Sob o CEL #28
O sentido da vida num show de Guilherme Arantes
por Carlos Eduardo Lima
Eu já perdi as contas de minhas idas e vindas para o Scream & Yell. Se vocês procurarem no site, verão que escrevi em vários momentos, sei lá, do início dos anos 2000 para cá, sempre movido pela vontade de compartilhar com os leitores alguns pontos de vista sobre cultura pop, especialmente sobre música. Há textos escritos há dez anos ou mais, coisas de outros momentos da minha vida e às vezes é estranho lê-los. Noutras é algo bem saudável e importante, portanto, como meu amigo Marcelo Costa é um cara gente boa e tranquilo, ele segue dando trela para as minhas palavras ao vento, gente jovem reunida. Acho que a passagem do tempo me fez ficar menos nostálgico, mas o assunto que escolho para retornar às páginas do S&Y pode me arremessar novamente no precipício das relembranças sem muito sentido além do umbigo de quem escreve. Prometo, no entanto, que farei o possível para tentar escapar dessa armadilha fácil.
Quis o destino que em um sábado de maio, após quase 45 anos de idade, eu fosse a um show do Guilherme Arantes. Há outro texto recente sobre ele por aqui, no qual eu falo da grande injustiça que é o esquecimento da mídia e da indústria musical (ou do que sobrou dela) em relação a Guilherme e sua carreira. Desde este texto anterior (acho que é de 2012) e hoje, algo mudou, sobretudo pelo lançamento de “Condição Humana”, em 2013, um bom álbum de inéditas do sujeito, algo que não acontecia há um bom tempo. Com direito a participações de artistas como Tulipa Ruiz, Thiago Pethit e Tiê, entre outros, o álbum serviu pra sacudir a poeira de Guilherme e recolocá-lo no circuito de shows mais ou menos habituais. Foi um desses, sem causa aparente, que levou a mim e à minha esposa ao Vivo Rio. Cabe aqui um parênteses sobre isso. Eu e Maria, minha senhora, não tínhamos intenção de ir ao show. Na verdade, nem sabíamos que Guilherme estaria se apresentando na cidade, mas vimos no noticiário local da hora do almoço, o próprio dando entrevista e falando sobre o que pretendia fazer mais tarde: “É show pra quem gosta de Guilherme Arantes, eu vou tocar tudo, todos os meus hits, e, como é fim de mês, vai ser com preços populares”. A simpatia e a ideia de vê-lo no palco eram irresistíveis. Vimos que os valores eram, de fato, convidativos (no fim, com desconto da operadora de telefonia e da meia entrada a que tenho direito por cursar meu Mestrado em História), não havendo, portanto, motivo que justificasse a nossa ausência. Fomos.
A plateia que se dirigiu ao Vivo Rio era heterogênea, com certa prevalência de gente na casa dos 40 e tantos, 50 e poucos, público que cresceu em frente à TV, na qual havia uma Rede Globo que não mais existe, cuja lógica de audiência passava pelas novelas e suas trilhas, espaço no qual Guilherme reinou soberano com sua artesania pop com tinturas progressivas. Fluente ao piano, com voz milagrosa para alguém com tanto sotaque e timbre anasalado, ele, acima de tudo, sempre foi um excelente compositor, na mesma escola de gente como Elton John, Phil Collins e Billy Joel, sem qualquer exagero. Dono de uma fileira interminável de hits radiofônicos e televisivos, Arantes é o que podemos chamar de hitmaker, talvez o maior que a música popular brasileira já produziu, um posto que também tem Lulu Santos e Rita Lee como pleiteantes e, além deles, mais ninguém. A possibilidade de vê-lo desfilando seu repertório com poucas – ou nenhuma – omissões era animadora.
O show começou pontualmente às 22h. Guilherme surgiu com uma banda de duas guitarras, baixo, bateria, duas vocalistas de apoio, além de seus teclados e piano. Entre os músicos, duas lendas absolutas do rock nacional em todos os tempos: Luiz Carlini, guitar hero nacional e um dos fundadores do Tutti-Frutti, banda que Rita Lee integrou após os Mutantes. No baixo lá estava um grisalho Willy Verdaguer, responsável, entre outros muitos feitos, pela introdução marcante de “Sangue Latino”, dos Secos e Molhados. Uma das vocalistas, Marietta Vital, é filha de Guilherme, ou seja, algo extremamente pessoal e intransferível estava por vir. Após um set de cinco canções de “Condição Humana”, anunciadas por ele como “gente, eu vou tocar essas músicas do disco novo e depois vamos mergulhar nos hits, tá? A noite vai ser bem longa, podem se preparar”, o baile começou.
