por Leonardo Vinhas
Beto Scopel e Juliana Pandolfo compartilham de muitas coisas: da intimidade, do amor pela música, da dedicação à gestão cultural e do comando da Tum Tum Produções. O casal fundou a produtora para poder encontrar espaço para seu trabalho, que envolve criação artística, formação de público e educação. Em 2013, lançaram o projeto Tum Tum Instrumental (www.facebook.com/tumtuminstrumental), um circuito de shows que se estende por oito meses nos palcos de Caxias do Sul (RS), e que se tornou o maior destaque dentre as atividades promovidas pelos dois, além de ser uma iniciativa que vem se firmando em uma área bem pouco divulgada mesmo nos canais mais habituados à música: as composições instrumentais.
Buscando não se restringir em gênero ou geografia, o Tum Tum Instrumental já realizou shows de gente tão diferente como Alegre Correa, Bianca Gismonti Trio, Azymuth, Coutto Orchestra e Ernesto Holmann Trio, entre outros. Os preços são sempre populares (as apresentações deste ano não ultrapassavam o valor de R$ 10 por entrada), isso quando as apresentações não são gratuitas. Apesar de haver festivais dedicados à música “sem voz” no Brasil, como o Natal Instrumental (na capital do Rio Grande do Norte) e o PIB (Produto Instrumental Bruto, em São Paulo), o Tum Tum Instrumental se diferencia por manter uma programação regular ao longo do ano. E assim como acontece na cidade potiguar, o projeto dialoga com outras iniciativas culturais da cidade, criando condições para o crescimento da produção artística local e atraindo também artistas de outras localidades para lá.
O Scream & Yell convidou Beto (também integrante das bandas Projeto Ccoma e Quarteto New Orleans) e Juliana para explicarem as ambições e bases do Tum Tum Instrumental, e aproveitou-se a conversa para discutir produção cultural, leis de incentivo e o suposto antagonismo entre música “cabeçuda” (a definição é de Scopel) e música pop.
Qual foi o insight para criar o Tum Tum Instrumental?
Juliana: Surgiu de um amadurecimento da Tum Tum Produções. Depois de três anos trabalhando com produção cultural e musical na cidade e região serrana, percebemos que estávamos prontos pra criar um projeto com a cara da nossa produtora. Tivemos diversas conversas ao longo dos anos, colocamos no papel – ou melhor, na lei – e fomos em frente. O Tum Tum Instrumental quer, além de inovar, ofertar para a cidade o que há de melhor no gênero e proporcionar que artistas do Brasil conheçam nosso público e queiram voltar [para Caxias do Sul].
Beto: Foi também uma necessidade que surgiu há alguns anos, pois, além de produtores, somos apreciadores de música instrumental. Aqui na região não havia nenhum projeto que buscasse fomentar o gênero, que possui uma gama de artistas competentes e que, de certa forma, não são tão valorizados como merecem.
Algumas pesquisas divulgadas por gravadoras dizem que o ouvinte não tem paciência para escutar uma canção pop com “introdução longa” – chegando ao ponto de termos hoje muito do pop massivo começando com os vocais imediatamente, ou quase isso. A que você atribui essa falta de atenção à música hoje em dia?
Beto: A música pop sempre terá fórmulas curtas e simples com melodias repetitivas, pois ela foi inventada para que os ouvintes possam absorvê-las com mais facilidade e várias vezes. São de curta duração, é uma característica inventada ainda nos anos 60 com os Beatles, que faziam muito bem, por sinal (nota: na verdade, o termo teria se originado na década de 20, e viria a ser correntemente usado com uma associação muito próxima ao conceito atual nos anos 50). Meu questionamento sobre a música pop de hoje é que cada vez se faz música pop ruim, com letras incipientes e refrãos vazios, principalmente no Brasil. Cada vez os artistas se dividem mais: os pouco talentosos fazendo música pop ruim e os talentosíssimos fazendo música difícil de ouvir. Fica um vácuo neste processo. A solução seria reduzir este vácuo e fundir música pop bem feita e música “cabeçuda”. A história tem alguns exemplos disso: Gonzagão, Tom Jobim, Elis Regina, Chico Buarque, entre outros.
“Música instrumental” é uma designação muito ampla, já que não define gênero musical. Assim, além do critério óbvio, o que mais é determinante na hora de selecionar os artistas que participam do projeto?
Beto: O que determina a escolha de grupos e artistas é exatamente a inventividade, concepção estética e, obviamente, a qualidade. Nossa preferência sempre é dada a artistas e grupos que possuem uma trajetória consistente neste meio musical, mesmo que sejam recentes. A nossa visão cultural tem como isto princípio, mas também não deixamos de lado os artistas consagrados como Azymuth e Jacques Morelenbaum, que agregam muito à nossa formação de público.
Ainda nesse tema: como conseguir a atenção do público “não-convertido” à música instrumental? Como tem sido a resposta do público nesses anos do projeto?
Beto: Essa é uma pergunta bem pertinente, pois todos os produtores e gestores culturais de hoje em dia enfrentam este desafio: como fazer com que as pessoas saiam de casa, onde possuem seus 500 canais de TV, seu computador, tablet e smartphone? É um desafio gigante, mas percebemos que, nestes três anos de Tum Tum Instrumental, o nosso público vem aumentando consideravelmente ano a ano. Nosso projeto ainda está no começo, mas, pensando numa política cultural mesmo, acreditamos que precisamos plantar agora para colher a longo prazo.
