por Marcelo Costa
Gordita Beach, uma cidade praieira inventada na Califórnia, 1970. Um detetive hippie recebe a visita inesperada de uma ex-namorada, que está tendo um caso com um bilionário chefão do mercado imobiliário, prestes a se tornar vítima de uma armação da esposa. A ex quer que o detetive investigue a história, e assim começa “Vício Inerente” (“Inherent Vice”, 2014), uma aventura nada linear do cineasta Paul Thomas Anderson, que soa como a terceira parte de uma (não assumida) trilogia sobre os destroços do sonho americano iniciada com “Sangue Negro” (2007) e “O Mestre” (2012).
A trama é baseada no livro de mesmo nome de Thomas Pynchon lançado em 2009 (é a primeira obra que Paul Thomas Anderson adapta totalmente: “Oil”, de Uptown Sinclair, apenas inspirou “Sangue Negro”) que resgata o detetive maconheiro Doc Sportello, presente em outros dois romances do autor: “O Leilão do Lote 49” (1966) e “Vineland” (1990). Porém, se nos dois livros anteriores, Doc vivia o charme do auge do verão do amor, em “Vício Inerente” ele personifica a decadência não só do sonho hippie, mas também do sonho americano (não à toa, Charles Manson é bastante citado na história).
Paul Thomas Anderson buscou ser fiel ao livro de Thomas Pynchon, e nesse ponto reside a grande dificuldade cinematográfica de “Vício Inerente”: o filme está repleto de personagens surreais que, muitas vezes, estão presentes na trama em uma, no máximo duas cenas, para desaparecer em seguida deixando para trás pequenas migalhas que unem de forma inebriante o roteiro. Ou seja, já seria fácil se perder na trama intrincada, mas a história surreal (embalada pelas viagens maconheiras do detetive) dificulta ainda mais o filme.
A rigor, existem uns nove ou dez filmes dentro de “Vício Inerente” (algo que remete a “Magnólia”, de 1999): há a história de Coy (Owen Wilson) e Hope Harlingen (Jena Malone), um casal que se conheceu no banheiro de uma festa (“Eu vomitando e ele cagando ao mesmo tempo”, ela diz. “E para complicar as coisas, ele estava… duro. Uma coisa leva a outra e…”); de Christian F. “Bigfoot” Bjornsen (Josh Brolin), um detetive e dublê de ator que é viciado em banana com cobertura de chocolate; do agiota Adrian Prússia (Peter McRobbie), um homem que adora tacos de beisebol; do dentista Dr. Rudy Blatnoyd (Martin Short), da junkie e filha de magnata Japonica (Sasha Pieterse) e por ai vai.
O detetive Doc Sportello (Joaquin Phoenix) é o elo de ligação entre as histórias (a narração fofa em off da amiga Sortilège – Joanna Newsom – tenta juntar os cacos espalhados pelo caminho), e a trama se desenrola conforme ele vai acumulando casos: o primeiro é o da ex-namorada, na sequencia surge o ex-preso Tariq Khalil (Michael K. Williams), integrante da Guerrilha Família Black, que quer cobrar o dinheiro que um membro nazista da Irmandade Ariana lhe deve de uma parceria (sim, isso mesmo). Porém, esse cara nazista foi morto, e sua irmã quer descobrir o assassino (o terceiro caso). A lista segue.
Quanto mais Doc Sportello se afunda em seus casos (e na maconha), mais sujeira ele encontra. Como se estivesse caminhando em um esgoto, o detetive faz um passeio educativo pelo lado podre da América para descobrir que tudo está amarrado, que quem financia o tráfico também financia as clinicas de recuperação: “Enquanto a vida americana fosse algo de que fugir, o cartel poderia sempre ter a certeza de uma piscina sem fundo de novos clientes, fazendo-os ir e vir, dobrando o rendimento”, exemplifica a narradora em certo momento.
Por baixo dos sorrisos familiares, dos comerciais de televisão e dos discursos políticos há uma América apodrecendo, e a incursão pelo lado podre da sociedade revela muito mais ao detetive Doc Sportello, como a relação próxima que demonstra o que polícia, FBI, a máfia das drogas e os grupos armados têm em comum até a retórica particular de um bilionário (envolvido com o cartel internacional que despejava drogas nas ruas) que condena “o filho da puta que está corrompendo a minha filha”, uma junkie cujo passatempo principal é fugir do pai.
Com muito mais comicidade que em todos os seus outros filmes juntos, Paul Thomas Anderson flagra a ruína dos alicerces do sonho americano numa obra intrincada, difícil e repleta de referências (a trilha sonora do Radiohead Jonny Greenwood é exemplar) que pode tanto seduzir quanto afastar o espectador – e nenhum dos dois estará errado. O decantado exagero do roteiro, no entanto, parece soar mais como uma máscara para proteger o espectador contra o escárnio da sordidez humana, isolando a mensagem como uma tampa de bueiro (a sujeira está ali, ainda que ela não apareça).
“Da terra quase é permitido reivindicar um melhor destino, ainda que os malfeitores já conhecidos o arrebatam e façam de refém o futuro em que devemos viver para sempre”, diz a narradora próxima do final do filme. Na sequencia, o policial Bigfoot derruba a porta da casa de Doc e mastiga toda sua erva (“Depois de um longo e agitado dia de violações dos direitos civis”). O detetive questiona, entre lágrimas: “Você está bem, irmão?”, no que Bigfoot responde com raiva: “Não sou seu irmão”. Doc então abre o coração: “Sim, (você não é meu irmão) mas você pode contar comigo”.
Terceiro capítulo de uma sequencia desesperada, “Vício Inerente” (ou vício oculto, um termo jurídico) defende a premissa (adaptada) de que, apesar dos esforços em querer provar o contrário, o ser-humano nasce defeituoso, e não há garantia que cubra seus erros futuros. Um passeio rápido pela capa de jornais e portais repletos de notícias sobre assassinatos, tragédias, corrupção, entre muitos outros descaminhos, provará a tese, ainda que PTA se apoie em um elegante final feliz, provocando que, apesar de tudo, o mundo é feito de escolhas, e você é responsável pelas suas. O mundo é errado, mas há esperança. E um grande filme.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “O Mestre”: uma turbulenta relação de cumplicidade com o inimigo (aqui)
– “Sangue Negro” está em outro patamar de cinema, o das obras-primas (aqui)
– “Magnólia”, de Paul Thomas Anderson, um dos mais belo filme dos últimos tempos (aqui)
– “Embriagado de Amor”: talvez Anderson tenha exagerado um pouco na esquisitice (aqui)
– “Boogie Nights”, excelente retrato do submundo da indústria pornô dos anos 70 (aqui)
Vi duas vezes na última semana. Melhora ainda mais na segunda visita. Acho que o filme poderia ser um pouco mais reconhecido. Achei curioso ter sido lançado por um grande estúdio. Uma pena não ter ido bem na bilheteria. Aquela longa sequência com a Shasta foi um dos grandes momentos do cinema no ano passado.