por Daniel Tavares
Surgido em 2010 em Fortaleza, o quinteto Jonnata Doll e os Garotos Solventes adapta o protopunk nova-iorquino, elo entre a falência do sonho hippie no final dos anos 60 e o surgimento do punk rock na segunda metade dos 70, para a realidade brasileira. O vocalista Jonnata, acompanhado de Marcelo DenisDead (bateria), Leo BreedLove e Edson Van Gogh (guitarras) e Saulo Raphael (baixo), mudou-se para São Paulo de mala e cigarros e atrai cada vez mais fãs para suas performances cheias de energia (não a toa, destaque na Mostra Prata da Casa, do Sesc Pompeia, em 2014).
Seu álbum de estreia, lançado no primeiro semestre do ano passado, leva apenas o nome da banda e lapida com frescor as principais influências do grupo (Iggy Pop & The Stooges, Secos e Molhados, Richard Hell) resultando num disco absolutamente imperdível. Nas letras, histórias de sexo, drogas, prisões, solidão e violência. No som, punk (tanto pré quanto pós) de alta qualidade. O “esqueleto” Jonnata incorpora os astros que o inspiraram e exorciza seus demônios no palco (apenas para invocá-los e exorcizá-los novamente na noite seguinte). No palco, a sensação de Iggy Pop está muito bem representado em terras brasileiras.
Além da música, no bate papo abaixo Jonnata conta sobre sua aventura no cinema (“Foi uma experiência incrível”), diz que todas as suas letras são autobiográficas (“A relação com as mulheres, as drogas, o pedófilo Senhor Walber”), cita influências locais (“Dago Red, Velouria, Dress, Veia Cava, a gang do Dedé Podre”) e explica de forma direta sua banda: “Sinto os Solventes como uma aberração. Não somos bonitinhos, não tocamos de forma asseada e somos um tanto imprevisíveis, mas acredito que muita gente está de saco cheio desses roqueiros que não ameaçam nada”. Há como discordar? Fala mais, Jonnata!
Jonnata, você participou recentemente de um filme, “Medo do Escuro”, de Ivo Lopes Araújo. Como foi a experiência? Você pretende investir mais nesta outra carreira.
Sim, foi uma experiência incrível se relacionar com as ruínas da cidade num futuro distópico. Na época, eu estava arrasado com o fim de relacionamento e ritualizei tudo no filme. Com relação a outros filmes, já participei de vários: “A Cidade Onde Envelheço”, de Marília Costa, produção de BH e Lisboa, toda a banda atua, e recentemente codirigi (com o diretor Dellani Lima) e atuei no “Planeta Vermelho”, ficção científica, drama e horror baseado num conto meu.
Indo pra música, ao ouvir o disco temos quase uma visão, quase podemos ver com nitidez muitas cenas de uma adolescência passada na periferia de Fortaleza, com incursões vespertinas a uma Praia de Iracema caótica, um retorno à casa a bordo de um Grande Circular, ruas cheias de lama e buracos na periferia, prédios e solidão nas “aldeotas”, prostitutas nas praças do Centro… o que existe de autobiográfico no disco?
Tudo é autobiográfico, a relação com as mulheres, as drogas, o pedófilo Senhor Walber, tudo eu vivi ou vi com esses olhos.
Você ainda é “um esqueleto”?
Talvez eu não esteja tão magro quanto antes, mas sempre serei um esqueleto, como também sempre serei aquele cara, haha. O esqueleto baixa em mim e em qualquer um quando nos detonamos com vícios, paixões, surto.
Assim como Fagner, Belchior e Ednardo fizeram um dia, Cidadão Instigado, Selvagens à Procura de Lei e vocês migraram para São Paulo para se tornarem mais conhecidos no resto do país. Como está sendo este início de jornada?
Sair de casa é necessidade do artista porque ele precisa ganhar o mundo para ter uma visão mais ampla das coisas. É preciso se ver como estrangeiro, se sentir mais um homem caminhando na rua, no metrô. São Paulo faz ver quão insignificante tu pode ser, te faz colocar o pé no chão e pensar que se você não se dedicar e lutar, tu vai ser mais um louco falando sozinho na rua, como muitos. A jornada é meio difícil, mas adoro esta cidade, caminhar sob a via elevada, o Minhocão, mirando varandas e freaks na noite, sendo mais um deles dentro da noite.
E os planos para o segundo disco?
