por Leonardo Vinhas
Caminhos melódicos imprevisíveis, com composições de várias partes orientadas pela música clássica, mas que não dispensam o peso; citações – pertinentes, jamais gratuitas – que podem ir de Beethoven a Stevie Wonder; harmonias de jazz que vão mais em busca da concisão do que das jams livres… Uma música surpreendente, uma banda sem nenhum paralelo por aqui, e ela se chama… Skrotes?
“O nome é ridículo, nem a gente gosta”, reconhece, aos risos, o tecladista Igor de Patta. “Nasceu como piada ruim e ficou. E já é tarde pra mudar”, completa. “Ao mesmo tempo, nego ouve o nome uma vez e não esquece. Vira tipo uma senha, fica associado à banda. E se ela faz uma sonzeira, ninguém se importa se é ridículo ou não”, completa o baterista Guilherme Ledoux.
Patta, Ledoux e o baixista Chico Abreu formaram os Skrotes em 2009, em Florianópolis (SC), terra natal de todos, exceto Igor, que nasceu no município catarinense de Tubarão e se mudou para a capital do Estado na adolescência. A ideia inicial era desconstruir canções e gêneros, brincar de juntar “coisas que não combinam, como heavy metal e reggae”, e assim as composições nasciam majoritariamente a partir de improvisos.
A vida para Igor, na adolescência, era “skate, skate, skate. E surf”. Guilherme e Chico estavam em frequência parecida. Mas como o baterista reconhece, “em lugares como São Paulo, o skate está mais associado ao hip hop, à coisa urbana. Aqui fica tudo mais solto, mais leve. Tem um espaço amplo, tem o mar, e isso muda sua relação com tudo, inclusive com a música”. Tudo influenciou nas escolhas da vida adulta e, claro, na proposta musical dos Skrotes, onde esses improvisos eram, também, soltos e leves, quase debochados.
Em 2011 lançaram seu primeiro disco, um EP homônimo, e a partir daí, mantiveram a regularidade de lançar um disco por ano: o primeiro álbum, também homônimo, de 2012; outro EP, “Deboche Ñ É Crime” (com versões imprevisíveis de temas de Black Sabbath, Sepultura, Stevie Wonder e Tom Jobim), em 2013; e o segundo álbum, “Nessun Dorma”, em 2014. “Já temos 80% do novo disco pronto, em termos de composição”, antecipa Chico, “estamos tentando viabilizar a produção agora”. Mas estamos nos adiantando. Voltemos à formação da banda – mais especificamente, sua formação erudita.
Guilherme: “Eu venho de família de músicos eruditos. Tenho primo regente, primo spalla (nota: o ‘número 2’ em uma orquestra). Toquei percussão durante anos em orquestra sinfônica. Parei porque é algo que exige demais, sua vida acaba girando em torno disso. Eu já tinha algumas bandas, e vivia tendo que cancelar shows delas por causa do cronograma da orquestra – que aliás, nunca era o cumprido, o maestro era um cara desorganizado nesse sentido. Mas ainda toco, por prazer e pelos cachês, e ouço muita música do tipo, principalmente dos compositores brasileiros”.
Chico: “Estudei Licenciatura em Música na faculdade. Lá que tive mais contato com o erudito, até então era mais jazz e rock. Hoje sou professor de música, e o erudito é parte da formação do músico”.
Igor: “Estudei piano clássico dos 6 aos 15 anos de idade, conservatório mesmo. E é a música que mais ouço até hoje, principalmente os ‘classicões’”.
Porém, o erudito não é a única base do som. “Os três são apaixonados por Ramones”, diz Igor. “E a gente gosta muito de música pesada: Sepultura, Ratos de Porão, Pantera”, completa. Citam ainda Mike Patton e suas bandas, porque, como explica Guilherme, “ele faz um disco de hip hop, outro pesadão, outro lindo de músicas em italiano, outro mais pop. Essa liberdade é algo que nos impressiona e fica como uma grande influência”.
