Texto e fotos por Marcelo Costa
Vídeos por Bruno Capelas
“Esse é o show caça-níqueis mais sem-vergonha que já vi na vida”, desabafou Gustavo Mullem em entrevista para Tatiana Cavalcanti, do UOL Música. Se é difícil discordar da opinião de um dos guitarristas originais do Camisa de Vênus sobre a quarta reunião da banda sem material novo (“Quem é Você?”, o último disco de estúdio, saiu no século passado) é preciso também contemporizar: o Camisa de Vênus montando por Gustavo e Karl Hummel com o vocalista Eduardo Scott para shows na Bahia é tão condenável quanto a versão atual de Marcelo Nova.
Surgido em 1982, o Camisa de Vênus teve uma carreira discográfica curta com sua formação original: o primeiro disco, homônimo, foi lançado em 1983, e o quarto (e último), “Duplo Sentido”, chegou às lojas em 1987. Marcelo Nova saiu em carreira solo, patinou (ainda que o acústico “Blackout”, de 1991, seja um discaço) e decidiu reformar o Camisa juntando os membros originais Karl na guitarra e Roberio no baixo com o lendário Luis Carlini na guitarra, Calazans no piano e Franklin Paolillo na bateria para o álbum “Quem é Você?”, de 1996.
Das raízes punks da formação original nos três primeiros – e clássicos – álbuns (“Camisa de Vênus”, de 1983, “Batalhões de Estranhos”, de 1984, e “Viva”, de 1986), o quarteto abraçou o rock dos anos 50/60 e o blues nos dois discos seguintes: “Correndo o Risco”, de 1986, e o epitáfio “Duplo Sentido”, de 1987. Se o primeiro disco foi gravado e mixado em 12 horas, com instrumentos nacionais e desconhecimento de técnicas de estúdio e gravação, “Correndo o Risco” trazia uma canção (“A Ferro e Fogo”) com uma orquestra de 30 músicos.
Dai em diante, o Camisa de Vênus transformou-se numa banda constantemente remendada, com ex-membros entrando e saindo a cada retorno (“caça-níqueis”, como frisa Gustavo Mullem em 2015, sem lembrar que esteve presente em outras três destas voltas: 2004, 2007 e 2009) e a sonoridade (antes punk e urgente) despencando num precipício de hard rock farofa. Segundo Marcelo Nova, Mullem e Hummel “não estavam tratando o Camisa de Vênus com profissionalismo”. A acusação pode ser facilmente destinada ao vocalista também.
Isso tudo porque o Camisa de Vênus versão 2015 nada mais que a banda que excursiona com Marcelo Nova desde 2010 acrescida do baixista Robério Santana, o único membro no palco que, um dia, entrou em estúdio para gravar com Marcelo Nova algum disco do Camisa de Vênus quando a banda estava na ativa – e não semi-morta, como agora. Acompanham os dois membros originais nessa turnê de 35 anos o baterista Célio Glouster, o baixista Leandro Dalle (aqui na função de guitarrista base) e o filho de Nova, Drake, na guitarra solo.
A turnê do lucro fácil baixou em São Paulo para três shows sold out no teatro do Sesc Vila Mariana (600 pessoas/noite), com o público devidamente sentado. “Bota pra Fudê” (do álbum “Plugado!”, 1995) abriu a noite e dois hinos animaram a plateia na sequencia: “Hoje” (1984) e “Bete Morreu” (1983). Nova então caçoou: “Bom ver que vocês estão confortáveis neste belo teatro, e não pulando e pogando. Coisa mais ridícula pogar”, disse imitando um velho punk com artrites. O show havia acabado de começar, e a parte “punk” já havia chegado ao final.
A bonita “Rostos e Aeroportos” (1984) surgiu em versão Whitesnake, com Drake Nova errando no volume da guitarra (ele cometeria o mesmo erro outras cinco ou seis vezes na noite), e exagerando na performance num gesto que, repetidas vezes em números seguintes, mataria o melhor que o Camisa de Vênus tinha: as letras (clonadas) de Marcelo Nova. Isso aconteceu em “Deus Me De Grana” (1986) e “Passatempo”, por exemplo, sendo que a segunda, em arranjo bluezy, soou como uma bicicleta tentando se equilibrar numa estrada repleta de buracos.
Além do repertório que pouco se diferenciava dos retornos anteriores (custa ensaiar canções diferentes?), outros momentos deixaram a desejar musicalmente: “Muita Estrela, Pouca Constelação” (1987), cuja versão do álbum “Duplo Sentido” já não era grande coisa, ainda que a letra seja um achincalhe imperdível; “Só o Fim” (1986), embora ela já não soasse bem ao vivo na época em que foi lançada; e uma desengonçada “Simca Chambord”, talvez o grande momento letrista de Marcelo Nova, aqui acrescida de citações de “O Ponteiro Tá Subindo” (1996) e “O Chevette da Menina”, sucesso impagável de Genival Lacerda.
Entre os bons momentos, versões de “Gotham City” (clássico de Capinan e Jards Macalé presente no álbum “Batalhões de Estranhos”, de 1984) e “Negue” (de Adelino Moreira, com citação de “Você é Doida Demais”), recriações de “A Ferro e Fogo” (1986), “Eu vi o Futuro” (1996) e da ainda atualíssima “O Adventista” (1983). Fora isso, canções repletas de palavrões que faziam sentido em 1985 (“Silvia”, “My Way”) e que agora soam como múmias do Egito além de “Eu Não Matei Joana D’arc”, um hino das matinês do rock oitentista.
Pegando carona na frase de Gustavo Mullen que abre este texto, se a versão Camisa de Vênus 2015 realmente é “a coisa mais sem-vergonha que já vi na vida”, o cenário roqueiro brasileiro não fica muito atrás, principalmente na questão temática, deixando a pergunta: como um país que já teve tão bons letristas pode estar tão carente hoje em dia? Já não há nada mais para aprender? Ainda que capenga e tentando assassinar seu passado, o Camisa de Vênus é prova de que o rock brasileiro já foi mais inteligente. Se isso vale um show em 2015 é outra questão.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop.
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Como já perguntou um crítico da finada revista “Bizz” no início dos anos 2000: “não vai haver aposentadoria nessa porra nunca mais?”
Futuro ter tem,né? Fora Scalene e Supercombo,temos as dezenas de bandas que aparecem volta e meia no site. Mas aquela questão: vão estourar quando?
Marcelo Nova sempre foi o mentor e dono de fato do Camisa de Venus. Quem conhece a historia do grupo sabe que os outros membros sempre foram meros coadjuvantes. Se demorou a tomar as redeas na justiça sobre o direito do nome do grupo foi um mole que ele deu, dando chance a figuras menores a usar o nome de uma das melhores bandas de rock brasileiro. Fora isso, o fato de ser uma turne caça-niquel ou não, não eh algo relevante a essa altura do campeonato, os anos dourados do Camisa, e do rock brasileiro como um todo, ficaram para tras, e não tem Scalene que de jeito. No mais continuo achando Marcelo um grande letrista, e talvez o grande rocker daquela geração.