A pequena grande revolução de Sia

por Ana Clara Matta

Enquanto o rock, o blues, o country, a música clássica, e grande parte dos gêneros musicais possuem cidades e locais específicos tratados como seus berços, pouco discutimos o berço do pop – talvez o mais fácil de ser especificado. O pop, como conhecemos, nasceu não só em um país, estado, ou cidade: nasceu em um prédio. O Brill Building em New York City. O sistema que operava dentro das paredes desse prédio luxuoso da Broadway, até certo ponto, definiu, por cópia ou por oposição, tudo o que aconteceria na música após a sua era de ouro, que perdurou pelas décadas de 1950 e 1960.

Enquanto os compositores do Brill Building eram reis, músicas eram feitas e entregues para os melhores intérpretes do período como em um sistema de produção industrial. Duplas de compositores jovens como Hal David e Burt Bacharach ou Carole King e Gerry Goffin, lendas como Leiber e Stoller ou compositores solo como Neil Diamond e Paul Simon eram procurados por gravadoras de ídolos teen do rockabilly, girl groups de doo-wop e lendas do R&B em busca dos futuros hits.

A virada autoral dos anos 70, em que o cantor-compositor é o rei de seu próprio universo de referências confessionais e o pop foi tomado de assalto pelo rock de grandes ambições, criou uma encruzilhada (onde quem sabe Robert Johnson espera com seu violão) nos caminhos na indústria musical. De um lado, a pressão pela verdade pessoal do artista, pela expressão realmente artística e a diferenciação desses e dos trabalhadores “em série” diminuídos do pop. Do outro, indústrias musicais locais, como a localizada na cidade de Nashville, Tennessee, e centrada na música country, em que o compositor especializado ainda é rei e serve às demandas do intérprete em busca do hit do verão.

Nos últimos anos, uma pessoa resolveu colocar essa divisão em cheque, em crise, pela primeira vez significativa desde os anos 70, e questionar o que é afinal ser “autoral”. O nome dessa artista (rótulo que com sua arte ela, até certo ponto, também derruba e reconstrói) é Sia Furler.

O que aconteceu na carreira de Sia antes do início de sua pequena revolução, cuja primeira pedra na janela do establishment foi jogada com o lançamento do disco “1000 Forms of Fear” (2014), não importa muito para esse texto. Mas de maneira resumida, Sia começou como artista independente autoral e atingiu a maturidade musical compondo para cantoras e DJs com apelo enorme com as massas, em colaborações que foram convertidas em milhões de cópias vendidas e muito, muito airplay.

O que Sia questiona é: será possível ser autoral e confessional em um ambiente completamente mercadológico, emprestando suas palavras para outros artistas e diluindo por aí sua identidade? A resposta que ela encontrou, e repassa para nós em um experimento audiovisual complexo, é: claro que sim.

No material promocional de “1000 Forms of Fear”, um disco que lida com tópicos pessoais como os vícios e problemas psicológicos da compositora, e é cantado inteiramente em sua própria voz, Sia se fez sumir. Na capa do álbum, apenas uma peruca, iniciando o código do disco. Uma criança usando essa peruca a substituiu em clipes, e em premiações e performances da late night televisiva americana, celebridades com a mesma peruca dublavam os versos da compositora e cantora. Com esses gestos, Sia questionava se as palavras se tornam menos sua na boca de quem não sentiu tudo o que motivou a escrita delas. E dessa maneira, questiona essa colocação do sistema Brill Building, o sistema do compositor contratado, é realmente inferior como foi pregado pelos defensores do artista autoral nos anos 70.

Sia se prepara agora para dar mais passos nessa revolução e lançar um disco chamado “This is Acting”, agendado para lançamento oficial no final de janeiro de 2016, e mais uma expressão que brinca com a legitimidade das emoções. Nas capas dos singles já lançados do disco, mais pessoas com o cabelo-signo de Sia. O que é apenas atuação? A performance da cantora, os versos da compositora de músicas que foram feitas possivelmente para outros artistas, ou todas essas versões “falsas” de Sia?

“Alive”, primeiro single de “This is Acting”, foi escrito para Adele e quase vendido para Rihanna antes de ser gravado, enfim, por sua compositora. Na sua voz, é elogiado por ser cru, real, triste, relacionado com a alma de Sia Furler – isso aconteceria na voz de outra pessoa? Nesta semana, mais propriamente no dia 03/11, ela disponibilizou a segunda música de “This is Acting”, chamada “Bird Set Free” (e também foi oferecida para Adele, que a descartou).

Com música pop e discos com um alcance bem amplo, nada de nichos, Sia ecoa Walter Benjamin e Abbas Kiarostami e quebra um paradigma de originalidade que durou 40 anos sem ser desafiado. Uma desafiante corajosa chegou, e ela tem um exército de doppelgangers ao seu lado.

– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Rock ‘n’ Beats e do Ovo de Fantasma

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– Sia ainda tem muito fôlego pra mostrar. Mostrando a cara, ou não (aqui)

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One thought on “A pequena grande revolução de Sia

  1. muito bom! senti algo parecido pelo trabalho da Sia, mas minha leitura foi um pouco diferente. a esses desafios propostos pela Sia que a Ana descreveu, acrescento o de barrar um pouco esse narcisismo e autorreferenciação massantes, que transbordam dos trabalhos autorais (ou não) das últimas décadas, para além de uma identidade própria e de uma autonomia na produção de conteúdo. porque os trabalhos autorais nesse período podem muito bem ter sido construídos mais como forma de investirem na própria imortalidade, fabricando a mitologia de si mesmos (Damon Albarn começou uma discussão assim no Gorillaz); o que, por sua vez, gera valor para o mercado e isso garante a “sobrevivência” (luxuosa?) do ídolo. 

    ídolos pop, aliás, serão lucrativos para a indústria mesmo depois de mortos e, ao que parece, seguir regras de adequação a essa máquina seria a única condição para que eles se consagrem como os ungidos da indústria. então, qual é o desafio de cantar sobre si mas pressupondo o outro? quantos ídolos pop/rock (até no Brasil) dizem em entrevistas que cantam para eles mesmos ANTES de pensar no outro e escrevem letras como forma de TERAPIA, pressupondo que nós, como espectadores/ouvintes, estamos ali para amaciar o ego deles? mas Sia esconde o próprio rosto e, assim, também preserva sua privacidade e se protege do etarismo do mercado pop (uma forma de adequação), ao mesmo tempo que se distribui (pela “peruca”) e se revela em cada um de nós, nos incluindo na identidade da contadora de estórias. 

    penso também que esse trabalho da Sia pode ter tido o efeito de escancarar a relevância da compositora por trás dos intérpretes que ficam com o mérito de expressar temas das nossas vidas (porque nem sempre valorizamos só a técnica vocal). mas estou partindo de um contexto em que seria impossível discutir estética sem discutir mercado/ distribuição/ alcance/ política — e a Ana bem fez referência a Walter Benjamin, afinal — e nesse espectro, entrevista também é performance, assim como fazer propaganda de produtos, ser ativa/o em redes sociais, ou qualquer outra forma de exposição do produto “si-mesmo/a”, que é como se traduz a exclusividade (eu-logomarca) na era que a arte se reproduz técnico-mecanicamente. então acho que a performance da Sia, principalmente por sua postura no mercado, viabiliza aqui essa importância da arte como plataforma que revela uma verdade para além do cotidiano.

    aí leio meu comentário antes de publicar e suspeito que só falei abobrinhas. rsrsrs

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