sesc) era maravilhoso! Nós saímos para andar pelo Sesc e tudo era incrível, o entorno também. Foi uma experiência ótima, e as pessoas do Sesc nos trataram muito bem, Los Porongas, que tocaram conosco, também foram muito legais… Em Guarulhos foi um desafio: no dia anterior já tinha rolado outro show, as pessoas estavam cansadas, era o fim do evento e o público era muito jovem, uma criançada mesmo. Mas estávamos “ligados no 220”, era um teatro pequeno com som muito bom, e quem estava presente estava muito atento ao que estava acontecendo no palco – que, aliás, era uma tenda (risos). Acabou sendo um dos nossos melhores shows, rolou entrega no palco e o público sentiu isso. E correspondeu! Foi ótimo! Mas sobre o El Mapa o Pedro fala (risos).
Pedro: No El Mapa fizemos uma passagem de som incrível no meio da madrugada, e foi só (risos). Não sabíamos que ia acontecer isso (nota: na última hora, o Bomba Estéreo, headliner original, pediu – ou, segundo fontes que preferem permanecer anônimas, exigiu – uma mudança de horário para não perder um voo. Os Buenos Muchachos seriam originalmente a antepenúltima banda da noite), mas quando soubemos já tínhamos certeza que não ia ser legal para nós. Com os anos, você aprende com os erros, então já sabe de antemão quando algo tem forte chance de dar errado.
José: Sabemos que o Fernando [Rosa, organizador do festival] fez o que pôde, e que ele estava sob muitos tipos de pressão. Diante do cenário, ele fez o que era possível. Mas realmente ficou complicado para nós (nota: os Buenos Muchachos tocaram para um Opinião semi-vazio, e na última canção executada pela banda, apenas quatro pessoas permaneciam na plateia).
Pedro: Espero que possamos voltar a Porto Alegre no futuro e tocar em outras condições.
José: O Bomba Estéreo, por ser uma banda grande, poderia ter tido uma atitude diferente, mais compreensiva. Ou talvez não pudessem ter uma atitude dessas justamente por serem grandes. Vai saber. Nunca tivemos tanto sucesso como eles (risos).
Em uma entrevista recente, Marcelo [Fernández, irmão de Pedro e guitarrista da banda] disse que Buenos Muchachos é uma banda que não gosta de olhar muito para o passado tampouco pensar demais no futuro. Assim sendo, pergunto a vocês: como veem o presente da banda?
Pedro: Alucinante. O Negro diz que devemos tocar mais ao vivo (risos). Mas está ótimo! Há anos que não vivia um presente tão emocionante. Quando fazemos um balanço de 2015, vemos que saiu um disco no qual gravamos todos juntos, tocamos bastante ao vivo, e temos hoje um baixista que realmente aporta coisas novas para nosso som. Nem lembrávamos como era isso. Sem querer pegar pesado com os anteriores, mas agora temos um que toca como baixista, não como um quarto guitarrista. Estamos no nosso melhor momento!
José: Sobretudo porque o disco foi uma aposta. Não conscientemente, porque ele é o que queríamos fazer, mas que não tem nada a ver com o momento atual da indústria da música no Uruguai. É um disco que tem a cultura dos Buenos Muchachos, com a letra e a música, e hoje temos um cenário em que há muito crossover. Temos artistas veteranos do rock que vão e gravam uma cumbia, ou fazem uma parceria com um cantor de cumbia, porque o gênero está na moda (risos). E esse disco não tem nada disso, pelo contrário: está muito representativo de uma banda que não queria vender mais ou menos discos, que queria fazer o melhor que podia. O disco ganhou só uma resenha no Uruguai até agora, em um site de nicho. Não saiu nada em nenhum meio impresso. Provavelmente porque é um disco que requer muitas audições, mas nessa velocidade das redações, em que o jornalista escuta e, se não identifica de imediato o estilo e as fórmulas, deixa de lado, quem quer escutar um disco assim? Música tem que ser digerível para esse tipo de ouvinte: se é balada, é balada; se é midtempo, é midtempo; se é pesado, é pesado. Sem nuances, sem variações. Mas não pode ser assim. Nossa música é um mamute que não toca o chão, nosso disco tem uma densidade sonora mas também tem leveza.
É verdade, mas esse está mais… solto. É um disco muito cancioneiro. “Se Pule la Colmena”, por exemplo, não tinha essa característica.
Pedro: Isso rolou pelo jeito de gravar. Foi tudo ao vivo no estúdio, e isso sempre gera uma coisa orgânica como resultado.
José: Não nos preocupamos em atentar para alguns detalhes que antes às vezes reparávamos. Deixamos passar pequenos erros propositadamente, coisas que não deixaríamos passar nos discos anteriores. Isso não tinha rolado com nosso álbum anterior, no qual tivemos um grande perfeccionismo. E ainda acho que é um bom álbum, mas gosto demais do que conseguimos com “Nidal”, que soa muito mais orgânico, de fato. Tem esse frescor de banda ao vivo.
No ano que vem, a banda completa 25 anos de existência. Vocês estão planejando alguma espécie de celebração para marcar a data?
Pedro: Nada disso. Marcelo é muito inimigo dessa ideia.
José: Eu também. (risos)
Pedro: Não pensamos nesses termos. Se tanto, acho que festejamos quando completamos 23 anos e meio (risos). E podemos celebrar qualquer momento. E no momento atual ainda temos alguns custos do disco a pagar, não podemos nos dar ao luxo de fazer essas comemorações.
José: O que gostamos de fazer é tocar um disco do começo ao fim, e pode ser que em algum momento decidamos comemorar os 20 anos de “Amanecer Búho”, por exemplo, com um show em que o tocamos na íntegra. Algo dessa forma nos interessaria fazer, embora não tenhamos nada específico no momento. Mas fazer algo da banda… Não há porque. A banda continua. E continua olhando para a frente.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Excelente entrevista!