Sob o CEL #30
A Brasília Azul na Distância
por Carlos Eduardo Lima
Sem muita convicção e motivado pela vontade da minha esposa, fui ver “Sentimentos Que Curam” no cinema. É um filme no qual Mark Ruffalo é Cameron, um descendente de família tradicional e rica de Boston, mas tem transtorno obsessivo-compulsivo. Mesmo assim, ele se casa com Maggie (Zoe Saldana) e o casal tem duas filhas, Amelia (Imogene Wolodarsky) e Faith (Ashley Aufderheide). Claro, a vida não é fácil pra eles, Cameron não consegue emprego, obrigando Maggie a se virar pra criar as duas meninas. A trama se situa em 1978, quando Amelia já tem 10 anos e o casal está separado, mas se relacionando cordialmente. Maggie decide cursar um mestrado em Nova York e não vê outra pessoa para cuidar das meninas que não seja Cameron, que decide ajudar. A relação da família muda gradativamente e esta é toda a história de “Infinitely Polar Bear”, dirigido por Maya Forbes a partir de roteiro próprio. Claro, trata-se de uma série de reminiscências de alguma pessoa nos seus 40 e tantos anos de idade, saudosa do século 20 e de como as coisas costumavam ser. Digo, as mínimas coisas. Minha suspeita se confirma a partir do fato de que Maya é a mãe de Imogene.
É fácil analisar o filme dessa forma, como mais um compêndio de memórias afetuosas, uma trama sem vilão, algo pouco, digamos, inovador no cinema, mas, como sempre digo: não sou bom em analisar filmes, me apego a cenas e situações que podem ser banais para os entendidos e passo a medir o valor que vou atribuir (ou não) a partir desses detalhes. Exemplifico neste caso: há três cenas em “Sentimentos Que Curam” que me fizeram chorar baixinho no escuro, tão baixinho que – acho – ninguém notou. Até porque, a rigor, talvez só a última delas seja digna disso. Portanto, se você pretende ver o filme (vale à pena, é bom), vou estragar sua jornada descrevendo três cenas, mas não vou dar qualquer informação sobre elas no contexto do filme, portanto, acredito que não serão spoilers clássicos. De qualquer forma, se você é maluco por ineditismo e surpresas constantes, pare de ler por aqui e vá para dois parágrafos adiante, ok? Passada a primeira meia-hora de filme, já sabemos que Maggie precisará cursar seu mestrado e Cameron cuidará das meninas. Como bom bipolar, ele alterna momentos de estado de espírito e uma de suas manias é… trocar de carro. Vemos que ele passeia por Boston com as meninas a bordo de uma luminosa – porém detonadíssima – Citroen Eurowagon, azul com teto branco, provavelmente fabricada em 1971. O carro morre constantemente, precisando de reparos, até que Cameron decide trocá-lo e o faz sem avisar as filhas. Ele deixa a Citroen no pátio de uma oficina e pega um Dodge Valiant, para desespero das meninas, especialmente Amelia, que vê a velha caminhonete azul sumindo na distância, a partir do vidro traseiro do novo carro.
A segunda cena é um desses clipes que os diretores inserem nos longas para dar ritmo, para contextualizar a trama no tempo, para tornar a narrativa mais fofa, vá saber. O fato é que me pegam quase sempre e não foi diferente quando, ao som de “The Oogum Boogum Song”, pequena preciosidade Soul de Brenton Woods, gravada em 1967, uma sorridente Zoe Saldana surge descendo de um ônibus, para rever a família depois de duas semanas longe. A câmera meio lenta, a música alegre, a alegria que foi obtida na cena, tudo tão no lugar, verdadeiro quando vemos alguém de quem sentimos falta, pegou o velho coração em cheio. Fazer o quê, gente? A terceira cena é bastante singela e mostra Cameron se despedindo das filhas, que decidem fazer outros programas, que não o passeio de barco no Rio Charles que ele havia planejado para aquela tarde. Faith vai passar à tarde com uma amiga e Amelia vai ao cinema com outra – ou algo assim – e Cameron tenta persuadi-las até que desiste e concorda. As duas vão andando pelo pátio da escola e cuidam para não olhar pra trás, uma vez que esse gesto é certeza de que vão capitular ao verem o pai com cara amuada, pedindo que elas voltem. Amelia chora durante o percurso de não mais que cinquenta passos, decidindo se deve ou não ir ao cinema, se ficar com o pai não é melhor, se ele vai ficar triste, se vai sofrer, algo assim. Ao fim do caminho, ela olha e vê Cameron ao longe, acenando e fazendo graça. A sensação de alívio da menina é palpável, enquanto sobe o volume de uma infalível “Run Of The Mill”, de George Harrison, safra “All Things Must Pass”. Mais uma vez, o velho coração não aguentou.
