por Pedro Salgado, de Lisboa
Ao longo de 15 anos de atividade, o TV Rural tornou-se uma das bandas portuguesas mais interessantes do cenário, introduziu uma legião de fãs ao seu rock intenso e visceral, ancorado em faixas como “Escafandro” ou “Faz-te Um Homem Rapaz” e em atuações catárticas que alimentaram o culto do grupo. Quando me encontro numa esplanada do Jardim da Estrela, em Lisboa, com David Jacinto (vocalista e letrista), João Pinheiro (baterista) e David Santos (baixista), a banda acaba de lançar o álbum “Sujo” e reina um grande otimismo no conjunto (baixe o disco aqui). “Esta é a nossa melhor fase, porque estamos escrevendo melhores canções, boas letras e produzimos mais discos.”, conta João Pinheiro.
“Sujo” (2015) retoma a pegada roqueira que a banda interrompeu com o EP intimista “Barba” (2014), através de faixas enérgicas como “Pedra é Pedra”, “Maratona” e “Se Te Faz Tremer”. As novas letras surgiram da tentativa de encontrar um tema comum tomando como base “aquele que se deixa levar por qualquer coisa”. Para David Jacinto, o conceito genérico escolhido resultou “em músicas relativas a alguém que se encantou pela beleza de uma garota ou ficou ciumento”. Embora reconhecendo no disco a característica única das canções do TV Rural, David Santos destaca o coletivo: “O objetivo da banda é ser aquilo que ela é e procuramos compor temas e recolher as ideias dos integrantes com o objetivo das canções serem nossas”.
Uma das marcas fortes do grupo de Oeiras (perto de Lisboa) é a exuberância de David Jacinto em palco, algo que o próprio prefere desmistificar: “É mais fácil pensar nisso estando de fora, porque quando estou atuando penso em muitas coisas e, se calhar, é isso que passa para o público. Acaba por ser a minha reação à forma dos meus colegas tocarem e eles reagem da mesma maneira”. Preferindo salientar a energia do grupo e de quem assiste aos concertos, o vocalista exprime um desejo: “Seria bom acontecerem mais shows e haver uma maior visibilidade das bandas em Portugal para termos mais presente a ideia do animal de palco”.
Durante a sua carreira, o Tv Rural ultrapassou vários obstáculos e manteve a vontade inabalável de continuar o percurso, formando uma família coesa que entende a sua identidade, sabe lidar com ela e concilia as diferentes sensibilidades de uma forma positiva. “Existe um equilíbrio entre o lado cerebral e autocrítico que o TV Rural tem a compor e a ensaiar, contrabalançando isso com a espontaneidade e a visceralidade teatral dos shows”, explica João Pinheiro. “A nossa música significa libertação. Mas o mais importante é haver uma identidade e que alguém se identifique com isso”, conclui. De Lisboa para o Brasil, o TV Rural conversou com o Scream & Yell. Confira.
Porque resolveram voltar a fazer um disco marcadamente rock?
“A Balada do Coiote” (2012) tinha músicas mais antigas e era um álbum com canções separadas por alguns anos. Quando acabamos esse trabalho, começamos a escrever novas músicas e cada um dos integrantes foi desenvolvendo conceitos e compondo em casa. O David Jacinto escreveu algumas letras e compilamos tudo num caldeirão de ideias. Quando esse recipiente começou a ter muito peso, verificamos que tínhamos faixas mais unplugged, que entraram no EP “Barba” (2014), e então decidimos suspender o projeto de fazer um disco rock. Como as músicas desse álbum não se enquadravam todas no espírito roqueiro pretendido, gravamos o “Barba” e fizemos um vídeo na Estudantina Recreativa de São Domingos de Rana (perto de Lisboa) e só agora é que conseguimos juntar as faixas mais roqueiras. Assim, editamos o “Sujo” (2015) como reação a essas seis músicas intimistas, mas procurando recuperar o espírito adolescente e de garagem que temos dentro de nós. Também havia a intenção de renovar o setlist dos shows e isso passava por algo mais dinâmico e explosivo. Por isso, tínhamos a intenção de fazer um disco mais conciso, cru e roqueiro.
O blues industrial de “Pedra é Pedra” representa um avanço sonoro para o grupo?