Juliana: A formação de público, objetivo primordial do Tum Tum Instrumental, é algo cujo resultado saberemos a longo prazo. A cada edição percebe-se que cada vez mais pessoas entram em contato com o projeto e voltam para conhecer uma sonoridade nova que é mostrada mês a mês. A concepção do Tum Tum como um projeto, e não como um festival ou uma mostra, é a continuidade de cada temporada, com no mínimo oito meses de duração, para que as pessoas criem o hábito de assistir espetáculos, tanto de música instrumental como outros. Na primeira edição, fizemos pesquisa de público e tenho ideia de continuar fazendo isso, para justamente descobrir onde está nossa audiência e qual a melhor forma de chegar até ela.
Vi na programação das edições anteriores uma tendência a ter alguns músicos mais acadêmicos, com um trabalho mais apoiado em tradições consolidadas, como Henri Lentino, Azymuth, Paulinho Cardoso Quinteto. Sem demérito para eles, claro, mas cabem no Tum Tum propostas mais contemporâneas, como as ligadas ao pós-rock, ao desconstrutivismo e mesmo a um trabalho de canção rock num formato instrumental, como fazia a finada Pata de Elefante?
Beto: Não estabelecemos nenhum estilo predominante no projeto a não ser o instrumental. Já tivemos choro, Jazz, regional e até música eletrônica, com a Coutto Orchestra. Consideramos o rock e o pós-rock gêneros um tanto quanto triviais aqui na região. Preferimos conectar gêneros que não sejam de senso comum e assim estabelecer algo de surpreendente para o público.
O projeto dialoga com a programação de festivais como o PIB e o Natal Instrumental?
Juliana: Sim. Com o PIB temos um diálogo, mas ainda incipiente. Mas acreditamos que só diálogo não é o bastante. Em 2014 participamos de dois eventos muito importantes da área da música e das artes, através de seleção em edital pelo Ministério da Cultura. Em abril tive a oportunidade de ir a Brasília participar de um evento em parceira do MinC com o SEBRAE chamado Internacionalização para Empreendedores Criativos, onde pude contatar produtores e artistas de diversos segmentos das artes do Brasil todo e perceber como anda a produção em nosso pais, suas diferenças e particularidades. Em maio no MIC-SUR (Mercado da Indústrias Culturais da América do Sul), em Mar Del Plata, na Argentina, estabelecemos alguns intercâmbios para este ano no Tum Tum Instrumental e pudemos dialogar com todas as artes, desde moda e games até música, cinema, dança ou teatro. Participarmos também da WOMEX 2014 na Espanha, na maior feira de World Music do planeta, onde estabelecemos contatos já para esta edição e para futuras. Foram ambientes de negócios na área das artes, além de termos a possibilidade de ver muitos showcases, o que enriquece o trabalho de curadoria do Beto e os contatos com agentes, produtoras e instituições, governamentais ou não, para o trabalho de gestão que eu faço.
Caxias do Sul hoje tem muitos projetos regulares e eventos ligados à música: Música de Rua, Música Daqui, Tum Tum Instrumental… A que vocês atribuem essa grande produção na cidade?
Juliana: De 15 anos para cá, com a criação das leis de incentivo municipais, muito tem se produzido em todas as áreas das artes. Uma parcela da política cultural do município foi estabelecida ali e ela perpetuou. Não que sem leis de incentivo não se faça arte, mas elas contribuem muito para que os artistas façam seu trabalho com mais recursos. Vejo que os produtores da cidade fomentam o fazer artístico com seus projetos, ligados ou não ao poder público. Acredito que é dever do produtor este fomento, e na minha concepção, quanto mais independente melhor, sem tantas ligações com o poder público. Atuamos há cinco anos com diversos projetos de formação de público na área da música e do teatro direcionados a alunos de escolas públicas. Muitas vezes esses jovens não teriam acesso a esta arte se não fosse por nós. Ali podemos plantar uma semente da cultura, para no futuro germinar e quem sabe criar o público que queremos. Temos o Comunidade em Concerto nas Escolas com concertos didáticos unindo a música ao teatro, e este mês executamos o projeto Marilu, peça infantil onde levamos os alunos ao teatro. Temos projetos ligados à formação de público na música de câmara, com o Quarteto de Clarinetes e o Quinteto de Sopros. Já fizemos projetos de literatura infantil e de poesia. Enfim, só a Tum Tum já atuou em diversas frentes na cultura. Outro projeto que acredito deva ser mencionado é o Festival de Blues, que não sei se é a sexta edição (nota: é a oitava), mas que criou uma cultura deste tipo de sonoridade na cidade. Vejo as artes maduras em Caxias, claro, sempre com muito a aprender e produzir, mas com referenciais. Temos duas orquestras na cidade, uma companhia de dança, um festival de teatro, um de cinema, enfim, uma gama de manifestações acontecendo. E ainda tem o curso de licenciatura em música (pela UCS – Universidade de Caxias do Sul), que é, digamos, recente.
Existe possibilidade do Tum Tum ir além da Serra Gaúcha? Pensam nele como uma “marca” que poderia ser replicada em outras cidades?
Beto: Sim já estamos em contatos com outras cidades, estados e até em outros países através das feiras em que participamos em 2014. Mas queremos crescer de uma forma ordeira e substancial. Vamos ampliando a atuação de acordo com o financiamento que obtivermos, através das leis de incentivo e dos patrocinadores.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. As fotos acima são de Marcelo Generosi e Vini Rocha
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Interessante.