Sob o CEL #32
História por Música
por Carlos Eduardo Lima
Seria lógico se nós, quando jovens, deixássemos ocultas algumas pistas sobre como era nossa vida até então. Algo que nos fizesse, como num passe de mágica, voltar algumas décadas no passado e reviver algumas experiências ou, simplesmente, não viver outras que insistem em nos encher o saco na maturidade. Não adianta posar de indestrutível e inabalável, é próprio do ser humano sentir saudade, mesmo que não tenhamos a mínima noção disso. Digo que “seria” lógico, porque não tenho absoluta certeza que fazemos isso intencionalmente, mas, sem qualquer dúvida, há mecanismos que desencadeiam uma espécie de escudo protetor invisível de Colgate em relação ao tempo presente, nos mantendo isolados num limbo do bem. Resumindo, gente: há horas em que precisamos/queremos voltar. E não dá, né? Não dá. Diante da impossibilidade (ainda) da viagem no tempo, nossa mente nos provê, de quando em quando, com algum atalho, buraco de minhoca, dobra espaço-tempo que nos leva para outro lugar. E, em tempos de segurança total, a música é um bom meio de transporte nessas horas.
Claro que todos nós temos músicas queridas, que nos recordam de outros tempos, mas, eu te pergunto: há alguma música que te leve para uma espécie de Shangri-lá existencial da juventude eterna? Algo que não existe, claro, para o qual você nunca foi, mas que, talvez, tenha sonhado, visto num desenho ou filme ou série há um bom tempo? Algo que seja etéreo enquanto dura, como uma Fantástica Fábrica de Chocolate na esquina da sua rua, na qual você morou por um bom tempo e que hoje, pela ação do tempo, não tem mais nada em comum com a imagem que você guardou?
Sei que você está sabendo do que quero falar. Eu tenho uma única canção que faz isso por mim e ela é tão engenhosamente perfeita, que demorei tempo à beça pra conseguir encontrar as palavras exatas para descrever o efeito que “Since I Left You” faz com meus neurônios. Posso dizer que a ouço várias vezes por semana, pelo menos. Que conheço cada detalhe de sua estrutura, cada efeito, cada coisinha, cada milímetro aural que ela enverga.
The Avalanches, uma galera de Melbourne, Austrália, se juntou no meio dos anos 1990 sob outro nome, Swing Monkey Cocks. Por aí você já tem noção do que Robbie Chater e Darrin Seltmann aprontavam como integrantes de um combo punk. Ao longo do processo habitual de tocar em espeluncas miseráveis na terra do Crocodilo Dundee, Gordon McQuilten, Toni Dibiasi, Dexter Fabay, futuros integrantes, vieram a bordo até a primeira metade daquela década.
Àquela altura, o punk já havia sido arquivado em favor de uma abordagem mais dançante e eletrônica, no sentido “Paul’s Boutique” do termo, se é que vocês me entendem. Este disco, o segundo lançado pelos nova-iorquinos dos Beastie Boys, em 1989, é um marco histórico por ser um trabalho totalmente formado por samples das mais distintas procedências, oferecendo um painel maluco e extremamente legal.
Por volta de 1997, já com o nome The Avalanches, eles acreditavam piamente que o caminho para a felicidade repousava nessa equação na qual samples + malandragem significavam tudo. Para isso, os sujeitos adquiriram toca-discos e uma infinidade de LPs. Mesmo se não fizessem isso com um fim específico, os caras representam bem essa juventude planetária que adentrava a casa dos 20 anos em 1990 (eu incluído, claro) e que desenvolveu seu conhecimento musical através das emissoras de rádio, da compra de discos e de shows dados perto de casa. E, claro, também com o intercâmbio de informações entre iguais e/ou funcionários de lojas e discos e locutores/apresentadores de programas audiovisuais, que se tornaram, por afinidade insuspeita, nossos amigos, professores e conselheiros. Gente que, junto com os responsáveis pelas canções, disse pra nós mesmos o que deveríamos ouvir para conhecer… a nós mesmos. É temerário que essa função caiba a algoritmos em sites da internet hoje, mas tudo bem.
De qualquer maneira, The Avalanches estava em vias de produzir uma obra-prima daquele momento pré-milênio, pré-fim de mundo, pré-tudo. Antecedendo a isso, a banda — já com o tecladista James de la Cruz no line up — excursionou pelo Down Under como banda de abertura para gente tão legal quanto os ídolos Beastie Boys e o Public Enemy. O caminho estava aberto.
Seu primeiro e único álbum, “Since I Left You”, lançado localmente em 1999, ganhando o mundo meses depois, já no tal Y2K, é a melhor das colchas de retalho. É um ecocardiograma com doppler de uma discoteca de classe média, seja de Melbourne, São Paulo ou Rio de Janeiro, fonte inesgotável de sons, impressões e visões. Atribuo a essas discotecas fundamentais pré-internet uma função quase cerebral, no sentido emocional do termo. Pois bem, os sujeitos se juntaram em algum estúdio miserável da cidade australiana, sob a égide da Modular Records, e fizeram este álbum indispensável para a vida humana (na minha opinião, claro).
Lembro-me de tê-lo ouvido na aurora da internet de banda larga, quando trabalhava numa empresa em Macaé, região norte do Rio. Eu morava lá, a muitos quilômetros de casa, numa época estranha da minha vida e precisava loucamente de qualquer boia de sinalização para algo que pudesse reconhecer como lar. Tinha como hábito ler as resenhas dos compradores do site Amazon.com, uma valiosa fonte de impressões sobre as músicas e discos comprados lá.