Sim, representa um claro avanço para o grupo. Foi uma música que direcionou a composição do álbum e sentimos que estávamos a dar um passo em frente relativamente ao passado da banda. A canção tem mesmo um lado industrial. A ideia foi do Vasco Viana (guitarrista do TV Rural), a demo que ele nos mostrou era eletrônica e foi tudo feito no computador. Por isso, a faixa é um pouco robótica e pesada, mas ao mesmo tempo tem algo que as nossas canções não têm: mais espaço. Esse aspeto evidencia-se nos shows, ou seja, a canção tem peso, embora os arranjos sejam mais econômicos. A performance dessa música exige algumas técnicas: um sampler integrado no kit de bateria (porque há sons impossíveis de reproduzir só com o kit) e o baixo utiliza mais pedais para dar força ao riff da música.
No EP “Barba”, vocês saudaram os recentes movimentos de contestação social no Brasil com o tema “Eles Deram as Mãos”. O que mais vos impressionou nessa luta?
Aquilo que mais nos impressionou e serviu de base para a escrita da letra (de David Jacinto) foi a forma como o povo se uniu para sair à rua. Foi algo espontâneo e baseado em injustiças sociais concretas. Pelo que percebemos, o aumento dos transportes públicos foi a gota de água e serviu para toda a gente vir para a rua em peso. O relato da mídia falava dos investimentos precários e falcatruas (à semelhança de Portugal isso tem sido cada vez mais midiatizado). Na verdade, nos últimos anos, estas contestações têm acontecido um pouco por todo o lado. Tentamos partir dessa ideia e julgamos que o tema acabou saindo. Quando lançamos o “Barba”, não tínhamos falado muito no assunto e um amigo nosso que vive no Brasil (Gil Chagas) resolveu fazer uma pequena dedicatória ao TV Rural e registou um filme sobre os acontecimentos que estava muito próximo da leitura que propomos na letra. Não falamos com ele sobre o motivo que nos levou a compor a canção e de repente apareceu aquele vídeo. A filmagem dele e da Cris Agnese (mulher de Gil Chagas) está muito próxima da letra da canção e emocionou-nos. Foi uma bela prenda!
A energia dos vossos shows não deixa ninguém indiferente. Agrada-vos despertar a imaginação do público?
Sem dúvida. Agrada-nos a ideia de que o público não esteja no show só para ver e ouvir o espetáculo. Estamos todos lá para participar e isso é o aspecto mais importante. A nossa música tem algumas frases fortes e relativamente ambíguas que permitem às pessoas interpretarem-nas à sua maneira e sentirem os temas da forma mais conveniente. Gostamos dos concertos em que o público reage, seja por estar extasiado e feliz ou por não curtir a atuação e fazer piadas na assistência. Apreciamos que haja algum feedback e confronto. O TV Rural entrega-se totalmente nos shows e, de certa forma, esperamos que as pessoas também o façam. Nesse ponto, não temos controle sobre a situação, embora achemos que seja difícil o público não reagir às nossas atuações.
“Sujo” define apenas um momento na carreira do TV Rural ou, pelo contrário, sentem que poderá impulsionar a banda?
Sentimos que “Sujo” é o nosso disco mais homogéneo, coeso e, portanto, é o melhor álbum que fizemos. Talvez não seja o disco com as melhores canções, porque temos vários temas fortes nos trabalhos anteriores. Mas é o disco mais equilibrado e bem conseguido do TV Rural. Visto de dentro, sentimos que poderá impulsionar a nossa carreira por ser o ponto alto do grupo. Pelo fato de termos feito este disco, vamos poder trabalhar mais tempo juntos. Se o álbum fosse fraco ou o processo de composição e gravação não tivesse sido pacífico talvez não estivéssemos otimistas. Por termos 35 anos e não sermos uma banda punk de garotos, encaramos as coisas de outra forma. Relativamente ao público, esperamos que olhem para este trabalho com olhos de ver e ouvidos de ouvir (risos).
Quais são os planos futuros do TV Rural?
Nos próximos tempos, tocaremos o “Sujo” e tentaremos chegar ao maior número de pessoas possível. Até porque achamos que é importante a nossa música ser escutada amplamente. A médio prazo daremos continuidade ao trabalho desenvolvido, ou seja, continuar a acreditar que conseguimos escrever canções, gravá-las e encontrar novas formas para alcançar o público. Gostariamos que daqui a 50 anos olhassem para a música do TV Rural e vissem nela alguns momentos importantes da música rock alternativa de Portugal. Sentimos que temos algo para dar, porque os nossos temas não são pop chiclete e ainda há muito para descobrir.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui
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