Uma a uma, vieram “Raça de Heróis” (canção do antigo grupo Moto Perpétuo, mas que só foi regravada em 1989 para a novela “Que Rei Sou Eu?”), “A Cidade E A Neblina” e, sem maiores delongas, uma monstruosa versão de “Amanhã”, na qual as tonalidades progs do arranjo original foram levemente alteradas para que Carlini pudesse passear com suas seis cordas sem qualquer cerimônia, conferindo mais peso e melodia ao arranjo. Pouco depois, também sem muito aviso, entram em campo outras duas belas e emblemáticas baladas pop nacionais, “Meu Mundo E Nada Mais” e “Planeta Água”. A primeira é faixa do primeiro e homônimo álbum de Guilherme, lançado em 1976, e a segunda chegou ao vice-campeonato no MPB Shell, em 1981, após vencer a escolha popular, fato que levou a canção escolhida pelo júri, “Purpurina”, com Lucinha Lins, a receber uma das maiores vaias da história, desferida por um Maracanãzinho lotado e enfurecido. Outras canções lentas e belíssimas, “Muito Diferente”, “Sob O Efeito De Um Olhar” e “Um Dia, Um Adeus”, gravadas entre 1987 e 1992, surgem encadeadas ao piano, cantadas a plenos pulmões pela plateia. Eu, com os meus botões, sempre pensei que “Muito” e “Sob O Efeito” eram primas-irmãs, capazes de um encadeamento melódico. Vê-las nesse formato foi um presságio de que estávamos no lugar certo, na hora certa.
O desfile de hits continuou e algumas histórias interessantes surgiram quando ele menciona alguns parceiros de composição. Cita Júlio Barroso, um dos arquitetos do rock nacional dos anos 80, e fala que, no mesmo MPB Shell, lá estava uma canção composta por ambos, mas da qual Guilherme precisou abrir mão para competir apenas com uma música. Ele optou ficar com “Planeta Água”, deixando nada menos que “Perdidos Na Selva”, clássica canção que Julio apresentaria com seu grupo, Gang 90 E Absurdetes, sem muito sucesso, mas com inovação e crocância suficientes para levá-los à abertura de uma novela global, cujo título foi decalcado de outra canção: “Nosso Louco Amor”. Ainda no terreno dos parceiros, Guilherme cita ninguém menos que o poeta paranaense Paulo Leminski, com quem fez “Xixi Nas Estrelas”, para um especial global infantil. O público continua cantando tudo a plena força.
O desfile de hits não para. Logo surgem “Pedacinhos”, “Marina No Ar”, “Cuide-se Bem” (com arranjo funk rock eficientíssimo), “Coisas do Brasil” (de Guilherme e do jornalista Nélson Motta), “O Melhor Vai Começar”, “Vivendo E Aprendendo A Jogar” (composta para Elis Regina, sendo uma das últimas faixas gravadas pela cantora), “Lance Legal” e “Loucas Horas”. Em pouco tempo já há uma aglomeração de pessoas em frente ao palco, gente que não resistiu em suas mesas e, como a casa não havia configurado seu espaço para ter o setor “Pista”, resolveu pular na chamada “fila do gargarejo”. Não podiam imaginar que dois dos maiores clássicos da carreira do homem viessem em seguida e quase emendados: “Cheia de Charme” e “Deixa Chover”, ambas com suas matrizes pop rock anglo americanas intactas, não afetadas pela ação do tempo. Pessoas em frente ao palco e por todo Vivo Rio cantavam e dançavam, algo inacreditável para um artista deixado de lado pela modernidade. Após a saída protocolar do palco, sob os urros de “por que parou, parou porquê?”, Arantes e sua banda voltam, suados, descabelados e felizes.
O bis tem a bonitinha “Fã Número 1” e a catártica “Lindo Balão Azul”, que traz potencial de Festa Ploc/Baile da Saudade para quarentões, mas que, mais que tudo, é executada com uma ferocidade rock’n’roll pela banda, com direito a solo incendiário de Carlini no melhor estilo Eddie Van Halen, cuspindo faíscas pra todo o lado, além da banda vindo quase à beira do palco para cantar junto com público. No fim, após precisas duas horas e quatro minutos de show, o circuito musical/mnemônico está encerrado com duas ausências notadas: “Ouro”, canção de 1987, que tem arranjo original com baixos sintetizados e invólucro funk de branco/tecnopop, e “Olhos Vermelhos”, de 1985, faixa do disco “Despertar”, o mesmo de “Cheia de Charme”. Lembro de um clipe do Fantástico no qual Guilherme surgia no meio de punks paulistanos enraivecidos, enquando o arranjo da canção lembrava “Torture”, faixa do disco de 1984 dos Jacksons, “Victory”.