Não sei como cheguei ao disco dos Avalanches, mas me deparei com ele e cliquei num link que oferecia uma amostra de 30 segundos da faixa, não mais que isso. Foi o suficiente para que eu importasse o álbum no minuto seguinte, num tempo em que não havia outro meio plausível. Amarguei mais de um mês até a chegada e, quando isso aconteceu, me senti, finalmente, em casa. Mesmo que o disco seja absolutamente sensacional, a primeira faixa é algo, por assim dizer, de outro mundo. Vou contar para vocês o que penso quando a ouço:
“Estou desembarcando em alguma Ilha da Fantasia, descendo de algum catamarã supersônico. O lugar é tropicalóide, com pessoas que me recebem na beira do cais, com colares de flores havaianas, principalmente umas mulheres gatas e com pouca roupa. Sou levado para uma festança que rola na beira de piscina, onde me servem drinks coloridos e onde a própria The Avalanches está se apresentando. Há uma vocalista cantando com um vestido tubinho negro, cabelo curto colocado para trás com gel, maquiada na medida certa e que, a meu ver, me dá um mole impressionante. A aparência dela varia de Scarlett Johansson, Jane Seymour, Cristina Azul ou Jennifer Connelly, dependendo do que passa pela minha cabeça na hora. E, após me entender com a moça, encontro todos os meus amigos, desde quem batia bola no Calçadão de Copacabana em 1976, passando pelo pessoal do CSA, da Uerj e da UFF, sem falar nos colegas de trabalho, parentes, bichos de estimação, brinquedos, revistas em quadrinho, aviões de montar, fitas K-7, LP’s, tudo vai para este lugar num passe de mágica enquanto os quase cinco minutos da canção rolam”. Eu não fico rico, não tenho carrões, mas, sério, pra quê?
Pois bem, tenho certeza que alguma canção faz isso por você. No caso de “Since I Left You”, feita TOTALMENTE a partir de samples de outras canções, uma espécie de Frankenstein do bem, qual não foi minha curiosidade quando, anos mais tarde, ao fuçar no Youtube, me deparei com um sujeito chamado Rickydown que se dedicava a destrinchar a estrutura de algumas canções do álbum, entre elas, claro, a faixa título.
Com prazer indescritível tomei ciência das outras canções, que forneceram trechos, batidas, ambiência, clima, tudo, para que a minha música — sim, porque ela é minha desde sempre — pudesse ser criada a partir do mais absoluto nada. O escopo dos sujeitos vai desde interpretações de gosto duvidoso, feitas pelo violonista americano Tony Mottola para clássicos como “By The Time I Get To Phoenix”, passando por grupos vocais obscuros dos anos 1960, como The Main Attraction ou The Duprees.
Mesmo com essa maravilhosa fonte de informações, dois detalhes ainda permaneciam obscuros para mim. Logo no início, há um dedilhado de violão e burburinho de pessoas, que vai aumentando. Antes que a música entre, há uma voz feminina que diz “Younger than springtime”, que é um nome de uma canção presente no musical South Pacific, da dupla de compositores americanos Rodgers e Hammerstein. Tornou-se um belo standard de jazz nos anos seguintes, rendendo uma impressionante interpretação de Frank Sinatra em sua versão late sixties, que você pode conferir aqui, com produção de Lee Hazelwood, num vídeo lindo, no qual aparece a orquestra nos estúdios da United Recorders, em Hollywood. Mesmo assim, não sei se a voz que surge na canção é totalmente relacionada à interpretação de “Younger Than Springtime”, ainda descobrirei.
O mistério final de “Since I Left You” foi desvendado há pouco mais de um mês. Ainda no início da canção, há uma voz que recebe as pessoas no tal ancoradouro imaginário da minha mente, e diz: “get a drink, have a good time now, welcome to paradise”. Isso aí era indecifrável até chegar a informação da existência do site www.whosampled.com.
Como o nome já diz e você já deve ter imaginado, dá pra encontrar toneladas de informação sobre o uso de amostras de outras canções através dele e foi com este auxílio luxuoso que me deparei com um filme para a TV, feito em 1987, chamado “Club Med”. O maior mérito dessa produção é ter Linda Hamilton, a Sarah Connor em pessoa, tentando preservar a visibilidade ganha com o papel no primeiro “Exterminador do Futuro”. Em uma passagem do filme, ela vai até o Club Med de Ithaca, México, e, ao descer do barco junto com uma galera de turistas, se depara com gente vestida de sarongues e ostantando colares de flores, recebendo os visitantes. Dai surge a poderosa frase “get a drink, have a good time, welcome to paradise” é NITIDAMENTE ouvida. Sim. É. Pode comprovar aqui, ó: http://www.whosampled.com/movie/Club-Med/ .
Depois do disco, The Avalanches tiveram os 15 minutos de fama. Remixaram várias pessoas, de Cornelius a Stereolab, lançaram singles de canções do disco e mantiveram uma expectativa imensa para o lançamento do sucessor de “Since I Left You”, algo que, pasme, ainda não aconteceu. Se depender da minha vontade, a banda não lança mais nada, não por medo de fracasso ou algo assim, mas por absoluta falta de necessidade diante do incrível feito já alcançado com a canção. Se você tem alguma música que pode trazer esse efeito, sem qualquer aditivo, sabe bem o que ela pode fazer. Até escrever um texto gigantesco sobre tudo isso.
– CEL é Carlos Eduardo Lima (@celeolimite), responsável pela coluna Sob o CEL, versão renovada de sua primeira coluna no site, O CEL é o Limite, que estreou em maio de 2002. Também é locutor e produtor na empresa Rádio Vitrola e responsável pela História Por Música