Ainda hoje, uns 41 anos depois, ainda vejo um carro azul na distância. Era bem mais novo que a Amelia do filme, eu tinha entre quatro e cinco anos, quando meu avô me levou a uma concessionária Volkswagen em Correas, distrito de Petrópolis, na região serrana do Rio. Era um procedimento de rotina, nada especial e era sempre legal andar na Brasília azul-celeste, que ele comprara ali mesmo, cerca de um ano antes. Vejam, era 1975, tempo em que o Queen gravava “A Night At The Opera”, Bowie mandava ver em “Young Americans” e Marvin Gaye se preparava para excursionar pela Europa tendo em mente gravar o colossal álbum ao vivo “Live At London”, que sairia no ano seguinte. Meu velho avô, um coronel da Aeronáutica, bigodudo e careca, sabia que eu gostava do carro e pretendia trocá-lo por outra Brasília, um ano mais moderna. Todo o processo foi escondido de mim, claro, afinal de contas, eu era uma criança pequena. Posso dizer, entretanto, que lembro nitidamente de sair do carro azul e entrar no branco, achando legal, vendo alguma diferença no volante, no painel, curtindo o cheiro de carro novo. Jamais esperaria que aquilo fosse definitivo, afinal de contas, aquele aprazível automóvel azul era, por assim dizer, meu companheiro de alguma forma. Não sei se foi pelo inesperado ou pela angústia em ver aquela Brasília azul ficando pequena na distância, irremediavelmente para trás, condenada a viver em alguma curva do passado, a habitar alguma feliz auto-estrada da memória, na qual ela anda com o Herbie e o Mach 5 mas posso afirmar que ainda vejo aquele carro ficando para trás e lembro de sua placa, BD-1941.
Me conforta saber que não sou o único que sente essas coisas por carros, apesar de não dirigir e ter perdido o interesse por ele sistematicamente. Bruce Springsteen metaforiza os automóveis como entes mágicos que permitem fugas da pobreza ou da realidade, pequenos acessos para uma dimensão em que tudo é mais possível. Os Beach Boys também tiveram seu apreço por carros, especialmente o início da carreira, com canções maravilhosas como “Little Deuce Coupe” ou “409”, mas também com uma maravilha esquecida chamada “The Ballad Of Ole’Betsy”, na qual temos Brian Wilson e companhia narrando as histórias de um velho carro, que teria sido fabricado em 1932 (32 anos antes do lançamento da canção, em 1964) e que teria visto muitos lugares, andado por muitas estradas, abrigado muitas pessoas, acelerando e reduzindo ao longo da grande caminhada da vida. Agora – no presente da canção – o velho calhambeque já não rodava de um lado para o outro e só restava aos rapazes da praia, vê-lo ser ultrapassado pelos novos modelos, irremediavelmente fadado ao esquecimento. Sério, isso tudo é muito triste.
Temo que esse tipo de tristeza, que, de certa forma, legitima a existência, se perca no passado – olha aí, é a tristeza da tristeza. Sério, insisto no postulado. Em uma sociedade que se funda no consumismo desenfredo e no desapego do que se compra, na certeza de que durará pouco e será substituído por algo necessariamente mais eficiente, não restará muito espaço para que alguém se apegue a algo. A descartabilidade é o nosso presente e tende a se intensificar cada vez mais no futuro. De alguma forma, acredito que um pedaço meu ficou lá, ao lado daquela Brasília azul, modelo 1974, sumindo na distância da Estrada União-Indústria. É o destino de todos nós, nos despedaçarmos ao longo da existência, por mais dramático que pareça e por mais inesperado que seja ver um filme nos fazer lembrar de algo tão precioso e importante.
– CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), responsável pela coluna Sob o CEL no Scream & Yell, uma versão renovada de sua primeira coluna no site, O CEL é o Limite, que ele estreou em 05 de maio de 2002. Também é locutor e produtor na empresa Rádio Vitrola
CEL, seu maldito, não me deixe com os olhos cheio de lágrimas em pleno expediente… Obrigado pelo texto.
“A descartabilidade é o nosso presente e tende a se intensificar cada vez mais no futuro. De alguma forma, acredito que um pedaço meu ficou lá, ao lado daquela Brasília azul, modelo 1974, sumindo na distância da Estrada União-Indústria. É o destino de todos nós, nos despedaçarmos ao longo da existência, por mais dramático que pareça e por mais inesperado que seja ver um filme nos fazer lembrar de algo tão precioso e importante.”
excelente.