Não há nenhum artista brasileiro em atividade, exceto Lulu Santos, com tamanho potencial de hits para um show. Lulu, como sabemos, está mais afeito a participações televisivas de gosto extra-duvidoso e não lança um disco razoável desde, provavelmente, 1996, quando soltou “Anti-Ciclone Tropical”. Além do mais, Lulu não tem mais voz ou pique para uma apresentação aeróbica e contagiante como a de Guilherme e seus trabalhos desde então, mesmo que somados, não chegam aos pés do elegante “Condição Humana”. O problema é que Guilherme Arantes, careca e com 62 anos de idade, é a antítese da modernidade e não é capaz – segundo as análises furadas de publicitários e outros seres adjacentes – de mover uma multidão a um show. Guilherme não se importa com isso, teve um período longo de ostracismo em sua carreira, quase sumiu da mídia por motivo simples, segundo sua própria análise: não quis viver de passado, de regravações e tributos, apesar de ter lançado suas coletâneas de sucessos aqui e ali, bem como alguns remakes de seus clássicos, a bordo da série Intimidade, da Som Livre. Mesmo assim, segundo ele afirma, ainda é capaz de fazer uma média de quinze shows ao vivo, a partir de sua base em Salvador, Bahia.
Mais que uma viagem aos tempos da televisão e de seu momento áureo, a arte de Guilherme Arantes sobrevive à análise de qualquer pessoa que se disponha a falar sobre música popular. O sujeito tem clássicos e, se ele estiver de passagem por sua cidade, não deixe, sob qualquer alegação, de vê-lo ao vivo e, se possível, leve seus filhos, parentes mais jovens, em suma, ajude a torná-lo mais conhecido e querido por uma geração que pensa que a música popular brasileira é, necessariamente, uma encruzilhada entre MC Guimê e Thiaguinho. Faça sua parte porque o Guilhermão segue fazendo a dele como sempre: cheio de competência.
– CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), responsável pela coluna Sob o CEL no Scream & Yell, uma versão renovada de sua primeira coluna no site, O CEL é o Limite, que ele estreou em 05 de maio de 2002. Também é locutor e produtor na empresa Rádio Vitrola
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Leia também:
– Retorno de Guilherme Arantes com “Condição Humana” é positivo (aqui)
Sempre disse que se Guilherme Arantes tivesse nascido nos EUA/UK, cantando em inglês seria estrela de primeiro escalão no cenário mundial. O cara é um gênio da música.
Concordo também em relação ao Lulu Santos. Outro monstro.
Abraço,
Vinimzo
Se tivesse nascido nos EUA, Guilherme Arantes seria outro Phil Collins, ou Sting, ou, para mencionar um nome mais recente, Ed Sheeran. Como nasceu no Brasil, somente nós temos que suportar esse mala!
Diz pra gente, Danilo, quais são seus artistas brasileiros preferidos?
Guilherme Arantes é fera e seu último disco é muito bom. Não sei se o CEL falou apenas de cantores dizendo que o Guilherme e o Lulu são os únicos hitmakers atuais do Brasil, mas se for falar de bandas tem o Paralamas e o Skank aí que conseguem fazer shows de 3 horas de duração só com hits.
Cap, me referi mesmo a cantores/compositores. Sei que Paralamas tem uma penca de hits, Skank menos, vai…
Os artistas brasileiros preferidos do Danilo são Mc Guimê, Thiaguinho e Companhia do Pagode, hahaha. Gracisses a parte, eu gostei muito do ultimo disco do Guilherme e gostei mesmo, porque assim como o Danilo, sempre achei ele um cara mala, muito pretensioso e tal. Acho que tem a ver com o seu passado progressivo, por exemplo e músicas como Planeta Água. Mas vi entrevistas do sujeito na tv e estou reconsiderando meus conceitos sobre ele. Interessante.
CEL, é só você ouvir o disco “Skank ao vivo no Mineirão” pra confirmar que o Skank é uma fábrica de hits. O show gerou um cd duplo, com 30 músicas, onde quase todas são hits, fora as que ficaram de fora. O álbum “Calango” é praticamente uma coletânea, tocou praticamente todas as músicas no rádio.
Ele deixou de fora “Brincar de Viver” e “Mania de Possuir”??
Cantou “Brincar de Viver”, mas deixou de fora “Mania…”, Bruno.
aguas passadas, pão, antes da chuva chegar, baile de máscaras, coração paulista, 14 anos, brazylian boys, a cara e a coragem, todo mês de maio na maior, brincos na orelha, show de rock, descendo a serra…fiquei listando aqui rapidamente alguns clássicos (alguns obscuros) de Arantes…que certamente não entram em shows.
As músicas dele são lindas.