“Nessun Dorma” tem, sim, bastante peso. Mas jamais do tipo inaudível ou gratuito. “’Deboche ñ é crime’ foi um disco de transição”, comenta Chico. “Mas em estúdio a gente ainda não está com o peso e a sonoridade que a gente quer”, emenda Guilherme. Ainda assim, a mudança é evidente. Em “Nessun Dorma”, a desconstrução de gêneros deixou de ser tão importante, valendo mais a fluência das composições. Consequência do processo de criação, que também mudou, e do amadurecimento da proposta musical. “Foi um disco para o qual a gente se reunia para ensaiar com alguns de nós já trazendo coisas prontas”, diz Igor. Havia, portanto, uma direção mais clara a seguir. “Mas tudo mudava muito também. Porque a gente já está numa comunicação musical tão forte que eu faço um ‘paammmm’ no teclado e os caras já sabem pra onde ir a partir dali, ou o Ledoux dá uma batida e a gente já encontra o caminho. Se a gente começar a compor, não tem hora para parar”.
Em ensaios ou ao vivo, o entrosamento entre os três é nítido, e caminhos que poderiam ser tortuosos viram, na medida do possível dentro da proposta da banda, pop. Ao contrário de outros “desconstrutores”, os Skrotes não renegam o prazer obtido pela energia roqueira, nem a importância de saber a hora de parar de tocar, algo geralmente negligenciado por músicos de formação mais rebuscada. É o ponto onde a influência ramônica se relaciona bem com a veia erudita.
Nicolás Molina, da banda uruguaia Molina y Los Cósmicos, tocou após o trio catarinense na edição de 2014 do festival El Mapa de Todos. Sua visão da banda é sucinta e exata. “Acho que os Skrotes conseguem unir bom gosto com virtuosismo de uma maneira divertida, que não chateia”, diz. “Eles têm tudo: groove bom, postura de palco, e são originais. Isso faz deles algo diferente na cena musical do continente. E ainda não usam guitarra! Ficamos amigos, e estamos planejando um intercâmbio musical”. Assim, invertendo o caminho do fluxo turístico na Ilha de Santa Catarina, é provável que a estreia dos Skrotes em palcos internacionais se dê em praias (ou campos) do país vizinho.
Mas nos palcos brasileiros, a coisa vai bem, obrigado. São 150 shows em cinco anos de existência. A presença em festivais é constante: Psicodália (duas vezes), Grito Rock, Goiânia Noise, Natal Instrumental, Macondo Circus e outros, incluindo os locais Floripa Noise (onde dividiram palco com Jards Macalé) e Maratona Cultural.
“O legal dos festivais é que públicos diferentes podem nos conhecer”, diz Igor. “Nosso público era de roqueiros no começo, agora é de… Como é que o pessoal fala mesmo? Hipsters? Mas a gente toca pra todo mundo, sem erro”, completa Guilherme, sem nenhuma ironia. Assim, a banda consegue se comunicar com qualquer tipo de plateia – no dia da entrevista, por exemplo, ensaiavam para se apresentar em uma festa fechada perante uma audiência mais afeita ao jazz.
Entretanto, não deixa de ser curioso ver como essa abordagem musical é percebida por público e crítica. “Já compararam a gente até com Deep Purple”, espantam-se os três. “Sei lá se por causa do som do [órgão] Hammond…”, completa Igor. “Ou então falam que parece progressivo, Rick Wakeman, só por causa da parafernália de teclados do Igor”, acrescenta Guilherme. No fim, os três concordam que o rótulo “freak instrumental”, dado por um amigo, pode não ser muito preciso, mas soa muito bem.
A conversa seguiu tarde adentro, tendo a música como assunto, pretexto e combustível. “Adoro ficar ostentando meus vinis”, diz Igor, sucedendo bolachas que iam de Som Nosso de Cada Dia a Phenomenal Handclap Band, passando por Mr. Bungle e Lucifer’s Friend. “Todo mundo aqui já tem uma trajetória considerável, mais de vinte anos na música”, diz Chico (e não é exagero: a média de idade do trio é 35 anos, e todos já tocavam profissionalmente no começo da adolescência). “Mas o gás que a gente tem agora é mais forte do que em tudo que a gente fez”. Guilherme emenda: “Eu nunca me senti tão à vontade em qualquer outra banda como nos Skrotes. Aqui tem um encontro de música que era tudo o que sempre quis”. Enfim, está aí outro grande diferencial dos Skrotes (e perdoe-se a aliteração): músicos que amam a música, fazendo a música que amam. Não é sempre que se encontra isso por aí.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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