Estamos estudando algumas possibilidades para lançá-lo, mas ainda tem muita coisa para fazer com o primeiro (que agora será distribuído pela Tratore). Porém, tivemos a sorte de gravar logo o segundo com o Kassin, graças ao edital que ganhamos no Porto Iracema das Artes e não queremos guardá-lo tanto tempo.
Que outros sonhos vocês tem como pessoas e músicos? O que vocês querem alcançar?
Eu, particularmente, quero seguir minha carreira, tentar chegar num ponto em que tenha uma vida digna a partir do meu trabalho com música, cinema e teatro (estou atuando e fazendo a trilha junto com o guitarrista Edson Van Gogh, na peça “Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou”). O Marcelo e o Leo tem suas bandas paralelas, Moço velho e Verônica Decide Morrer, essa última também está em processo de mudança para Sampa e acredito que todos pensam como eu: a nossa estrela do rock é interna e brilha na vida real.
Como vocês estão conseguindo conciliar projetos paralelos e carreiras paralelas? Acham que é possível viver no Brasil só de música sem se render a tchetchererês e afins.
É isso, acho que é possível sim. As pessoas precisam de uma banda de rock que traga uma verdade com que você possa se identificar. Acho que chegará um momento em que você tem que se decidir no que quer da vida, porque, como diz o AC/DC, é um longo caminho até o topo se tu quiser fazer rock n’ roll.
Recentemente a grande mídia abusou da cobertura do falecimento de um artista. Sem esquecer que é um fato triste, lamentável para a família, outros assuntos importantes ficaram de lado (na cobertura) – assim como outras grandes personalidades que se foram na mesma semana – como, por exemplo, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança no banco de trás dos automóveis. Vocês, como artistas que estão cada vez mais na mídia, o que acham desse “foco torto” da grande mídia?
Se você vive sob uma ética de vida em que o que importa é ser verdadeiro na música, nas experiências de vida, numa potência da diferença, você consegue lidar com tudo. É claro que muita gente boa foi destruída pela mídia, tipo Cobain e tal, mas não sei se uma banda de rock ainda teria essa repercussão, muita coisa teria que ser rompida ou resgatada na cultura do país para que uma banda como a gente fizesse sucesso mesmo e tal.
O rock n’ roll tem se tornado algo cada vez mais raro frente a estilos pasteurizados que atingem a grande mídia e prometem retorno financeiro rápido – ou mesmo estilos extremos que ficam no underground por decisão própria. Como você vê a participação da banda em meio a este cenário?
Sinto os Solventes como uma aberração. Não somos bonitinhos, não tocamos de forma asseada, e somos um tanto imprevisíveis, mas acredito que muita gente está de saco cheio desses roqueiros que não ameaçam nada, por mais que tenham um monte de tatuagens, sejam gordos, bebam cerveja e comam carne como orcs. Somos uma banda que arde como uma vela na noite, queimando, queimando…
Quando entrevisto um artista estrangeiro, pergunto por influências brasileiras. Quando entrevisto um artista nacional, pergunto por influências cearenses. De vez em quando, tenho surpresas. No caso de vocês, que são cearenses como eu, quero perguntar que influências vocês tem que já não estejam suficientemente explícitas, como Iggy Pop, Lou Reed e David Bowie. O que os fez querer trilhar o caminho da música e fazer música como a que vocês fazem?
Cara, somos influenciados por bandas que vi na cidade e cresci com elas, como o Dago Red, Velouria, Dress, Veia Cava, a gang do Dedé Podre, o punk que morreu em 91 e botava terror na cidade e no bairro do Monte Castelo (ele aparece no clipe da gente para “O Mundo Contra Nós” em imagens dos anos 80). Tenho me inspirado em Belchior, Cidadão Instigado e também não posso negar a influência de bandas nacionais como Cólera, Inocentes, Patife Band, Cascavalletes, Legião Urbana, Secos e molhados, Felini, Harry and the Adicts, muita coisa… A música vem da experiência. Se me apaixono, isso se traduz em música. Se sinto raiva do conservadorismo em Sampa, isso vira música, assim como pode virar filme, performance, contos..
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Brilhem na noite e no dia! Limpem seus paus e bucetas gozadas com papel higiênico folha dupla caso acordem numa casa sem água e, se perderem algo, confiem no Seu Longinho. Rock and rola.
– Daniel Tavares é jornalista e já escreveu sobre Amadou Diallo e Bruce Springsteen (aqui) e entrevistou Nando Reis (aqui). A foto do texto é de Nicolas Gondim / Divulgação.